Dandy ou desportivo, quem é o homem da moda?
A cada seis meses, 30 mil pessoas — muitos, muitos homens — concentram-se em Florença para ver e mostrar roupa. No seu corpo, como os pavões ou os dandies, nos pavilhões, com as melhores marcas masculinas do mundo, ou na passerelle. A Pitti Uomo é uma feira — e uma festa do homem.
“O meu único abrigo? Neste poema”, diz a fachada. “Quão magnífica é a guerra!” Foto, foto, outra foto, vídeo a rodar. “Um dia todos perdoaremos aos deuses”, “mas nunca perdoarei aos oceanos”, lê-se. A praça florentina é iluminada apenas pelas palavras enquanto espera pela roupa. Mais ecrãs luminosos cintilam para registar, conforme o planeado pela marca muito cool Off-White, os poemas seleccionados pela artista Jenny Holzer para um desfile de streetwear. As palavras deslizam, gigantes, pela fachada do Palazzo Pitti acima, numa noite quentíssima de Florença, ao som da ópera La Cenerentola. A Pitti Uomo vive um dos seus momentos mais desejados: a feira de homens para homens, que há anos é uma referência da imagem da elegância de fato e gravata, namora agora o brilho de uma semana de moda através dos seus rostos mais frescos e contemporâneos.
“Não chegam cartas da Síria em chamas” nem “cartas da Palestina que chora”. A récita gráfica e fashion prossegue e os jovens modelos lá começam a trotar, frágeis de corpo mas agressivos no passo, pela praça árida do palácio. Penúltima noite da Pitti Uomo, uma das feiras mais importantes para comprar, vender e exibir moda masculina. Mais de 600 pessoas na assistência e caos controlado nas bancadas, muito pelo calor e cansaço acumulado de três ou quatro dias de negócio, pesquisa, networking — e poses para as câmaras.
Aqui, os fotógrafos não procuram só os modelos. Os “Pitti peacocks”, ou os pavões da Pitti, são os seus frequentadores mais mediáticos. Não fossem eles homens de várias idades de fatos, chapéus e sapatos de todas as cores e elegantes feitios (e alguns eventos especiais como o desfile da Off-White), e a Pitti Uomo seria apenas conhecida no circuito de fornecedores, marcas e designers da moda. Se nos últimos anos viu imagens que parecem saídas de uma estância balnear do pós-guerra, povoadas por homens de porte de alfaiate mas que em vez de um charuto têm na mão um smartphone, provavelmente cruzou-se com uma parte essencial do movimento #menswear e com os #PittiPeacocks. Os hashtags resumem o que são hoje pequenos grandes fenómenos, como o da força da moda masculina, aquela que mais cresce mundialmente e que até 2020 deverá gerar receitas de 434 mil milhões de euros, segundo um estudo da consultora Mintel, mas também as suas subculturas. Hoje, há quem coloque os “Pitti peacocks” na lista das criaturas em vias de extinção, mas também quem saiba que, na feira à qual já se chamou a Terra Santa da moda de homem, eles resistem.
Não estavam em força na assistência do desfile de Virgil Abloh e sua Off-White, colaborador de Kanye West há 14 anos e ídolo millennial. A tribo ali era outra, a dos casacos com o alfabeto cirílico, bonés negros e os ténis de edição limitada. Eis a encruzilhada: algures entre a Fortezza de Florença, casa da Pitti Uomo e da melhor alfaiataria, as cúpulas de Paris, onde se erguem os gigantes da moda mundial, e as ruas de Brooklyn, Londres, Tbilissi ou Moscovo, a hierarquia da moda masculina está em mudança. Este homem é um puzzle.
Na Pitti estão Paul Smith, veterano da moda masculina em pessoa, a apresentar uma nova linha, mas também a vistosa SuperDry com uma colecção desportiva. Estão os editores de moda de sites e revistas mais alternativos como a Fucking Young ou de títulos estabelecidos como o jornal Women’s Wear Daily (WWD) ou as várias edições da GQ. Hugh Jackman vem à cidade para um evento reservado da Montblanc, há bancas com DJ e sites como a Farfetch ou o Net-A-Porter vêm ver tendências, descobrir novas marcas mas também orientar, suavemente, alguns fornecedores no caminho que eles, os poderosos vendedores, querem que sigam. Os desfiles especiais já decorrem há um punhado de edições e servem para aumentar a relevância mediática, e a oferta, da feira.
Antes da Off-White, fora a vez de Raf Simons, referência da moda conceptual com uma curta passagem pela direcção criativa da Dior, e Gosha Rubchinskiy, emergente urbano que na semana passada colaborou de surpresa com a clássica Burberry’s. Estiveram na Pitti para gáudio da imprensa especializada, a fazer a ponte com o fenómeno que cruza os homens clássicos e os homens street. Em Janeiro último, a Louis Vuitton pôs na passerelle de Paris a sua colaboração com a Supreme, marca americana de skaters de culto nascida nos anos 1990 e que, apesar dos preços elevados e das edições limitadas, nunca se aproximara tanto do establishment. Nesta 92.ª Pitti Uomo, lá estão elas, as cuecas com elástico a dizer Supreme a espreitar das calças de visitantes, ou as t-shirts com o logótipo vermelho da marca nas bancadas da assistência da Off-White.
“Ser convidado para a Pitti é uma espécie de [reconhecimento] de que chegou um novo estilo à moda”, considera Virgil Abloh, citado pelo WWD. Ele era um deles, na esquina “da[s ruas de Manhattan] Prince e Mercer, na fila com os miúdos para a Supreme”, como diria depois aos jornalistas em Florença, na apresentação da sua colecção de Verão 2018 que à noite preencheria a praça do Palazzo Pitti. A colecção é “o meu contributo para a conversa sobre a ideia de alfaiataria e como ela pode transmitir a sensação de ter alma”, “a mais importante que já fiz”, cheia de referências nas paredes e nas roupas ao mundo lá fora — à força dos millennials que o idolatram, aos anos 1990 em que cresceu, à crise dos refugiados e da imigração, mas também a este momento de força do “luxo underground”. A expressão é já de Lapo Cianchi, director de eventos da Pitti Imagine, um dos estrategas desta miscigenação fashion em Florença. A Pitti continua a cortejar o que há de novo, dois anos depois de a Vêtements do geórgio Demna Gvasalia e de a Off-White terem sido finalistas do prémio Louis Vuitton-Moet Hennessy para jovens criadores — na edição em que os portugueses Marques’Almeida foram os premiados — e de Gvasalia ascender à direcção criativa da Balenciaga.
Futuro masculino
Durante o dia, na Fortezza, há um trânsito constante de sacos cheios de catálogos, cartões de visita que se trocam por cima da mesa ou à boleia de um gelado, e muitos, muitos homens a fazer negócios. Há algumas mulheres a fazer exactamente o mesmo e, tal como eles mas em sintomática minoria, a ser fotografadas pelos muitos bloggers e documentadores desse fenómeno natural conhecido como street style. Na famosa praça central da fortaleza do século XIV, os “Pitti peacocks” dedicam-se à “peacock parade”, como descreve Lapo Cianchi, um desfile não-oficial de homens com diferentes versões do fato e de um look clássico. O hedonismo chegou a ser de tal ordem que foi feito um mockumentary sobre esta espécie ao melhor estilo de programa sobre a natureza.
“Criámos as condições para que eles aparecessem da melhor forma”, reconhece Cianchi, um sexagenário muito alto, calvo e de olhos azuis. “A maior parte são pessoas do mundo da moda — compradores, expositores, jornalistas. Já cá estavam, não vieram de propósito. Depois, quando a moda aumentou, sei que houve pessoas que vieram de propósito para se tornarem parte da ‘peacock parade’ e isso é engraçado. Mas a Pitti não tem só essa imagem.” O fenómeno “é ainda muito forte e tem funcionado para nós em termos de comunicação”, admite sobre a exposição mediática. Contudo, “nos eventos especiais, nos visuais criados pelos desfiles de Raf Simons, Gosha, JW ou Off-White, vê-se outra parte do mundo”. Há uns anos, escrevia-se que não se vêem ténis na Pitti Uomo. Agora, com Abloh a acenar com os seus Air Jordan para a Nike ou JW Anderson a anunciar uma colaboração com a Converse, isso já não é verdade.
“Existe a Pitti falsa e a Pitti verdadeira”, diz Farid Sadrudin, alfaiate português e um dos Portuguese Dandys que não podem sair à praça central da Pitti Uomo sem, com as suas barbas e fatos coloridos, serem fotografados por muitos dos telemóveis e máquinas presentes. “A verdadeira é a exposição dos fornecedores, com os melhores fabricantes, centenários, e verdadeiros artesãos que sabem fazer uma gravata”, exemplifica ao P2. “Quem está fora fica com uma imagem completamente errada”, diz, sobre o lado feérico das fotografias e do street style — do qual participa em metade do seu tempo na feira, dividido depois com contactos e trabalho.
Na 92.ª Pitti Uomo, houve ainda mais desfiles, como o de JW Anderson ou da linha Hugo da Hugo Boss, além de uns poucos nomes menos conhecidos da moda italiana e internacional. Um pequeno ringue espelhado frente à igreja de Santa Maria Novella serviu para Christian Louboutin apresentar uma nova colecção de ténis enquanto se jogava pólo com bicicletas. Mas as cerca de 30 mil pessoas que visitam a Pitti semestralmente circulam sobretudo entre as 15 secções de stands onde se vende e comunica a moda de homem — os fatos clássicos dominam, mas foram sendo abertos pavilhões para as marcas mais experimentais, de género neutro ou dedicadas ao segmento da roupa desportiva, por exemplo. Um deles, numa altura em que as t-shirts da moda proclamam que o “Futuro é Feminino”, é o do Futuro Masculino.
Ao longo da terceira semana de Junho estiveram presentes 1220 marcas. Delas, seis são portuguesas, uma pequena parte das 540 marcas estrangeiras que se espalham por 60 mil m2 na Fortezza, à sombra da força do made in Italy e, sobretudo, da tradição e do valor simbólico de um “fato italiano”. Do outro lado da barricada há cerca de 15 mil compradores de todo o mundo, dos quais 150 portugueses (Portugal é o 14.º país mais representado). Os mercados que mais procuram a Pitti Uomo são o alemão, o japonês, o espanhol e os compradores do Reino Unido, com representações fortes da China, Holanda, França ou Turquia. Vêm ver e mostrar não só vestuário, mas acessórios, calçado, agendas, ou lenços de bolso, atacadores, meias e pulseiras, todos atrás da muralha da fortaleza.
À porta, do lado de fora numa manhã de quarta-feira, está apenas um punhado de fotógrafos e curiosos. Um homem e o filho que ainda pede colo condizem no fato e colete cor de tabaco, enquanto um “peacock” que aparecerá nas galerias de street style de várias publicações faz entrar, com calculada ginga de passarelle, o seu fato verde-bandeira. “A Pitti Uomo não é uma feira, mas um evento de lifestyle”, diz Raffaello Napoleone, director-geral da Pitti Imagine, organizadora dos vários eventos de moda com a marca da Pitti, que carrega o nome do banqueiro florentino do século XV e braço direito da família Medici. Hoje, Pitti é nome de entidade, sinónimo de moda, financiada pelo Governo italiano e pelo poder local florentino.
Estar na Pitti Uomo, em Janeiro ou em Junho, custa dinheiro. Seja qual for o produto que se quer vender. “Venho fazer negócio. É preciso vir cá para nos vendermos”, diz ao P2 o congolês Marien Mel. Como assim, vender-se? “Mostrar o que se tem — se as pessoas gostarem, cria atenção para o meu produto”, explica, sentado na praça central sob um céu plúmbeo a ameaçar chuva tropical. “Quando se está bem vestido, as pessoas gostam de nós, somos bem-vindos”, diz sobre a sua pose, mas também sobre o seu negócio — é designer de sapatos de uma marca homónima, que fabrica em Portugal. Estar na Pitti, usar as redes sociais para mostrar que está na Pitti “faz parte das ferramentas do marketing. Viajar, que nos vejam a fazer o que gostamos. Quanto mais nos vêem, mais nos dá negócio”.
O mesmo dizem os Portuguese Dandys, cinco dos 13 amigos que há uns anos se juntaram num grupo em torno do gosto pela moda clássica masculina — “não é nenhuma associação nem nenhuma empresa”, esclarece Rui Martins, de 36 anos e fato vermelho-escarlate de lapelas pontiagudas — e que vêm em conjunto há quatro edições à Pitti. “Todos trabalhamos com roupa e estes quatro dias são muito importantes para nos inspirarmos, para nos produzir, para criar um estilo”, diz por seu turno Artur Santos, 30 anos, cabelo enrolado num coque e fato turquesa. “Trabalho com o público e o que posso retirar [daqui] para os meus clientes é a parte técnica. São argumentos de venda e de aprendizagem”, completa Rui Martins.
Farid Sadrudin, alfaiate de fatos de inspiração napolitana, é o mais experiente do grupo nas lides da Pitti Uomo. Veio pela primeira vez em 1998 e depois de um interregno regressa regularmente desde 2009. “Venho aqui para perceber as cores, os cortes, o que se está a usar, para incutir aos meus clientes.” Rui Martins atalha, sobre as fotos, sobre a câmara que rodeia a entrevista e os olhares curiosos constantes: “Estas fotos podem representar dinheiro”, fazer vender mais fatos. E esse é, claro, o grande objectivo de marcas de grande monta, históricas e internacionais, presentes no pavilhão onde o P2 e os Portuguese Dandys se abrigaram do calor, e das câmaras, para conversar.
