Sobre a “opinião dos linguistas”, a arrogância, a ignorância e a continência
Uma réplica a João Malaca Casteleiro e Telmo Verdelho.
“La linguistique est une science, humaine certes, non pas molle”
Marc Wilmet
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“La linguistique est une science, humaine certes, non pas molle”
Marc Wilmet
João Malaca Casteleiro e Telmo Verdelho (doravante, os Autores) compuseram um texto, publicado em 4 de Junho de 2017 no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, com o seguinte título: “Um discurso ignorante e retrógado [sic]: sobre a petição ‘Cidadãos contra o Acordo Ortográfico’.” Os Autores consideram que o discurso de um determinado grupo de cidadãos é exagerado, fantasiado, ignorante e retrógrado. Como sou, muito humildemente, modesto subscritor (embora não seja redactor) da supramencionada petição, através da qual o abundantemente adjectivado discurso foi transmitido, permitam-me que me debruce sobre alguns aspectos muito específicos do artigo dos Autores.
É curiosa a distinção estabelecida pelos Autores entre, por um lado, o “discurso ignorante” dos peticionários e, por outro, “os valores da cidadania linguística e a opinião dos linguistas”, elementos aparentemente ignorados por uma campanha que, além de explorar “a exibição mediática”, “perturba a vida pública”. Vamos à parte interessante: a “opinião dos linguistas”. Ao contrário daquilo que aparentemente atrai os Autores, a “opinião dos linguistas” em abstracto interessa-me apenas na exacta medida da resposta mais frequente na nossa área de investigação, isto é, depende.
A opinião de Verdelho interessa-me, como se verifica no PÚBLICO de 30.04.2012, quando refere os “mais operosos dicionaristas portugueses, em condições de alargado contacto com a lexicografia estrangeira e de inevitáveis influências sobretudo francesas”. A opinião de Malaca Casteleiro interessa-me, quando isola o artigo como subclasse fundamental do determinante e se debruça sobre os possessivos. A opinião de Malaca Casteleiro não me interessa, quando diz que “ainda fiz uma viagem com ele [Pedro Santana Lopes] ao Brasil em 1991 para falarmos com as entidades brasileiras no sentido de apressar a retificação [sic] pelo Parlamento do Acordo Ortográfico”. A opinião (em co-autoria) de Telmo Verdelho espanta-me, quando considera que o “geral acatamento” do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) é um sinal positivo, apesar de tanta gente (começando pelos mais insuspeitos) achar que fato é a nova grafia de facto.
Aquilo que é efectivamente atractivo para estudantes de Linguística são os dados linguísticos e o respectivo tratamento, o necessário enquadramento teórico e as hipóteses confirmadas ou infirmadas, além das conclusões admitidas em determinado momento pelo estudo obviamente levado a cabo. O resto é arena atirada para os óculos. Exactamente. Já lá vamos.
No quadro do AO90, não conheço qualquer estudo dos Autores que tenha em conta as perspectivas delineadas no artigo: “critérios de economia, de simplificação e unificação da ortografia”, “dimensão sociocultural da língua” e “os pressupostos da redundância comunicacional”. Se houver tal estudo (se possível, sujeito a arbitragem científica), peço aos Autores que indiquem as referências. Tal indicação permitir-me-á matar dois coelhos de uma cajadada só: poderei retractar-me publicamente e perceber que, afinal, havia uma hipótese científica factual para a urgência do AO90. Aguardo, serenamente.
Segundo os Autores, “o Acordo promoveu um pequeno e fácil ajustamento ortográfico, com pouca incidência no comportamento linguístico normal da comunidade”. Contra esta “opinião dos linguistas” em apreço (i.e., os Autores), segundo dados recolhidos por mim (e não segundo a minha opinião), temos a “comunidade” a dar provas de “comportamento linguístico” muito pouco “normal”, considerando (como exemplo mais gritante) os fatos em vez de factos e os contatos em vez de contactos que amiúde surgem no Diário da República. Amiúde, note-se, desde Janeiro de 2012, ou seja, desde que o AO90 começou a ser adoptado. É sabido que, salvo honrosas excepções, o Diário da República não é redigido por “poetas e intelectuais”. Afinal, os factores “que empecilham a grafia, suscitam erros ortográficos, inibem o uso da escrita e promovem a insegurança linguística” não são as “consoantes”: são os preceitos da base IV do AO90.
