Os homens ainda não criam filhos dentro das prisões

As 37 crianças que se encontram em ambiente prisional estão com as mães. Lei permite desde 2009 que fiquem com o pai, mas até agora não houve qualquer pedido. Nas cadeias masculinas não existem creches, nem celas preparadas.

Foto
ADRIANO MIRANDA

Apesar de todas as alterações que ocorreram no seio das famílias portuguesas nos últimos anos, dentro dos estabelecimentos prisionais o exercício da parentalidade permanece um exclusivo das mulheres. Nenhum homem está a criar um filho atrás das grades, embora a lei o permita.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Apesar de todas as alterações que ocorreram no seio das famílias portuguesas nos últimos anos, dentro dos estabelecimentos prisionais o exercício da parentalidade permanece um exclusivo das mulheres. Nenhum homem está a criar um filho atrás das grades, embora a lei o permita.

A igualdade está prevista no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade desde 2009. O artigo sobre direitos do recluso estabelece o direito “a manter consigo filho até aos 3 anos de idade ou, excepcionalmente, até aos 5 anos, com autorização do outro titular da responsabilidade parental, desde que tal seja considerado do interesse do menor e existam as condições necessárias”.

“Até ao presente momento não há qualquer recluso do género masculino que tenha consigo filho menor”, informou a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais por email.  Na companhia das mães reclusas, há 37 crianças: 12 crianças no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, e outras 25 no Estabelecimento Prisional de Tires, em Cascais.

Aumentar

As mulheres começaram a poder ter as crianças com elas ainda no Estado Novo. A ideia era incutir-lhes “responsabilidades domésticas e maternais através do desenvolvimento das suas habilidades para cuidarem dos filhos, tarefa facilitada pela permanência de crianças nas prisões”, explica a socióloga Rafaela Granja na tese de doutoramento Para cá e para lá dos muros: relações familiares na interface entre o interior e o exterior da prisão que defendeu na Universidade do Minho em 2015. 

No pós-revolução de 25 de Abril de 1974, o foco alterou-se. A presença das crianças nas prisões deixou de estar associada à regeneração moral das mulheres, passou a enquadrar-se na protecção das crianças, no seu superior interesse. Em 2009, a lei assumiu o princípio da neutralidade de género.

O contexto – nacional e internacional – era propício à mudança. O país fazia a transição da ideia de pai distante, provedor, símbolo de autoridade para a de pai que se envolve emocionalmente com as crianças e que lhes presta cuidados. A Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade dos Géneros, do Parlamento Europeu, por exemplo, instava os Estados-membros “a integrar a dimensão da igualdade entre homens e mulheres na sua política penitenciária e nos seus centros de detenção".

"Desigualdade entre homem e mulher"

“A lei assume neutralidade em relação ao género, mas na sua aplicação concreta há uma reprodução e consolidação do modelo tradicional de divisão sexual do trabalho, de desigualdade entre homem e mulher”, diz aquela investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O sistema prisional continua a reconhecer o papel materno e a ignorar o papel paterno.

O Estado só garante serviço específico nas cadeias centrais de mulheres. O Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo tem celas adaptadas e creche. O Estabelecimento Prisional de Tires tem mesmo a chamada Casa das Mães, um pavilhão especial com zona prisional, creche e espaços de recreio. Nas cadeias masculinas não existem creches, nem celas preparadas.

“Não há pedidos”, sublinha o director-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Celso Manata. “Normalmente, as mães é que ficam com as crianças pequenas”, diz ainda o também procurador, com larga experiência no área de família e menores. "Isso é um problema que não temos. Os recursos que temos têm de ser usados para resolver os problemas que temos e os problemas que temos são muitos e graves." 

O provedor de Justiça, José de Faria Costa, tem estado atento às “questões relacionadas com as pessoas que se encontram privadas de liberdade, em particular, e com o sistema penitenciário”. Não recebeu qualquer queixa sobre a matéria, faz saber  através da sua assessora de imprensa. 

“Os próprios homens não têm noção de que isso está previsto na lei”, explica Rafaela Granja. A socióloga notou isso ao fazer o doutoramento sobre relações familiares entre quem está dentro e fora da prisão. Entrevistou 20 reclusos e 20 reclusas e abordou este assunto. Nas respostas dos homens, sobressaia também a interiorização de que tal não lhes compete.

Havendo uma mãe disponível no exterior, os entrevistados assumiam que essa era a melhor opção, esclarece. Estando as mães presas, achavam que as crianças ficariam melhor com elas ou lá fora com uma avó, uma irmã ou uma tia, em suma, outros familiares do sexo feminino. O ambiente prisional masculino também não lhes parecia indicado para criar uma criança.

Cadeias sobrelotadas

Talvez, admite Rafaela Granja, as respostas dos reclusos não fossem tão contundentes se estivessem noutro sítio. Os homens que entrevistou estavam no Estabelecimento Prisional do Porto, a abarrotar de preventivos e condenados. A tensão era permanente. Aquele estava, contudo, bem longe de ser um caso único de sobrelotação. De acordo com a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, 28 dos 48 estabelecimentos prisionais ocupados excediam a lotação máxima no final de 2016. 

“As mães e pais também tendem a reproduzir ideologias tradicionais que remetem para a mulher o papel de cuidadora e que reservam aos homens um papel mais periférico”,  interpreta Rafaela Granja. “Há várias questões que se agregam e que acabam por convergir e a direcção-geral ancora-se nisso para continuar a ignorar a figura do recluso-pai”, conclui.

Com as visitas íntimas aconteceu o oposto. A possibilidade de haver encontros privados entre reclusos e companheiras começou por ser experimentada em 1998 em Ponta Delgada. Logo a seguir, houve experiências em Vale dos Judeus e no Funchal. Dez anos depois, além desses, Carregueira, Paços de Ferreira e Monsanto tinham visitas íntima. Tires ou Santa Cruz do Bispo mantiveram-se de fora até 2010.  Até essa altura, as mulheres só podiam ter visitas íntimas se os seus companheiros estivessem presos num dos estabelecimentos contemplados.

“As ideologias tradicionais que remetem para a mulher o papel de mães e para os homens uma sexualidade mais activa foram prementes na forma como essa medida foi implementada”, analisa a socióloga. Ainda não chega a todas as cadeias masculinas, todavia. Neste momento, 10 prisões têm visitas íntimas, incluindo as duas centrais femininas.