Cuba, Trump e o embargo teatral
O embargo comercial dos Estados Unidos a Cuba, com mais de cinco décadas, é tão polémico como enganador.
Trump, num novo episódio de autoritária irracionalidade, decidiu reverter a política de abertura e desanuviamento que Obama havia estabelecido com Cuba.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Trump, num novo episódio de autoritária irracionalidade, decidiu reverter a política de abertura e desanuviamento que Obama havia estabelecido com Cuba.
O embargo comercial dos Estados Unidos a Cuba, com mais de cinco décadas, é tão polémico como enganador. Na realidade, diferentes embargos norte-americanos começaram ainda no final do período do ditador Fulgêncio Batista, a que sucedeu o regime comunista. O atual embargo data essencialmente de 1962 e inseriu-se num contexto de Guerra Fria na sua fase mais acesa. Cuba, que dista apenas 120 km do solo norte-americano, foi utilizada pela União Soviética para a instalação secreta de mísseis que teriam sido extraordinariamente perigosos e que poderiam ter originado uma guerra nuclear mundial que acabou por ser evitada. Cuba era, inegavelmente, um veículo de penetração política e militar dos soviéticos, pelo que os norte-americanos consideraram que o perigo decorrente dessa ilha quase adjacente, designadamente após a crise dos mísseis, aconselhava um bloqueio e, posteriormente, um embargo comercial.
Podemos concordar ou discordar da visão norte-americana que, há meio século, levou os Estados Unidos a instalar o embargo a Cuba. Mas o tempo passou e mantê-lo atualmente parece um anacronismo absurdo. A Guerra Fria terminou. Cuba deixou de ser um instrumento agressivo da antiga URSS e as suas capacidades militares e políticas são insignificantes em comparação com as do passado. Contrariamente ao passado, Cuba não consubstancia um perigo para os Estados Unidos. Por outro lado, o regime cubano continua a ser essencialmente totalitário, repressivo e violador de direitos humanos. Contudo, o regime tem exercido um esforço para se abrir, mesmo que timidamente. No mundo atual existe um grande conjunto de países onde a natureza repressiva e a brutalidade dos regimes é muito superior à que se regista agora em Cuba, sem que se multipliquem embargos comerciais.
Contudo, a polémica sobre o embargo a Cuba é uma cínica encenação que quer os Estados Unidos, quer Cuba têm tido interesse em manter durante décadas, por motivos que não confessam e que nada têm que ver com os argumentos públicos de cada parte. Existem interesses internos norte-americanos que pretendem isolar o regime cubano, sendo esse o caso da poderosa e rica comunidade cubana-americana residente nos Estados Unidos. Mas também o regime cubano, que publicamente produz um enorme alarido mundial condenando o embargo, tem tido um inconfessado interesse em mantê-lo. Vejamos por que motivos.
A economia cubana, apesar de ter melhorado recentemente em relação ao passado, persiste em níveis de óbvia fragilidade e oscila substancialmente de ano para ano. As exportações ligadas ao turismo e aos minérios encontram-se em queda, a economia estatal permanece atrasada e ineficiente, a dívida externa acentua-se, estradas encontram-se repletas de buracos, os salários são muito baixos, os transportes têm fraca qualidade e a habitação média é pobre. Existe uma elite do regime cujos rendimentos são chocantemente superiores aos da população em geral, o que aprofunda tensões políticas e sociais. Embora os cuidados de saúde e parte da educação sejam melhores, o crescimento económico seja em média positivo (embora em 2016 tenha sido negativo) e o desemprego oficial seja baixo, a população cubana vive muito pior do que há 25 anos.
As primeiras décadas do modelo comunista cubano decorreram sob um artificial clima económico, porque os abundantes apoios concedidos pela URSS financiavam o regime cubano e disfarçavam as suas estruturais disfunções económicas. Desde 1991, o desaparecimento desse massivo apoio económico soviético expôs a enorme vulnerabilidade do modelo cubano e a ineficiência de grande parte da sua economia. O embaraço para o regime cubano passou a ser intolerável. Mas o regime apercebeu-se de que, apesar da óbvia ineficácia da economia cubana e da sua queda em direção à pobreza, poderia invocar o embargo comercial norte-americano como causa desse enorme insucesso nacional. Consequentemente, os dirigentes de Cuba passaram a depender criticamente do embargo dos Estados Unidos para, perante a população cubana e perante o mundo, desculpabilizar o regime e os seus insucessos. O embargo norte-americano passou a ser vital para o regime convencer os cubanos de que o modelo nacional é excelente e de que as decrépitas condições de vida da população são causadas pelo embargo. A vitimização do regime, culpabilizando os norte-americanos, passou a ser um argumento vital para manter o regime cubano e para evitar uma contestação popular interna que o pudesse fazer perigar. Assim, o embargo norte-americano tornou-se fundamental para a elite do regime de Cuba. Mantê-lo passou a ser do interesse de muitos dos líderes cubanos que publicamente vociferam contra o embargo. Contudo, os cubanos sempre preferiram não sublinhar que, mesmo com o embargo americano, o seu país manteve relações comerciais com mais de 100 países, incluindo a maioria dos europeus.
Nos Estados Unidos, a generalidade dos políticos receia confrontar a influente comunidade cubana-americana, porque esta conservadora comunidade tem insistido em isolar drasticamente Cuba. Não é por acaso que Trump, que está a perder uma boa parte dos seus eleitores, decidiu anunciar em Miami o fim do acordo com Cuba, perante a maior comunidade cubana no país. Mas esta situação começa a ser tão indefensável que uma recente sondagem mostra que 64% dos cubanos-americanos residentes em Miami são já recetivos ao fim do embargo. O embargo irá terminar.
O regime cubano, apesar dos seus fingidos protestos públicos, apavorou-se com o fim do embargo. Desde que a URSS deixou de financiar Cuba os dirigentes deste país conseguiram encontrar um possível apoiante alternativo, a Venezuela. Hugo Chávez, então obcecado em confrontar os Estados Unidos e em exportar a sua “revolução”, tentou usar o dinheiro do seu petróleo para exercer uma grande influência em Cuba, o que conseguiu com a contrapartida de os cubanos terem acesso a inúmeros cargos de influência na própria Venezuela. Contudo, a fragilização económica da Venezuela fez retroceder essa estratégia, deixando o regime cubano novamente exposto à sua intrínseca ineficiência económica.
Para o regime venezuelano foi devastadora a perspetiva do fim do embargo norte-americano a Cuba e de um desenvolvimento de relações políticas e económicas entre essas nações, porque esse facto ditaria o fim da influência decisiva que a Venezuela detinha sobre Cuba e sobre outros países da América Latina.
Terminar esse embargo representaria um mercado adicional para os agricultores e industriais norte-americanos e abriria à economia cubana o acesso à maior economia consumidora do mundo, às suas portas. A prosperidade assim adquirida beneficiaria ambos os países. Cuba necessita desesperadamente de investimento estrangeiro, meios financeiros, conhecimento de mercados internacionais e tecnologia industrial moderna. Os Estados Unidos trarão tudo isso e Cuba será também um novo mercado para os norte-americanos.
Apesar das diferenças políticas e da inabilidade de Trump, dentro de dez anos as relações de aproximação entre estes dois países terão sido provavelmente impressionantes.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico