O trauma guardado no corpo
David Machado escolhe o tema do trauma que advém de um episódio violento para iniciar uma viagem ao que a memória guarda "debaixo da pele" das personagens. O autor arrisca estilisticamente e afasta-se do convencionalismo narrativo do livro anterior.
Ao quarto romance, Debaixo da Pele, David Machado (n. 1978) decidiu arriscar uma estrutura narrativa diferente, não que seja mais complexa do que as dos anteriores, mas desviou-se do convencionalismo dos seus livros precedentes. Ao dividir o romance em três partes distintas – com as acções a decorrerem em tempos distantes uns dos outros – criou também uma voz narrativa para cada uma delas. As histórias contadas poderiam funcionar de maneira independente, não fossem tocar-se quase ao de leve em personagens que surgem nas outras partes.
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Ao quarto romance, Debaixo da Pele, David Machado (n. 1978) decidiu arriscar uma estrutura narrativa diferente, não que seja mais complexa do que as dos anteriores, mas desviou-se do convencionalismo dos seus livros precedentes. Ao dividir o romance em três partes distintas – com as acções a decorrerem em tempos distantes uns dos outros – criou também uma voz narrativa para cada uma delas. As histórias contadas poderiam funcionar de maneira independente, não fossem tocar-se quase ao de leve em personagens que surgem nas outras partes.
A primeira delas, Júlia não está cá (1994), é uma narrativa minuciosa, quase segundo a segundo, daquilo que se passa na cabeça de uma jovem de 19 anos, Júlia, que foi vítima, há um ano atrás, de violência física. Vive em casa dos pais e o vazio tomou conta dela depois do acontecido. Um casal vizinho no prédio tem repetidas discussões violentas, e uma filha de quatro ou cinco anos, Catarina.
A salvação dessa criança passa a fazer parte da tentativa de Júlia para se salvar a si própria, ela que vai gerindo (quase tentado a escrever "mal") a situação em que o acontecimento a deixou: torna-se mais violenta, despreza as mulheres, e desconfia de tudo e de todos. Mas apesar de, aparentemente, a sua cabeça estar a lidar bem com a situação, é o seu corpo que guarda a memória do trauma e que reage de maneiras inesperadas quando ela menos espera: “O pânico que incendeia o peito de Júlia vem de outro sítio e o toque do cotovelo da mulher não é mais do que um catalisador, uma espécie de portal para outra dimensão que existe algures dentro de si.”
A segunda parte do romance, titulada Notas para um romance sobre uma rapariga que não suporta ser amada (2010), é aquela em que a inovação estilística é mais notória, a começar logo pela mancha gráfica do texto. Aqui, e dezasseis anos passados sobre o acontecimento que marcou a vida de Júlia, a pequena Catarina (agora uma jovem mulher) está de regresso à história. Um escritor, Salomão, tenta várias anotações que lhe permitam escrever um romance sobre ela, e vai alterando os factos, ‘reescrevendo’ uma nova realidade (passada), como se assim conseguisse salvar Catarina de um passado do qual se mantém refém.
As cassetes do Manuel (2017), a terceira parte, surge no romance como uma porta de esperança. A voz narrativa é a de um miúdo de onze anos, Manuel, filho da personagem Júlia, que ocupa o começo do livro e que regressa à história vinte e muitos anos depois. O filho tenta também ele lidar com o trauma da mãe (como se este lhe tivesse chegado pela genética), e acaba a tentar perceber alguns dos seus ensinamentos, sobretudo no modo como ela lhe diz que se deve relacionar com os outros: “O que ela disse foi que, quando somos amigos de alguém, acabamos por confiar demasiado nessa pessoa e deixamos de estar vigilantes e isso é como ir para uma batalha com um alvo pintado na testa.”
Neste seu mais recente romance, David Machado escolhe o tema do trauma que advém de um episódio violento para depois iniciar uma viagem ao que a memória guarda "debaixo da pele" das personagens, e assim tentar perceber as engrenagens de todo esse mecanismo. Podendo a vida ser um lugar insuportável, as personagens de Machado vão, de uma forma ou de outra, fazendo escolhas sempre em busca de um qualquer alívio, que pode ser sob a forma de esquecimento, de atitudes violentas, de reacções físicas, ou outras. O que as personagens parecem ter por certo é a verdade de que o trauma fica guardado no corpo, debaixo da pele, e é como se o que foi vivido nunca parasse de acontecer. O romance acaba por mostrar personagens em permanente reconstrução e movendo-se em paisagens afectivas também elas mais ou menos derruídas.