França: a democracia distorcida pelo sistema eleitoral
Em termos de legitimidade democrática, é mau ter um tão grande desfasamento entre o voto do cidadão e a representação parlamentar. Gera raiva contra o sistema.
1. Imaginemos que a França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon ou Frente Nacional de Marine Le Pen tinham ganho a primeira volta das legislativas do passado dia 11 de Junho, com uma percentagem 32,3% dos votos, a mesma que obteve a República em Marcha de Emmanuel Macron em coligação com o MoDem de François Bayrou. Imaginemos, também, que as projecções para a segunda volta davam a um desses partidos, tal como dão à coligação presidencial de Macron, uma esmagadora maioria absoluta de deputados no parlamento. Para além do choque generalizado que provocaria tal resultado, certamente o debate público e político subsequente já estaria marcado por uma questão: como era possível com menos de 1/3 dos votos ter uma maioria absoluta de deputados? Era tal sistema legítimo do ponto de vista democrático? Seria genuinamente representativo da vontade de população?
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1. Imaginemos que a França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon ou Frente Nacional de Marine Le Pen tinham ganho a primeira volta das legislativas do passado dia 11 de Junho, com uma percentagem 32,3% dos votos, a mesma que obteve a República em Marcha de Emmanuel Macron em coligação com o MoDem de François Bayrou. Imaginemos, também, que as projecções para a segunda volta davam a um desses partidos, tal como dão à coligação presidencial de Macron, uma esmagadora maioria absoluta de deputados no parlamento. Para além do choque generalizado que provocaria tal resultado, certamente o debate público e político subsequente já estaria marcado por uma questão: como era possível com menos de 1/3 dos votos ter uma maioria absoluta de deputados? Era tal sistema legítimo do ponto de vista democrático? Seria genuinamente representativo da vontade de população?
2. Ainda há pouco tempo atrás, na altura das eleições presidenciais norte-americanas, muitos criticaram duramente o sistema eleitoral dos EUA. Era obsoleto e muito pouco democrático: uma eleição indirecta, feita por um colégio eleitoral de delegados dos Estados da federação. Com este sistema eleitoral, a eleição foi ganha por candidato com quase menos três milhões de votos a nível nacional — Donald Trump —, com 46,1% dos sufrágios, contra 48,2% de Hillary Clinton. Claro que tal resultado também só foi possível porque o sistema eleitoral de quase todos os Estados da federação é de tipo maioritário. O vencedor da votação em cada Estado elege todos os delegados para o colégio eleitoral, o qual escolhe o presidente da república. Não há representação proporcional. Se o sistema eleitoral reflectisse uma proporcionalidade do voto nos delegados a história seria outra: muito provavelmente Hillary Clinton teria sido eleita.
3. No próximo dia 18 de Junho irá decorrer a segunda volta das legislativas francesas. As projecções dão à República em Marcha de Emmanuel Macron, em coligação com o MoDem de François Bayrou, 400 ou mais deputados num parlamento de 577. Se ocorrer assim, será um facto político notável. Ter uma maioria absoluta parlamentar com cerca de 70% ou mais dos deputados é algo notável em qualquer democracia no mundo. Ter obtido essa maioria absoluta menos de 1/3 dos votos dos eleitores é ainda mais notável. Se tivermos em conta que mais de 50% dos eleitores se abstiveram de votar na primeira volta, mais extraordinário ainda se torna o resultado. Sejam quais forem as razões da elevadíssima abstenção dos eleitores, na prática tal maioria absoluta é resultado de uma escolha efectiva de apenas 16% da população. Não é um resultado anormal apenas devido à elevadíssima abstenção. Nem pode ser inteiramente justificado pelo facto de o sistema maioritário ser comum, nas suas variantes, a outras democracias ocidentais. Nem mesmo tendo em conta que o sistema eleitoral utilizado é o típico da V República Francesa, desde a Constituição de 1958.
4. Olhemos para os resultados eleitorais das legislativas francesas nos últimos vinte anos. Dois factos saltam rapidamente à vista na história recente das eleições legislativas em França: nunca ninguém ganhou eleições legislativas com tão poucos votos na primeira volta; nunca ninguém teve uma maioria absoluta de deputados tão esmagadora da oposição, a qual poderá ultrapassar os 400 se as previsões para a segunda volta se confirmarem. Provavelmente, será o parlamento menos representativo da pluralidade política da sociedade francesa de toda a V República. Nas últimas duas décadas, o caso que mais se aproxima é o das legislativas de 2002. Mesmo assim, na altura a UMP/Os Republicanos tiveram 33,3% dos votos e “apenas” 309 deputados. Para mostrar ainda melhor o problema: em 2012 o Partido Socialista e os seus aliados políticos — a coligação da maioria presidencial de François Hollande —, tiveram cerca de 40% dos votos e 331 deputados.
5. Algo vai mal na democracia francesa em termos de representatividade e pluralismo político. É certo que o sistema eleitoral, uninominal maioritário, a duas voltas, já é usado há muito tempo. Não foi uma criação de Emmanuel Macron. Como já referido, é característico da V República Francesa iniciada com a Constituição de 1958. A grande excepção foram as eleições legislativas de 1986, as quais foram realizadas num único acto eleitoral e usando o sistema proporcional. Na altura, obrigaram a uma coabitação do Presidente François Mitterrand com uma maioria parlamentar de direita. Por isso ser visto como indesejável pelos partidos de poder foi abandonado. Quanto ao sistema maioritário, são bem conhecidos os argumentos a seu favor. O objectivo é gerar maiorias e estabilidade política. Isso garante que um presidente tenha uma maioria para implementar o seu programa político. São argumentos importantes. Todavia, não o tornam incontestável. Em termos de legitimidade democrática, sobretudo em democracias que se pretendem pluralistas, é mau ter um tão grande desfasamento entre o voto do cidadão e a representação parlamentar. Gera raiva contra o sistema.
6. Numa lógica genuinamente democrática os sistemas eleitorais não são bons ou maus porque favorecem, ou desfavorecem, as nossas preferências político-ideológicas. Mas a sensação que fica é que o debate público e político só ocorre quando as eleições não dão certos resultados, visto como “bons” a priori. Aqui levantam-se questões incómodas: o debate sobre o sistema eleitoral dos EUA ocorreu porque este é objectivamente criticável em termos democráticos, ou ocorreu porque levou Donald Trump ao poder e afastou Hillary Clinton? No caso francês, raramente vemos o sistema eleitoral a ser questionado pela imprensa e classe política, como foi nos EUA. (Apesar de tudo, esta semana está a ocorrer em França um debate público e político sobre o assunto). Mas será porque o sistema eleitoral é bom de um ponto de vista genuinamente democrático, ou porque produziu o resultado desejado: a República em Marcha de Macron e o MoDem obterão uma larga maioria absoluta de deputados? A cultura política que se enraizou na União Europeia leva-nos a suspeitar que a resposta é a segunda. Basta pensar nos referendos: parecem ser maus porque permitem dar vitórias aos opositores à União Europeia e/ou a mais integração. O resultado é que os populismos, à direita e à esquerda, têm aqui argumentos para atacar o establishment e a sua hipocrisia. Distorcer o voto dos cidadãos para proteger a democracia não é grande ideia.