Poderá ser Fátima objecto da História?
A historiografia de Fátima, feita com base em documentos, dificilmente poderá progredir.
A História, como historiografia científica (não apologética), já produziu alguns textos fundamentais sobre Fátima. Além disso, surgiram textos polémicos e de divulgação de valor desigual, alguns que quase esqueceram aquilo que cientistas da História tentaram analisar, com base nos documentos possíveis, ao longo de muitos anos. Ficou claro — porque a História não julga, mas procura a interpretação objectiva — que a mensagem de Fátima se foi modificando desde 1917, tendo sempre como limites a própria política do Estado e da Igreja. Por isso, se ela é nacionalista (recordem-se os cânticos que se continuam a entoar nos templos e nas procissões) e anticomunista, nunca foi antifascista e nem sequer antinazi, apesar da guerra, das perseguições racistas e do Holocausto.
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A História, como historiografia científica (não apologética), já produziu alguns textos fundamentais sobre Fátima. Além disso, surgiram textos polémicos e de divulgação de valor desigual, alguns que quase esqueceram aquilo que cientistas da História tentaram analisar, com base nos documentos possíveis, ao longo de muitos anos. Ficou claro — porque a História não julga, mas procura a interpretação objectiva — que a mensagem de Fátima se foi modificando desde 1917, tendo sempre como limites a própria política do Estado e da Igreja. Por isso, se ela é nacionalista (recordem-se os cânticos que se continuam a entoar nos templos e nas procissões) e anticomunista, nunca foi antifascista e nem sequer antinazi, apesar da guerra, das perseguições racistas e do Holocausto.
Ninguém põe em causa que Fátima acabou por ser um fenómeno social de tipo religioso e popular, mas poderá sempre questionar-se se a Igreja não foi apoiando, enquadrando e mesmo criando esse fenómeno, desde o início, tomando como modelo Lourdes e dando-lhe a configuração de um lugar de peregrinação (e não de romaria) e de penitência pelos “pecados do Mundo”, salientando o “pecado do ateísmo” e não o pecado do racismo. Como poderia fazê-lo se o próprio cardeal patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, nas suas pastorais, bem como outros membros da Igreja oficial atacaram frontalmente o comunismo, mas justificaram, em alguns textos, a própria Inquisição, como instituição unificadora da religião em Portugal?
Por isso também é indubitável que Fátima é, acima de tudo, um fenómeno político, de oposição da Igreja ao laicismo e ao anticlericalismo republicanos (recorde-se, porém, que não há anticlericalismo sem haver clericalismo) e, depois, ao comunismo e em defesa do citado nacionalismo. A Igreja, que sempre desejou (como na Itália fascista) um acordo com o Estado, aceitou a Concordata de 1940. Dava-lhe regalias, como a impossibilidade do divórcio nos casamentos católicos (artigo 24.º), e direitos, alguns injustamente tirados durante a República, como a posse dos templos, mas também concordou que os bispos só fossem nomeados se o Estado não visse razões políticas que o impedissem (artigo 10.º).
Do mesmo modo, Igreja e Estado acabaram por naturalmente defender ou por aceitar as causas da beatificação e da santificação dos videntes Francisco e Jacinta, mesmo que à custa da própria ciência médica, dado que os “milagres” apontados para as justificar foram sempre mais objectos da “fé” (devido ao exame feito, em encomenda, por médicos católicos, num caso, pelo menos, contra o diagnóstico de clínicos hospitalares) do que da ciência. A Igreja promoveu essa “santificação, mas o Estado esteve presente nas duas situações, quando os papas aqui as vieram anunciar. E o 25 de Abril, que consagrou ou devia ter consagrado o princípio da secularização da sociedade civil e da separação do Estado das Igrejas (embora pela letra da lei só prescrevesse — o que é formal e talvez substancialmente diferente — a “separação das Igrejas do Estado”), já sucedeu há mais de 40 anos!
