Continua a chover sobre Francisco Camacho
Dez anos depois da estreia de Blessed, o solo que compôs expressamente para o bailarino português, Meg Stuart trá-lo de volta ao Porto e a Lisboa. A peça envelheceu bem, diz, o mundo nem por isso.
Quando Meg Stuart a viu pela primeira vez em versão de bolso, na maquete que a cenógrafa Doris Dziersk lhe mostrou e que imediatamente se tornou no princípio muito auspicioso de uma nova peça, a chuva não tinha a violência cataclísmica do apocalipse ambiental que é impossível não ver agora em Blessed. Mas mesmo caindo a conta-gotas de um pequeno aspersor, era chuva suficiente para destruir um mundo inteiro em poucos minutos, garantiu-lhe Doris, que tinha trazido a ideia de trabalhar com cartão e água de uma temporada na América Latina e dessas cidades eternamente precárias, eternamente temporárias que até lá chegarmos todos tomamos como alucinações.
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Quando Meg Stuart a viu pela primeira vez em versão de bolso, na maquete que a cenógrafa Doris Dziersk lhe mostrou e que imediatamente se tornou no princípio muito auspicioso de uma nova peça, a chuva não tinha a violência cataclísmica do apocalipse ambiental que é impossível não ver agora em Blessed. Mas mesmo caindo a conta-gotas de um pequeno aspersor, era chuva suficiente para destruir um mundo inteiro em poucos minutos, garantiu-lhe Doris, que tinha trazido a ideia de trabalhar com cartão e água de uma temporada na América Latina e dessas cidades eternamente precárias, eternamente temporárias que até lá chegarmos todos tomamos como alucinações.
Meg Stuart acreditou. Ao início também tinha parecido uma alucinação, a devastação apocalíptica causada pelo furacão Katrina na cidade que para ela tinha a obrigação de ser a mais sólida e mais indestrutível de todas, Nova Orleães, onde a coreógrafa e bailarina americana nasceu e cresceu. Estávamos em 2006 (Blessed teve a sua estreia em Ghent em Março do ano seguinte) e era impossível não ligar a proposta de instalação que tinha em cima da mesa ao choque desse desastre visto em directo ao longo desses inverosímeis últimos dias de Agosto de 2005. “Por essa altura eu continuava a pensar na forma absurda como durante os dias do Katrina todo o apoio falhou, toda a estrutura falhou – e sobre a experiência-limite de perder tudo de um momento para o outro. Tens o teu mundo encantado, ou pelo menos o teu mundo, e subitamente ele desaba… Como é que reages, como é que vives com isso, como é que manténs a fé, em que é que acreditas? Eram perguntas que não me saíam da cabeça”, recorda ao PÚBLICO a partir de Berlim, dias antes de voltar a trazer o solo a Portugal – a peça, que passou pelo Centro Cultural de Belém em Julho de 2007, apresenta-se dias 16 e 17 no Auditório de Serralves, no Porto, e de 22 a 24 no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Ao mesmo tempo, continua, vinham-lhe à cabeça outras coisas: “As favelas no Brasil, os sem-abrigo nas ruas das nossas cidades, o turismo da destruição que te leva a querer ir aos lugares mais devastados do Haiti, ou… Mas sobretudo intrigava-me a resistência das pessoas, queria perceber como é que apesar de tudo continuamos, o que é que nos faz continuar.”
