Demagogia pedagógica da catástrofe: dívidas públicas, corrupção e planeamento

Quem diria que os incêndios levassem o cidadão comum a falar em planeamento territorial, quando isso lhe prejudica, aparentemente, numa visão irracional e puramente individualista, os seus interesses materiais particulares?

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Jason Briscoe/Unsplash

Antes de concluírem que este texto tem alguma coisa que ver com lutas partidárias ou com aqueles comentários políticos do tipo “não seja demagógico”, muito ao estilo infantil de “quem o diz é quem o é”, quero referir que utilizo o termo “demagogia” noutro sentido mais inócuo.

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Antes de concluírem que este texto tem alguma coisa que ver com lutas partidárias ou com aqueles comentários políticos do tipo “não seja demagógico”, muito ao estilo infantil de “quem o diz é quem o é”, quero referir que utilizo o termo “demagogia” noutro sentido mais inócuo.

Se a demagogia é a “arte de conduzir o povo”, embora conotada com uma condução irracional e emotiva para atingir determinados objectivos políticos, independentemente dos factos, em Portugal, as mais recentes “demagogias” de convencimento público para determinados temas parecem tender para uma certa pedagogia.

Mas estas demagogias, com aspirações pedagógicas/informativas, têm surgido como reacções a catástrofes, originando debates públicos, políticos e cívicos em torno de assuntos técnicos, esgrimindo-se factos e visões diferentes nos processos dialéticos que geram. As grandes crises nacionais mais recentes têm levado os portugueses a debater assuntos com um grau de complexidade que não seria expectável hoje em dia, especialmente quando os meios de comunicação tendem para a simplificação dos conteúdos, cada vez mais efémeros. Não que a suavização dos temas seja por si só negativa, pelo contrário, até pode ser sinal paz e felicidade social, especialmente quando nos preocupamos apenas com o nosso bem-estar e qualidade de vida, mesmo que seja consumista e individualista. No fundo queremos é ser felizes e descomplicar a vida, ou então complicar, mas conduzindo o processo para os assuntos e actividades que nos agradam.

No entanto, as calamidades que nos têm assolado parecem ter gerado processos novos informativos e formativos. Antes do resgate financeiro do país, quem imaginou que numa comum conversa de café se pudessem referir ratings da dívida pública, défices, crescimentos, dívidas de curto, médio e longo prazo? Quem diria que os países podem ser considerados lixo numa era de relativismo politicamente correcto, atenuador das hegemonias? Quem diria que a corrupção virasse verdadeiro escândalo e não apenas uma manifestação de maior escala do clientelismo e outras formas de pequena corrupção impregnadas na sociedade portuguesa? Quem diria que os incêndios levassem o cidadão comum a falar em planeamento territorial, quando isso lhe prejudica, aparentemente, numa visão irracional e puramente individualista, os seus interesses materiais particulares? Quem diria que indivíduos, não politizados formalmente, comecem a defender de forma consciente a sobreposição dos interesses colectivos face aos interesses particulares, que está na génese dos processo de planeamento e de optimização do uso sustentável dos territórios? Estes foram apenas alguns exemplos, havendo muitos mais. Talvez a diferença seja apenas a escala dos movimentos que agora se geram e do mediatismo que recebem e não a novidade propriamente dita.

Se a pedagogia e demagogia da calamidade têm forçado a sociedade portuguesa a aprofundar conteúdos talvez seja a manifestação de outra calamidade invisível: este processo de interesse pelos assuntos colectivos, geradores inevitáveis de aprofundamento informativo e debate factual, dependerem das calamidades, sem serem processos cívicos e políticos naturais.