Junta médica considera professora com doença de Alzheimer apta para dar aulas
Caixa Geral de Aposentações entendeu que a docente não está “absoluta e permanentemente incapaz” para trabalhar. Não consegue fazer as grelhas de avaliação, trocou manuais escolares e a matérias a leccionar. Último relatório médico fala em "demência". Caso está em tribunal.
Soube que tinha a doença de Alzheimer em 2014, mas no ano seguinte a junta médica nomeada pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) não a considerou “absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções”. O pedido de aposentação da professora do ensino secundário foi indeferido a 26 de Outubro de 2015.
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Soube que tinha a doença de Alzheimer em 2014, mas no ano seguinte a junta médica nomeada pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) não a considerou “absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções”. O pedido de aposentação da professora do ensino secundário foi indeferido a 26 de Outubro de 2015.
A decisão dos três médicos que constituíam a junta médica, com as especialidades em medicina geral e familiar, ortopedia e medicina legal, teria como consequência o regresso da docente ao trabalho ou a perda do vencimento caso tal não acontecesse. A professora não aceitou a decisão e o seu caso está desde então a aguardar decisão entre os corredores da justiça.
O processo seguiu para o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Coimbra, primeiro com uma providência cautelar para suspender o efeito da deliberação da CGA, depois com uma acção principal, que ainda decorre. A providência foi ganha pela docente, pelo que a professora mantém o salário até que o processo principal chegue a uma conclusão.
A docente de português da Escola Secundária José Falcão, em Coimbra, sempre foi dedicada ao trabalho, dando horas à escola e com gosto pelo que fazia, conta o marido. No ano lectivo de 2012/2013 começou por estar de baixa durante um mês devido a uma depressão. Então com 57 anos, a professora ainda regressou à José Falcão para o início do ano seguinte. Mas, em 2013, durante o primeiro período, voltou a meter baixa e não voltou a leccionar.
Foi sob recomendação da junta médica da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (que avaliava a baixa médica) que foi submetida a uma junta médica da CGA.
Sem condições para dar aulas
Quase dois anos depois de ser considerada apta para o serviço, a professora depende hoje do marido – que também é docente noutro estabelecimento de ensino da cidade – no seu dia a dia, mas os sinais começaram a surgir muito antes. “Comecei a notar algumas alterações quando ela estava [ainda] na Pedrulha”, uma escola dos arredores de Coimbra, conta o marido, que prefere não ser identificado. Nos dois últimos anos que esteve ao serviço naquele estabelecimento, entre 2007 e 2009, reparou que a companheira “chegava ao fim do ano completamente exausta" e que se "queixava que não conseguia dar vazão ao trabalho”.
Em 2009 mudou-se para a José Falcão, no centro de Coimbra. “Aí já tinha que ser eu a fazer as grelhas de avaliação dos testes, já se baralhava muito”. Recorda também que, em 2013, o director da José Falcão, o chamou “duas ou três vezes à escola, para dizer que ela não estava bem”. Nesse ano, começou a ser seguida pelo psiquiatra José Luís Pio Abreu.
O comentário do director da escola, Paulo Ferreira, ao PÚBLICO é elucidativo: “ela não tinha condições psicológicas para estar concentrada ou conseguir estar em perfeitas condições à frente de turmas. Notávamos que ela não tinha concentração”. Paulo Ferreira conta que, por exemplo, nas reuniões de grupo de departamento, a professora “mostrava ausência nos temas que estavam a ser tratados”.
“Às vezes, nas conversas com os colegas, não conseguia ter um fio condutor”, recorda ainda. Esses sinais levaram mesmo a que próprios colegas tivessem manifestado preocupação. No processo são referidos outros episódios demonstrativos da falta de condições da docente para prosseguir o desempenho de funções, como uma vez em que trocou o manual escolar, estando a leccionar matéria antiga.
Os documentos médicos incluídos no processo consultado pelo PÚBLICO também apontam no mesmo sentido. O psiquiatra Pio Abreu assina uma declaração em 2015 que dá a professora como “absolutamente incapaz de enfrentar uma turma de alunos”, referindo que a obrigação do regresso à escola é “não só inútil, como de consequências imprevisíveis”.
Um relatório do neurologista da docente aponta ainda para a necessidade de acompanhamento permanente. No documento de 2016 lê-se ainda que, “dado o carácter degenerativo, progressivo e incurável da patologia em causa, não apresenta condições para exercer a sua sua actividade profissional”.
Hoje com 61 anos, a professora deixou quase todas as actividades domésticas. Ao contar o processo pelo qual está a passar, o marido pausa o discurso, emociona-se, ganha fôlego e prossegue. “Está-me a ser extremamente penoso lidar com esta situação”. Não vê como a esposa possa voltar a entrar numa sala de aulas.
Avaliada em cinco minutos
A junta médica que avaliou a professora em Outubro de 2015 fê-lo com base no parecer de um médico psiquiatra relator, também designado pela CGA. Nesse documento, o médico concluiu que, “não parece justificar-se, do ponto de vista psiquiátrico, que a examinada seja considerada definitivamente incapaz para a profissão”.
No processo judicial, a advogada da professora, Ana Pereira de Sousa, escreve que, apesar de a doente ter comparecido munida das declarações e relatórios dos médicos que a acompanhavam, o médico relator terá rejeitado essa documentação “com o argumento de que apenas lhe competia avaliar a requerente na sua área – psiquiatria”. A diligência não terá durado mais do que cinco minutos.
Uma apreciação “extremamente fugaz”, entende a advogada, e que desconsidera tantos as apreciações dos médicos que acompanham a professora, como a “fortíssima medicação a que está sujeita”. A advogada não quis prestar declarações, uma vez que o processo está a decorrer.
Sobre a avaliação da junta médica classifica-a como “grosseira” e questiona a sua composição. O representante da CGA, por sua vez, responde que mais importante que a especialidade de cada médico “é conhecer a experiência, que é muita, que todos detêm no domínio da avaliação das incapacidades para o trabalho no âmbito das juntas médicas da CGA”.
O PÚBLICO pediu esclarecimentos à CGA. O Ministério do Trabalho e Segurança Social, que tutela a CGA, respondeu através do gabinete de comunicação que não comenta processos que estão a ser julgados nas instâncias judiciais.
Juiz critica Caixa Geral de Aposentações
O processo tem-se arrastado, com o juiz titular a emitir um despacho no passado mês de Abril em que considera que a ré CGA revela “um comportamento de incumprimento do dever de colaboração quer processual, que na descoberta da verdade material”.
Em Novembro de 2016, a docente voltou a submeter-se à avaliação de um médico relator, com vista à apreciação de uma junta médica de recurso. No relatório pericial neurológico, o médico não tem dúvidas e diagnostica: “demência – muito provável doença de Alzheimer”. Considera ainda que professora padece de uma “depressão reactiva à percepção da sua capacidade cognitiva”. O neurologista conclui que a doente se encontra “incapacitada para exercer a sua profissão, devendo ser reformada por invalidez. No entanto, este documento só chegou ao tribunal no dia 4 de Maio deste ano.
A 4 de Julho, a docente voltará a ser avaliada por uma junta médica da CGA, desta vez na sequência de um recurso, que deliberará, com base neste último parecer neurológico, se tem ou não direito à reforma por invalidez.