No bairro São João de Brito, há 40 anos que os impostos “não compram direitos”
Com calo de promessas vãs, os moradores do bairro São João de Brito, em Lisboa, voltam a alimentar a esperança de ver as casas em seu nome e o bairro reabilitado. Cada uma das casas tem imprimido o esforço das famílias em construi-las. Por isso resistiram mais de 40 anos na margem da cidade.
Quando deixou Angola, Pepita Moura Prata não entrou no país a salto, mas nem isso a livrou de uma morada na clandestinidade. A casa onde mora há 32 anos está ilegal aos olhos do registo predial. Nunca fez grandes obras por não saber que destino teria o bairro São João de Brito, paredes meias com o Aeroporto de Lisboa, que aguarda há mais de 40 anos pela sua legalização.
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Quando deixou Angola, Pepita Moura Prata não entrou no país a salto, mas nem isso a livrou de uma morada na clandestinidade. A casa onde mora há 32 anos está ilegal aos olhos do registo predial. Nunca fez grandes obras por não saber que destino teria o bairro São João de Brito, paredes meias com o Aeroporto de Lisboa, que aguarda há mais de 40 anos pela sua legalização.
Agora parece ser de vez: a Câmara de Lisboa anunciou que vai registar os lotes em nome dos residentes e investir dois milhões de euros na requalificação do bairro. “É esperar para ver”, diz a maioria dos moradores quando se fala em expectativas. Américo Lopes, de 62 anos, já viu tantas promessas que não tem “mais esperança para gastar”.
Pepita viveu quase metade da vida na casa que comprou. Por ela, paga impostos e uma renda à câmara. “Mas isso nunca me comprou direitos” diz aos 80 anos, sentada na sala atulhada da casa onde vive com dois filhos desempregados — a reforma de 420 euros tem de chegar para todos. As ruas são limpas “quando calha”, só vê passar ao camião do lixo e a carrinha dos correios. É fácil sentir-se excluída num bairro em que “ninguém põe os pés”.
Quando Maria de Fátima Martins se mudou, não havia água canalizada. Criou-se a associação de moradores, que agora preside, “para reivindicar esse direito”, mas os esgotos ficaram por conta dos residentes. As estradas “são uma manta de retalhos”: a gravilha que cobre as vias não alcatroadas foi a que sobrou das obras na Avenida do Brasil, ali ao lado. “A câmara não gastou aqui um tostão. Se pagamos impostos, porque somos tratados como ilegais?”, farta-se de questionar Américo.
Vivia-se o Período Revolucionário em Curso (PREC) quando a Câmara de Lisboa cedeu o terreno aos retornados que, depois do 25 de Abril, rumaram à capital. Outros, como Américo Lopes, trocavam as “terras” pela capital e foram “ver que espacinho havia”, tal era a falta de oferta no mercado de habitação. “Era tudo terra e barracas” quando Américo fez a marcação do terreno e obteve licença da câmara para construir a sua casa azul. Na altura pagava à autarquia uma renda baixa, que “nem andava perto dos 55 euros” da actual.
“Cada um construía onde e como queria”, conta. Uma liberdade patente nos segundos andares feitos em madeira, nas placas de zinco a fazer de parede, nas casas abarracadas a misturar o cimento e as chapas. Mas estas já são uma minoria. Nos anos 90, cerca de metade do bairro aceitou a oferta de João Soares, então autarca de Lisboa, para ser realojado noutras zonas da cidade. Pepita, de tantas voltas que já deu, “não queria dar mais nenhuma”. Não aceitou: “Queria ver se morria aqui”. Ficaram 120 famílias.
“O vereador Vasco Franco dizia que dava mau aspecto à cidade ter aqui o bairro [nas vésperas da Expo 98]”, recorda Maria de Fátima. Viu muitos saírem e arrependerem-se. “Afinal este bairro é uma pequena aldeia”, de casas térreas, com a porta a dar para a rua, sem passeios. Onde se pedem alfaces à vizinha que tem horta e o café se paga a fiado.
“Outra Alvalade”
O chão da sala de José Jesus Alves levanta cada vez que chove. A parede da trás da casa, encavalitada numa encosta, “não sabe como se aguenta”. “Se cá ficar, a primeira coisa que faço é pedir para me assentarem o terreno”, confessa. A dúvida está na compra do lote à câmara: dependendo do valor que o executivo definir, José Jesus saberá se tem condições para manter a casa que começou a construir há 45 anos. Era então uma barraca de zinco forrada com jornais, presa com “dois quilos de brochas”.
Quando espreita por entre as casas do bairro, José Jesus vê os prédios a que chama “a outra Alvalade”. “Toda a gente sente que o bairro é negligenciado. Não estando longe geograficamente, estamos isolados humanamente. Chama-se marginalização”, diz Maria de Fátima Martins, para definir os últimos 40 anos. Para ela, as “pessoas de Alvalade não conhecem o miolo do bairro. Acham que é uma barracaria”.
Ao balcão do bar da associação juvenil, Américo e João Leal recordam a visita de António Costa ao bairro, quando era autarca. “E foi na altura da campanha, senão eles não apareciam aqui”, diz João. Na altura havia uma equipa de futebol feminino na associação. “Agora não há crianças nem jovens. Isso é quando havia casas aqui”. Américo vai lá fora apontar para os espaços vazios.Alguns ainda têm os azulejos de antigas cozinhas.
João Leal mudou-se para o São João de Brito há “dez ou onze anos”. Já frequentava o bairro, era sócio da colectividade e desempregado. Tinha tudo para querer aceitar o trabalho como sócio do bar onde “os vizinhos vêm jogar cartas e dominó”. Vai dando para pagar as contas e ir à terra, Angra do Heroísmo, uma ou duas vezes por ano. Mas ainda não chega para a casa que queria ter. “Ai eles que me arranjassem uma e eu ficava com ela. Era a coisa que mais gostava, era ter uma horta”.
O sossego do bairro só é interrompido pelo vai e vem dos aviões e pelo frenesim da Segunda Circular. A casa de Francisca Vinhais dá as costas ao terminal 2 do Aeroporto Humberto Delgado, onde partem as companhias low cost. Pede para não a pôr a sonhar, “que a gente aqui já não pode”. Trazer a casa às costas de Luanda, em 1974, e o esforço de construir a casa numa terra onde não tinha nada, “foi viagem suficiente”. Quer deixar “algo bom” para os filhos. “Se isto for um sonho, sonha-se pr’aqui”.