A afirmação peremptória dos Autores acerca do discurso da petição — “É retrógrado porque [...] impõe o uso desnecessário de acentos gráficos e de consoantes mudas” — deixa-me perplexo, pois Malaca Casteleiro declarou o seguinte, há muito pouco tempo: “até admito que se venha a colocar o acento em para. É um daqueles casos que, enfim, não vale a pena fazer chover no molhado, como se diz.” Aproveite-se o balanço para que alguém esclareça o porquê de o AO90 preceituar a concomitante manutenção do acento circunflexo na palavra pôr e a eliminação do acento agudo da palavra pára. Quanto ao “uso desnecessário de [...] consoantes mudas”, creio que vale a pena fazer chover no molhado, por isso, remeto para “opinião dos linguistas”, baseada em factos, mencionada no PÚBLICO de 15.03.2015.
Depois de os Autores terem acusado os peticionários de ignorarem a “opinião dos linguistas”, recomendo um acto de contrição. Não li qualquer defesa da “opinião dos linguistas” por parte de qualquer dos Autores, quando Ivo Castro e Inês Duarte, com base em factos concretos, recomendaram, no final de 2005, a imediata (isto é, há quase 12 anos) suspensão do processo em curso e a não ratificação por parte de Portugal do Segundo Protocolo Modificativo. Já para não falar da “opinião dos linguistas” António Emiliano, Jorge Morais Barbosa, Luiz Fagundes Duarte, Maria Raquel Delgado-Martins, Fernando Venâncio, São Luís Castro, João Andrade Peres ou Inês Gomes, cujos estudos nunca vi defendidos por Malaca Casteleiro e Telmo Verdelho, quando, directa ou indirectamente, dizem respeito ao cerne do AO90. Já para não mencionar a opinião de Maria Helena Mira Mateus, quando referiu, também em 2005, a propósito da insersão em vez de inserção no título do ponto 7.1 da Nota Explicativa, que “a ortografia portuguesa é fonológica e etimológica e não fonética”, pondo (involuntariamente?) em causa o “critério fonético (ou da pronúncia) ” com que os autores do AO90 pretendem justificar a base IV.
Para terminar este capítulo acerca da “opinião dos linguistas”, gostaria que Telmo Verdelho desse uma opinião de linguista acerca da seguinte opinião do linguista João Malaca Casteleiro, redigida no Porto, em 27 de Julho de 2009, sobre o conceito “dupla grafia”, cf. PÚBLICO, 07.01.2010 e 15.03.2015: “A questão da dupla grafia é, aliás, recorrente na história da língua portuguesa. Quem não lembra, por exemplo, o caso das palavras divergentes, como areia e arena ou olho e óculo, as primeiras vindas por via popular e as segundas por via erudita? Ou ainda o caso dos particípios passados duplos, como entregado e entregue ou imprimido e impresso?”
Antes de terminar, uma palavra sobre o recado que os Autores enviam a Miguel Sousa Tavares, acerca de, em determinado artigo do jornalista, actualmente colunista do Expresso, nenhuma das palavras adoptadas ser objecto de mudança com o AO90. Como terão reparado, pelas palavras a negrito neste texto, há parágrafos para todos os gostos: sem palavras alteradas pelo AO90, com poucas palavras alteradas pelo AO90 e, como este, com muitas palavras alteradas pelo AO90. Não é sensato (para não dizer que é incorrecto) tentar insinuar a irrelevância da discussão, seleccionando textos sem palavras afectadas pelo AO90. Como não seria correcto da minha parte apresentar textos com frequências elevadas, para demonstrar a relevância da questão, com base na percentagem de ocorrências.
Por fim, quanto a algumas das escolhas lexicais com que os Autores ornamentam o artigo (aliás, há um levantamento completo feito pela página do Facebook “Tradutores Contra o Acordo Ortográfico”), ou seja, não só as já mencionadas “exagerado”, “fantasiado”, “ignorante” e “retrógrado”, mas também “intelectualoide” (sic), “classista”, “reacionária" (sic), “desinformada” ou “ridícula”, sugiro tão-somente uma retractação.