Por esses dias, outra coisa não lhe saía da cabeça: o corpo de Francisco Camacho, um dos mais singulares que encontrou no final dos anos 80, quando estava prestes a tornar-se coreógrafa (até hoje, na verdade, viu poucos iguais). Não havia ninguém no mundo em quem a chuva que queria fazer desabar sobre o palco caísse tão bem como a imaginava a cair nele, ninguém com o poder de habitar com tanto mistério e com tanta verosimilhança, agarrando-se a ele como se não houvesse amanhã, o pequeno paraíso de cartão (uma cabana, um cisne, uma palmeira) que ao longo de 70 minutos vemos a colapsar à nossa frente como num filme-catástrofe. “Bem, foi há muito tempo… Mas ainda me lembro de estar em Nova Iorque a dançar e a dar aulas, naqueles primeiros anos, e de alguém – já não sei quem – me ter dito que havia um bailarino muito especial, muito forte, que eu tinha de conhecer. Fez umas coisas comigo no estúdio e depois, quando fui para Lovaina fazer a minha primeira peça, Disfigure Study [1991], quis que ele fosse um dos intérpretes. Tinha um movimento invulgarmente inteligente, muito preciso, muito elaborado; um movimento com uma presença incrível – ainda tem”, explica a coreógrafa ao Ípsilon. Desde essa altura, nunca deixaram de estar em contacto (entretanto, Camacho foi seu assistente em Until our hearts stop, estreada em 2015) – mas só em 2006 Meg Stuart teve finalmente nas mãos o cenário perfeito para um solo com Francisco Camacho. Blessed foi a peça que compôs expressamente para ele. E talvez ainda goste mais de o ver fazê-la agora do que há dez anos.
Aguentar
Recapitulando: um homem, uma cabana, um cisne, uma palmeira, e a chuva sem tréguas que, dez anos depois, continua a cair em cima deles. Um furacão chamado Katrina, um Presidente chamado Donald Trump (que sobre os Acordos de Paris terá esta coisa a dizer no seu Twitter: “Cofvefe”). “O mundo está pior do que nunca, não nos saímos nada bem. Em 2007 este fenómeno do aquecimento global ainda estava só a começar – de repente parece que tudo se tornou assustadoramente mais precário”, comenta Meg Stuart. Mas bom, ela não quis colocar esse peso em cima de Blessed, que, de resto, tem esse título encorajador, e assumidamente religioso (se virmos algum deus a circular por ali, não será uma alucinação), que parece vir dizer: não tenham medo, a água salva, tira os pecados do mundo.
Antes de salvar, porém, todo um pequeno universo será duramente castigado. A cabana, o cisne, a palmeira e o único habitante deste paraíso perdido. “O que eu queria ver era como é que o Francisco lidaria com esta pesada adversidade da chuva ao longo do tempo. A peça foi sendo escrita à medida que íamos percebendo como é que ele dançava antes da água e depois da água, e quanto tempo tudo isto duraria – a resistência dele, a resistência dos materiais”, diz-nos Meg Stuart. O corpo de Francisco Camacho aguentou – aguentamo-nos todos. “Como intérprete, o Francisco deixa transparecer pouca coisa de si próprio – em palco ele tem uma presença muito forte mas que não parece estar associada a um ego, e por isso é fácil projectarmo-nos nele mas ao mesmo tempo é difícil captá-lo completamente. Não atira as suas especificidades em direcção ao público; pelo contrário, deixa-o entrar naquele mundo, naquela fantasia.”
Para uma coreógrafa com uma inclinação para peças colectivas, “multifocais”, em que muita coisa acontece a muita gente ao mesmo tempo (ou então para os seus próprios solos), foi óptimo tê-lo como solista: “Com o Francisco é possível trabalhar movimentos subtis, precisos, pequenos; basicamente, ele deixa que o movimento se movimente através dele.” Nada disso se perdeu dez anos depois. “Ainda está tudo lá, e ainda é tudo tão forte… Acho que vê-lo a fazer esta peça dez anos mais velho torna-a mais real e mais emotiva, mais comovente. Para mim é muito bonito ver um performer maduro a actuar, testemunhar uma experiência de vida a manifestar-se em cima do palco. E politicamente acho importante que a dança não seja um lugar só para quem tem 20 e poucos anos. E é importante que eu possa continuar a dançar também.”
Aos 52 anos, alguma coisa a faz continuar.