O inferno somos nós

Chora-me a alma pelas vidas que foram interrompidas, por aquele pedaço de terra magnífico que sucumbiu às chamas, por tudo o que num ápice deixou de ser

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Adriano Miranda

Ainda estava a tentar sintonizar-me com o mundo, olhos mal abertos, espírito pouco acordado, quando ouço nas notícias a atualização do drama de Pedrógão Grande. E íamos, a esta hora, em 43 mortos. Que informação terrível para se ter logo pela manhã. Custa tanto processar uma informação destas que cheguei a pensar “não terei acordado e estarei a ter um pesadelo?”

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Ainda estava a tentar sintonizar-me com o mundo, olhos mal abertos, espírito pouco acordado, quando ouço nas notícias a atualização do drama de Pedrógão Grande. E íamos, a esta hora, em 43 mortos. Que informação terrível para se ter logo pela manhã. Custa tanto processar uma informação destas que cheguei a pensar “não terei acordado e estarei a ter um pesadelo?”

Mas o facto é que não é pesadelo. O facto é que ontem deflagrou um incêndio com tal violência que ceifou a vida a 63 pessoas (e veremos se este número não aumenta).

Chora-me a alma pelas vidas que foram interrompidas, por aquele pedaço de terra magnífico que sucumbiu às chamas, por tudo o que num ápice deixou de ser.

A minha vida de cigana de professora contratada tem-me levado a trabalhar e a conhecer muitos locais de que apenas tinha ouvido falar. Um desses locais foi Castanheira de Pera na zona do Pinhal Norte, como se costuma referenciar. Para mim, e à primeira vista, mais não era do que uma minúscula vila perdida no meio do Pinhal. Mas rapidamente se aprende a gostar dessa zona. Rapidamente se percebe que Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, são zonas paradisíacas, enquadradas por um verde maravilhoso, que cria paisagens de sonho. Num mês criei um vínculo com a terra e as suas gentes, que se revelaram autênticas, que ainda hoje persiste. Por isso, esta tragédia me marca como ferro em brasa e me deixa a alma e o coração em cinzas, tal como se encontra a paisagem que rapidamente desapareceu à frente dos nossos olhos.

E nós? O que fazemos? Assistimos impotentes a mais uma tragédia. Enquanto jantávamos, ouvíamos o que se passava. Quiçá até nos teremos comovido e soltado uma ou outra lágrima. Repetimos frases como “Meu Deus!”, “Que horror!”, “Morte a quem terá provocado esses incêndios!” (Não conseguimos acreditar que tudo se deve a uma trovoada seca! Precisamos de culpados!) E, com essas palavras e a nossa revolta, sentimo-nos um pouco reconfortados, percebemos que pouco podemos fazer e dizemos “passa-me o molho para as batatas, se faz favor!”

Sentimos profundamente as perdas de Pedrógão. Tal como ficámos indignados e tristes com as mortes de Londres (curiosamente, e coincidência macabra, também uma tragédia provocada pelo fogo). Bradamos contra o DAESH sempre que temos conhecimento de mais um atentado e de mais uma vez, mortes de inocentes. Escrevemos nas redes sociais o nosso lamento. Juntámos à nossa foto de perfil um “Je suis…qualquer coisa”. Mas o certo é que, depois disto tudo, iremos virar a cara e dizer “passa-me o molho para as batatas”.

Estamos demasiado habituados ao sofrimento alheio. Sentimos uma piedadezinha ao mesmo tempo que, bem lá no fundo, nos regozijamos por a tragédia ser “lá longe”. Por vezes, mais perto, como hoje, mas continua a ser “lá”…

O imenso sofrimento a que assistimos, muitas vezes em direto, retirou-nos a capacidade de sentir pouco mais que uma empatia momentânea com o sofrimento alheio.

Infelizmente a tragédia aconteceu. Numa proporção que nunca me lembro de ter acontecido. Lembro bem quando a minha serra, a da Estrela, ardeu. Lembro da tristeza imensa de ver desaparecer aquilo que era o nosso orgulho. Apenas terei sentido uma parte do desespero das gentes de Pedrógão. Tenho certeza disso. Mas espero que esta tragédia não venha a cair no famoso “passa-me o molho para as batatas, se faz favor”. Mais que encontrar culpados, se é que os há, é necessário que a tragédia traga como resultados, e mais uma vez, a importante questão da limpeza das matas. Não encontraremos gente disposta a fazê-lo? Mais que encontrar culpados, temos de deixar de pensar no molho das batatas e reunirmo-nos em volta desta dor e tentar criar uma onda de apoio a quem tudo perdeu…provavelmente até a esperança.

O dia amanheceu sombrio. Ligeiramente mais fresco…parece-me. Escuro… o fumo e o seu cheiro chegam até aqui, à Covilhã…Fica a esperança que os deuses tenham alguma comiseração pelas gentes que tanto sofreram e pelos bombeiros que continuam no combate às chamas e nos enviem um dia mais fresco e, quem sabe, com alguma chuva.

Concluo, no fim, que “o inferno somos nós”. Somos nós quando vemos tragédias acontecerem uma e outra vez e nada fazemos: não exigimos melhorias, não exigimos alteração de medidas. Não questionamos nem exigimos coisa nenhuma…Que ordenamento florestal temos nós para se dar uma tragédia destas? Sentimos que a nossa obrigação é sentir pena do que aconteceu, sentimos como obrigação ajudar com algum dinheiro e algum apoio às vítimas. Deste modo, sentimos que somos bons samaritanos e que ajudámos o próximo. Aligeiramos a nossa consciência com medidas mais ou menos fáceis. Não exigimos um mundo melhor e seguimos em frente aguardando nova tragédia, que sabemos que, cedo ou tarde, chegará, apagando da nossa consciência a tragédia última. Por isso, mais que as chamas, reafirmo “o inferno somos nós”, na nossa inatividade.