É verdade que teólogos e membros da hierarquia católica têm tentado actualizar a mensagem de Fátima, cujo santuário mariano jamais poderia ser posto em causa (nem isso alguém pretende, como princípio, embora o possa considerar arrumado no âmbito das crenças católicas, de variado tipo, e criticar o seu tom de exploração da crendice popular). Não pretende por razões eclesiásticas, religiosas, sociais e políticas. Foi assim que, continuando afirmações já apresentadas anteriormente pelo próprio Ratzinger (Bento XVI) e tomando como exemplo declarações do Papa Francisco, se afirmou que as chamadas “aparições de Fátima” eram afinal “visões” ou, talvez melhor, experiências religiosas ou místicas e que Fátima deveria ser mais um lugar de alegria e de defesa da paz e da caridade (ou da fraternidade) do que da penitência, tese que afinal se deveria sustentar nas Escrituras e que Erasmo fixou no velho princípio “Monachatus non est pietas”, ou seja, o monacato ou o isolamento monástico praticado, de oração e penitência, no cristianismo de então (tal como sucedeu recentemente com a irmã Lúcia) não significa, por si só, “piedade”, amor ao próximo, afirmado e vivido. E como essa caridade poderia ser vivida pelos católicos e por todos os homens de boa vontade (como o é em muitos casos) neste tempo conturbado, onde grassa o fundamentalismo religioso, as mortes de inocentes, as perseguições e as fugas desesperadas!
Teólogos e padres de variada formação discutiram a mensagem, desde o padre Mário de Oliveira, injustamente esquecido devido à sua categórica negação de Fátima, ao meu colega Doutor Anselmo Borges, ao dominicano Frei Bento Domingues, ou até a D. Carlos Azevedo, cuja formação de historiador lhe dá também uma noção da objectividade. Foi talvez o que de mais interessante fez a Igreja, mais ou menos oficial ou marginal. Mas o certo é que continuou a ideia do sacrifício, o pagamento de promessas, a ideia de que Fátima seria sempre (mesmo que não se diga ou até se diga o contrário) um “dogma de fé”, justificado pela santificação com os respectivos milagres (num futuro próximo será, obviamente, Lúcia a ser promovida a Santa Lúcia, o que é mais do que lógico, dado que foi ela com a Igreja oficial a promover o fenómeno de Fátima). E tudo isso com a presença do Estado que vê em mais dois santos portugueses um “sucesso nacional”.
Resta a pergunta, que foi a razão deste artigo: será que Fátima pode ser um objecto da História? Será que a historiografia de Fátima pode vir a progredir? A História, como ciência (nunca completamente imparcial, mas não confessional, como toda a Ciência), feita com base em documentos, dificilmente poderá progredir. Porquê? Porque por mais que tenha feito o Santuário de Fátima na recolha e divulgação de documentos (a que chamou Documentação Crítica de Fátima), e por mais que acreditemos que divulga tudo o que pode, o certo é que só se poderá evoluir no aprofundamento do objecto desde que se dêem a conhecer algumas fontes, como o epistolário oficial e particular do cardeal patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira ou a correspondência e o arquivo integral do “quarto mensageiro” (como já lhe chamaram) Nunes Formigão. Sem isso, apenas poderemos completar os estudos de documentos publicados ao longo do tempo, que obviamente nos mostram que se acreditava (ou não) nos “milagres” de Fátima, como se acredita nos “milagres” ou na intercessão de Santo António, ou da santa feita pelo povo Maria Adelaide, em Arcozelo, ou da Alexandrina de Balazar, que Cerejeira, já em período de decadência e fora do patriarcado, assegurava que, por seu intermédio, se conseguira salvar Salazar do atentado de 4 de Julho de 1937 (como o bispo de Coimbra também afirmava, mas por intercessão da Rainha Santa) ou conseguira a difícil decisão de o Estado fundar tardiamente a Universidade Católica em 1971 (Mensageiro de Bragança, 7 de Dezembro de 1973). São, afinal, ainda possíveis estudos de história religiosa, que supõem uma análise ideológica, política ou psicológica, como o são de análise técnica e formal de documentos ou de sociologia ou de antropologia religiosas. Pouco mais.
E, felizmente, agora podem realizar-se em liberdade, ao contrário do que sucedeu no Estado Novo. Recordemos que o professor Sílvio Lima foi demitido em 1935 sobretudo por ter criticado a obra de Cerejeira A Igreja e o pensamento contemporâneo (1924), ainda nessa altura somente padre e professor de História da Faculdade de Letras de Coimbra, que propunha como tese a recristianização dos intelectuais, e por ter escrito como dissertação para as provas para professor extraordinário da mesma faculdade a obra, ainda publicada pela Imprensa da Universidade (logo extinta por Salazar) e de imediato censurada, O Amor Místico. Noção e valor de uma experiência religiosa (1934), que pretendia dar uma explicação psicológica das experiências místicas.
Algo de idêntico sucedeu mais tarde com padres que visaram o aggiornamento da Igreja, como — só para citar um caso significativo — aconteceu com a exoneração compulsiva (embora efémera, em resultado de um recurso) de Joaquim Ferreira Gomes como professor também da Faculdade de Letras de Coimbra, porque havia escrito o livro “revolucionário” O Padre num mundo em transformação (1968).