A feira escolhe bem quem aceita no seu terreiro, pedindo relatórios, por vezes amostras, listas de pontos de venda e planos de negócio. Algumas grandes marcas são convidadas, tal como grandes buyers ou alguma imprensa, mas a maior parte paga o seu espaço nos diferentes pavilhões. Só é possível entrar com credencial no evento, que não é aberto ao público. A portuguesa Dielmar está no pavilhão central, com a veneranda Eton e ou a referência italiana Cucinelli como vizinhas próximas. Não é fácil nem barato estar naquela zona, mas as mais de 14 edições da marca e as provas dadas permitem-no, explica ao P2 Pedro Certã, responsável pelas vendas internacionais e pelo desenvolvimento de marca, presente em mais de 30 países. Isso e os cerca de 20 mil euros pagos pelo stand. “Tem um retorno inegável”, diz Certã. A La Paz, que está no pavilhão L’Altro Uomo, junto à Portuguese Flannel, à Lighting Bolt e à Levi’s, acrescenta outra vantagem da regularidade na Pitti. “É bom para o posicionamento da marca: quando nos vêem edição após edição, isso dá-nos credibilidade”, explica José Miguel Abreu, co-fundador da etiqueta portuguesa. O apoio do programa comunitário Portugal 2020 permite-lhes pagar os cerca de 3700 euros pelo seu espaço, o mesmo que os ténis clean da Commoncut, fundada em 2011 em Barcelos e com fabrico em São João da Madeira, despende para estar no pavilhão iPlay.
A apresentação da marca de Fernando Figueiredo diz “proudly made in Portugal” e é a quarta edição em que se apresenta. Todos sabem que há muitos contactos que não se concretizam imediatamente em vendas ou negócios. “É muito um processo de research”, diz, do outro lado, João Pedro Vasconcelos, buyer para a loja portuense Wrong Weather. Para ele, dias depois, “Paris é o sítio das compras”. Mas estar aqui é incontornável. A Pitti perdura quando outras feiras, como a Bread&Butter, faliram há uns anos, e mesmo quando decorre durante a nova semana de moda masculina de Londres, um dos sintomas da vitalidade do negócio do menswear. Quer manter-se interessante neste “momento de incerteza” no sistema da moda, como descreve Lapo Cianchi, com marcas a juntar desfiles masculinos e femininos e a tecnologia a acelerar as estações e os prazos de vendas. “É o evento mais importante do calendário masculino e é a primeira feira desse calendário”, sublinha Fernando Figueiredo.
Na origem do que é hoje este evento que durante uma semana concentra atenções do sector, e traz mais uns milhares de pessoas a uma cidade já assoberbada pelo turismo, está Giovanni Battista Giorgini, aristocrata exportador que em 1951 convidou compradores e pessoas influentes para vir a Florença ver moda feminina em plena ressaca da II Guerra. Só em 1972 nasceria a Pitti Uomo, uma espécie de incubadora da moda masculina formal onde anos mais tarde Giorgio Armani mostraria a sua primeira colecção, por exemplo. Mais de 40 anos depois, recebeu Rick Owens ou Yohji Yamamoto e vários países convidados — esta edição, foi a Austrália.
Também para se darem a conhecer, a feira convida “novas marcas e novos designers que equiparem no seu trabalho o espírito da sua cultura e uma posição internacional”. Portugal está na lista de possibilidades de convites futuros, “porque está numa espécie de transição entre ser só um país de bons artesãos e fabricantes para ser um país que também oferece uma geração de designers com criatividade e com um twist original”, diz Lapo Cianchi. No fim de contas, “se não estás na Pitti Uomo, não és marca masculina”, diz Pedro Certã. Ela é também, considera o responsável da Dielmar, “a mais internacional. Todas as feiras são regionais, excepto a Pitti”.
Novas personagens
Também concordam, não evitando um sorriso, que “para o glamour da feira”, como descreve Fernando Figueiredo, o desfile exterior de homens a ser fotografados em poses estudadas e cuidadosamente descontraídas ou quotidianas tem um contributo importante. Os portugueses que por lá andam e a quem pedem fotografias são sorridentes e educados. Caminham quilómetros pela feira a ver as novidades da moda, mas também a fotografar. Mudam de roupa entre a manhã e a tarde, tanto pelo calor (ainda mais abrasador para quem veste camisa, gravata e casaco) quanto para variar os looks. São um grupo de cinco entre muitos estrangeiros — mas há menos dandies e peacocks do que noutras edições, diz quem visita a feira desde o boom do street style. “Começou com as redes sociais, e em 2012 começou a ter alguma importância fazer fotos na praça central”, recorda Farid Sadrudin.
