A entreajuda
A semana que passou foi marcada por dois incêndios — muito diferentes nas origens, tão parecidos nas consequências — e em ambos a questão da solidariedade é forçosamente a questão central.
O mais importante agora, pouco mais de um dia após o incêndio em Pedrógão Grande que vitimou mortalmente mais de meia centena de pessoas, é socorrer as populações afetadas, dar apoio aos sobreviventes e às famílias das vítimas e prestar auxílio aos bombeiros e à proteção civil. Essa é a primeira linha da solidariedade. Mas a solidariedade é necessária para lá do imediato: como torná-la mais perene e mais perfeita?
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O mais importante agora, pouco mais de um dia após o incêndio em Pedrógão Grande que vitimou mortalmente mais de meia centena de pessoas, é socorrer as populações afetadas, dar apoio aos sobreviventes e às famílias das vítimas e prestar auxílio aos bombeiros e à proteção civil. Essa é a primeira linha da solidariedade. Mas a solidariedade é necessária para lá do imediato: como torná-la mais perene e mais perfeita?
A semana que passou foi marcada por dois incêndios — muito diferentes nas origens, tão parecidos nas consequências — e em ambos a questão da solidariedade é forçosamente a questão central. Em Londres, pelo menos meia centena de pessoas morreram numa torre residencial: num dos bairros mais finos da opulenta capital britânica, os serviços sociais e de proteção civil foram forçados a uma poupança tão restritiva que até permitiu devolver impostos a alguns dos seus habitantes mais ricos. Mas a torre onde viviam os habitantes pobres desse bairro rico não tinha dispositivos anti-incêndio em número suficiente e fora revestida com um material inflamável mais barato em duas libras do que o seu equivalente à prova de fogo — no total, uma vergonhosa poupança de cerca de 5 mil euros nas origens de um incêndio que nos diz muito sobre o colapso da solidariedade na era dos cortes orçamentais.
O incêndio de Pedrógão Grande tem circunstâncias inteiramente diversas e sobretudo origens muito diferentes. Nos próximos tempos haverá certamente uma discussão sobre o que mais poderia ter sido feito para evitar tantas vítimas mortais. Mas seria importante que a discussão fosse para lá disso e que entrasse no campo da nossa responsabilidade coletiva perante o meio ambiente e entre todos nós. Mais uma vez, é uma questão de solidariedade, antes, durante e depois da catástrofe. É essencial que haja espaço democrático e vontade política para que o debate especializado seja feito e dele nasçam propostas inovadoras (que até podem ser velhas práticas, rejuvenescidas, como a da refundação de um verdadeiro serviço de proteção de florestas) e o mais abrangentes possível, para implementar num calendário claro e publicamente conhecido. As alterações climáticas vão trazer consigo mais ocorrências de fenómenos meteorológicos extremos, num país em que a floresta tem uma grande prevalência territorial e uma enorme importância económica. Temos de exigir todos que Portugal se prepare melhor e que tome a dianteira desta agenda ambiental, no cruzamento com a proteção civil.
Este tema extravasa fronteiras. Como europeísta crítico (e impenitente) que sou, não aceito que certos governos ponham na moda a necessidade de uma política de defesa europeia, ou invistam recursos numa guarda costeira da UE, sem que outros governos lutem pela criação de um verdadeiro serviço europeu de proteção civil, com recursos próprios, supletivo aos serviços nacionais e paradigmaticamente diferente dos atuais mecanismos de cooperação que estão muito abaixo da eficácia necessária. E não me venham com o pretexto cínico de que é por razões económicas que isto não se faria: segundo a Agência Europeia do Ambiente, as perdas económicas resultantes de eventos climáticos extremos foram de 433 mil milhões de euros no período 1980-2015. Com uma fração disso, e com as economias de escala resultantes de compras conjuntas e treinamento coordenado de equipas, a UE pode ter uma força permanente de proteção civil e uma frota de meios aéreos capazes de serem acionados em minutos no caso de desastres naturais de grande dimensão que, pela sua natureza, não reconhecem fronteiras. Por que espera Portugal para o propor?
No século XIX, uma certa moda darwinista quis acreditar que o sentido da evolução era o de uma permanente competição pela sobrevivência. Infelizmente, é uma moda que não passou de moda e que ciclicamente mina a primazia moral e política da solidariedade. Nessa época, Kropotkine escreveu um livro chamado A Ajuda Mútua, contrariando essa ideia e afirmando que as espécies mais resilientes — a começar pela humana — eram aquelas em que a solidariedade era mais forte. Gosto de acreditar nesta ideia de que a nossa maior evolução se faz sempre no sentido da maior entreajuda. Mas seja assim ou não, há uma coisa que a pequenez do planeta e a grandeza da crise ecológica tornam cada vez mais evidente: o egoísmo não é só feio e cruel — é estúpido também.