Património, cidade, turismo, negócio y otras cositas más...
O objectivo agora é a eliminação de todos os entraves ao desenvolvimento do negócio imobiliário dentro das áreas centrais das cidades.
Que relação existe entre a morte de dois operários durante a demolição de um prédio histórico da cidade de Lisboa, uma feira de carros dentro de um museu nacional ou a opinião de uma gestora bancária que afirma que a linguagem e a dimensão da cultura e do entretenimento são semelhantes ao negócio bancário?
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Que relação existe entre a morte de dois operários durante a demolição de um prédio histórico da cidade de Lisboa, uma feira de carros dentro de um museu nacional ou a opinião de uma gestora bancária que afirma que a linguagem e a dimensão da cultura e do entretenimento são semelhantes ao negócio bancário?
Infelizmente têm todos a mesma origem, um sistema económico que, em desespero, derruba os últimos obstáculos à comercialização de todas actividades e de todas as relações sociais. A cultura e o património histórico em particular são agora vistos como excelentes meios de criar a “a atractividade” que faltava à “Marca Portugal” que, cada vez mais, se procura vender lá fora. Não é de agora que se começaram a criar as condições ideais à afirmação desta mentalidade.
No âmbito do património histórico urbano, novos instrumentos legais surgiram como a Lei da Reabilitação Urbana, que isenta de uma série de cuidados a intervenção em edifícios com mais de 30 anos, nomeadamente tudo o que seja um empecilho ao sector da construção agora recauchutado em “sector da reabilitação", usufruindo assim de fundos nacionais e europeus, uma farsa que tarda a ser desmontada. De facto, são as mesmas empresas que antes construíam prédios nas periferias desqualificadas das nossas cidades que agora se dedicam a transformar imóveis de valor histórico em contentores de T1 ou T2, como no caso do edifício que acabou por matar os seus operários. Cada dia que passa mais um destes interessantes edifícios é abatido: Baixa Pombalina, Bairro Alto, Mouraria e por aí fora, espalhando um novo ciclo de especulação na cidade consolidada como nunca se viu, levando ao desaparecimento completo de imóveis ou de interiores extraordinariamente ricos em decoração artesanal de estuques, carpintarias, vitrais, pinturas, ferros forjados e azulejos.
Não há que enganar, é só passear pela cidade e espreitar para dentro dos edifícios em obras para se confirmar que de original nada resta. Miraculosamente, mesmo naqueles imóveis onde é necessário a apresentação de relatório prévio o diagnóstico repete-se: “o edifício é irrecuperável...” — lembrando a velha desculpa das más condições fitossanitárias da pobre árvore que se atreveu a estar no caminho de qualquer novo projecto de paisagismo ou reformulação de tráfego.
Outra oportuna lei vem também abrindo caminho a este rentável negócio — a Lei das Rendas, que acelera o despejo e a reconversão das nossas principais cidades em parques temáticos para turista ver e viver, nada mais restando aos cidadãos que abandonar a ideia de se aproximarem das zonas que mais gostam e irem encher as ditas periferias desqualificadas.
Por outro lado, as estruturas do Estado que poderiam garantir alguma fiscalização estão a ser desmontadas num processo que se poderia apelidar, no mínimo, de perverso: primeiro a asfixia financeira, depois o envelhecimento e o corte de pessoal e, por último, a “captura” de dirigentes que, sem se darem conta de que atentam contra a própria razão da sua existência, enaltecem o valor da rentabilidade dos espaços, da importância do turismo como tábua de salvação do património cultural, que passa a ser visto como qualquer activo económico cada vez mais cobiçado. O objectivo agora é a eliminação de todos os entraves ao desenvolvimento do negócio imobiliário dentro das áreas centrais das cidades onde, tradicionalmente, se concentram os elementos de maior valor histórico, isto até que a última barreira seja derrubada, neste caso conseguir aprovar a “desconcentração de competências na área da cultura”, com os licenciamentos a ficarem nas mãos das autarquias e das CCDR.
É neste ambiente que se torna possível assistir às declarações de um conhecido homem de negócios do Norte, mano a mano com responsáveis da Cultura, usando a mesma linguagem e defendendo o mesmo ideal. Museu Nacional dos Coches, Parque do Côa ou World of Discoveries no Porto é tudo igual, ou será em breve, pois às instituições que não são rentáveis nada mais lhes resta que passarem a ser, nem que isso custe hipotecar a identidade ou colocar de lado a sua verdadeira missão. Afirma-se, assim, uma cada vez maior cumplicidade entre promoção patrimonial e os circuitos financeiros via turismo, em benefício da apelidada indústria cultural que deveria ser questionada na sua essência.
Veja-se o caso do Programa Revive, única iniciativa estruturada para a “reabilitação” do nosso património histórico e que inclui, na sua carteira de negócios, muitos monumentos nacionais destinados, na sua totalidade, à gestão privada mas onde, no entanto, foram recentemente investidos vários milhões de euros dos cofres do Estado, como é o caso do Mosteiro do Lorvão ou do Castelo de Portalegre. Dizem que não há outra saída mas, no entanto, o dinheiro existe, já que estes privados irão ser avantajadamente subsidiados pelo mesmíssimo Estado que poderia criar incentivos a programas de reabilitação mais baratos e mais adequados aos espaços, motivando as comunidades locais a aí se fixarem e desenvolverem actividades certamente mais interessantes do que estar ao serviço do turista.
Desde as destruições de Paris, pela mão de Haussman, e já lá vai mais de século e meio, que a retórica é a mesma, argumentos que desembocam numa visão hegemónica de cidade hoje facilmente apelidada de “cidade imobiliária”, cada vez mais segregada e estratificada, um espaço urbano criado para facilitar o negócio, uma total apropriação privada das condições que foram criadas para o conjunto da sociedade.
O primeiro passo para que algo mude é tomar consciência que não há tempo para dúvidas, nem ingenuidades, que vivemos num ambiente urbano de empobrecimento contínuo onde a normalização e comercialização do património edificado, dos museus e dos espaços públicos é uma realidade a combater, quanto mais não seja pela sua inegável insustentabilidade.