No Inverno, até são mais numerosos, diz Amilton Estrela, 43 anos e fato cinza. Sempre muito solicitados e a funcionar sobretudo em grupo, “muitas vezes estamos lá fora”, na praça central sem sombras, “e vimos cá dentro”, ao pavilhão central cheio de ar condicionado, “para fugir”. Não só do calor, mas também “para fugir das máquinas, porque se torna cansativo”, admite Amilton Estrela.
“Com a passagem dos anos, já se sente um bocadinho uma [faceta de] Pitti tradicional e já se sente um bocadinho mais uma [faceta de] fashion week”, acrescenta Cláudio Silva, 40 anos, look navy e tatuagens pelo corpo. “Já se vêem muitos estilos a fugir do clássico, ou então a misturar o clássico com o urbano ou com o streetwear.” “Não somos contra a entrada de novas tendências, mas queremos manter esta”, a da alfaiataria, promete Rui Martins.
Esse ambiente social cambiante na Pitti Uomo é um sintoma de uma mudança orquestrada nos bastidores. “Trabalhamos há algum tempo a tentar ultrapassar a distinção rígida tradicional entre uma feira e uma semana de moda, tentando ter o melhor dos dois formatos”, diz Lapo Bianchi ao P2. Querem ter “a visão sobre o produto de uma feira e o impacto de comunicação e novas linguagens trazidas pelos melhores designers das semanas de moda” e por isso se desdobram em convidados especiais e novas secções de vendas, “especialmente porque ambos os formatos estão em dificuldades” devido à tecnologia, ao excesso de oferta. Alguns habituées, com a frieza de um olhar já nada deslumbrado, precisam de ser reconquistados, mas também que seja refinada a organização desses muitos mundos que a feira tenta abarcar. A estes ingredientes, juntam ainda uma pitada de cultura. No Palazzo Pitti, mas no seu interior ao invés do pátio ocupado pelo desfile da Off-White, nas salas opulentas das galerias reservadas ao vestuário, Olivier Saillard, historiador e director do Musée de la Mode de la Ville de Paris, montou a exposição The Ephemeral Museum of Fashion, para estimular ideias sobre os nossos usos da roupa.
“Não queremos tornar-nos uma verdadeira semana de moda”, diz Cianchi, mas respondem às mudanças da própria moda e sua hierarquia com “uma abordagem curatorial”, abrindo a porta “às novas personagens fortes do sistema de moda e que normalmente não aparecem nas feiras”. Já incluem linhas femininas, que têm as suas próprias feiras bem estabelecidas, mas o seu desafio continua a ser a moda masculina, onde, apesar de “os consumidores estarem a mudar, ainda há menos espaço para uma criatividade completamente desenvolvida do que na moda feminina”. A tentativa de abarcar mais públicos reflecte-se então depois na antropologia fashion do evento, onde o homem que se pavoneia já não é só dandy, mas usa o streetwear prontamente absorvido pelo sistema da moda.
Uma dessas novas personagens é obviamente Virgil Abloh. Mesmo quando outro criador, como Raf Simons, o considera pouco original, Abloh representa os multitaskers de uma geração — é DJ, designer, arquitecto, engenheiro, vai abrir um espaço artístico e ter exposições em museus. Representa a força do streetwear na silhueta da década e a intromissão de novos rostos muito procurados nos calendários da moda. E a Off-White é um sucesso de vendas garantido, diz João Pedro Vasconcelos, da Wrong Weather. As peças voam dos expositores. Isso, para a Pitti, é tão relevante quanto as projecções de Jenny Holzer ou a patine alternativa que a marca traz ao evento.
O primeiro desfile a que Abloh assistiu foi da japonesa Comme des Garçons. “Não era suposto estarmos lá”, sentiu na altura, na assistência da marca de culto em Paris. Agora, em Florença, é a cereja no topo do calendário especial da Pitti Uomo. O filho do hip hop e de imigrantes ganeses, disse aos jornalistas na manhã do desfile: “Achei que não havia lugar para a minha cultura na alta moda.” Grandiloquente na encenação da última noite da Pitti Uomo, não se coíbe de admitir que percebeu “que, para ter impacto na cultura, a melhor coisa a fazer é começar uma linha de moda, mais do que abrir uma galeria”.
O P2 viajou a convite da Pitti Imagine
Esta reportagem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO