Acordo secreto de Merkel isolou Schäuble e Portugal

A chanceler alemã fez um acordo com a Grécia, em 2015, contra a vontade do seu ministro das Finanças. Numa reunião do Eurogrupo, Schäuble opôs-se, em vão, e só teve o apoio de Portugal e da Espanha, conta Yanis Varoufakis, o ex-ministro grego

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O argumentista da mais popular série norte-americana sobre política, House of Cards, disse certa vez que “os verdadeiros líderes vivem vidas paradoxais, em que se vêem obrigados a quebrar regras para as poderem manter”. Beau Willimon falava sobre a personagem principal da sua ficção (que é uma adaptação de uma série inglesa dos anos 90), Frank Underwood, um político amoral que é exímio na arte de perdurar. “O caminho do poder faz-se por ruas cinzentas, e não por pretas e brancas”.

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O argumentista da mais popular série norte-americana sobre política, House of Cards, disse certa vez que “os verdadeiros líderes vivem vidas paradoxais, em que se vêem obrigados a quebrar regras para as poderem manter”. Beau Willimon falava sobre a personagem principal da sua ficção (que é uma adaptação de uma série inglesa dos anos 90), Frank Underwood, um político amoral que é exímio na arte de perdurar. “O caminho do poder faz-se por ruas cinzentas, e não por pretas e brancas”.

A realidade também parece preferir os tons de cinzento. Mas, ao contrário da ficção, é mais esquiva, como o demonstra este episódio, de Fevereiro de 2015, desconhecido da maioria dos cidadãos europeus até agora. Paradoxos não faltam. O narrador é Yanis Varoufakis, o economista que foi, durante cinco meses, ministro das Finanças da Grécia. No livro que lançou recentemente, Adults In The Room: My Battle With Europe’s Deep Establishment, ed. Random House, Varoufakis recorre ao seu diário desse período, bem como a uma série de gravações que fez das reuniões do Eurogrupo em que participou, para contar, com muito detalhe, toda a intriga de uma história digna da série House of Cards: a ocasião em Merkel deixou o seu ministro das Finanças isolado (apenas com a ajuda dos governos português e espanhol) a lutar contra um acordo que tinha sido feito por Berlim.

Tudo terá começado num telefonema entre Angela Merkel, a chanceler alemã, e Alexis Tsipras, o primeiro-ministro grego. Depois de vários embates com o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, gerara-se um impasse: o novo Governo grego queria alterar os termos do memorando assinado com a troika – argumentando que fora eleito para o fazer – e a Alemanha parecia irredutível na ideia de que o programa era para cumprir, como estava, até ao fim. Era um beco sem saída, agravado pela premência do tempo. A Grécia estava a caminho da falência, com vários reembolsos devidos e sem dinheiro para os pagar. Tsipras telefonou a Merkel e a chanceler disse que sim.

Varoufakis escreveu então um esboço dos novos termos de uma extensão do prazo do financiamento à Grécia. E deixou claro que com essa extensão a Grécia e o Eurogrupo poderiam trabalhar num novo “contrato” que “substituiria o actual acordo”. Nessa carta ao Eurogrupo a Grécia usava linguagem que seria descartada sem misericórdia – não fosse haver um acordo com Angela Merkel – como os desejos de maior “justiça social” e medidas que “mitiguem os grandes custos sociais da actual crise”

Na manhã seguinte, na véspera do Eurogrupo, Varoufakis recebeu, por “canais reservados” a anuência de Berlim aos termos da sua proposta. “Uma boa base” para um acordo “construtivo”, foi a reacção.

No dia 20 de Fevereiro, dia da reunião, já em Bruxelas, Varoufakis encontrou-se com o presidente do Eurogrupo, o holandês Jeroem Dijsselbloem, para acertarem os termos do comunicado final (é mesmo assim que as coisas funcionam: o comunicado é escrito antes da reunião ter lugar). Aí, já ao corrente das intenções de Merkel, Dijsselbloem modificou alguns detalhes – a extensão do programa duraria quatro meses e não os seis anteriormente pedidos pela Grécia. Tudo certo, para Varoufakis.

Se o conseguisse, escreve Varoufakis, isso “constituiria um triunfo dos países mais fracos da zona euro. Seria a primeira vez que seria concedido a um Governo manietado por um programa de resgate o direito de substituir o memorando da troika por uma agenda de reformas da sua própria autoria”.

A reunião propriamente dita, continua Varoufakis, “foi a mais fácil de todas” em que participou. “Um monumento à ambiguidade calculada, que confirmou também o poder da chanceler alemã para usurpar o controlo do Eurogrupo, ainda que momentaneamente, ao homem que geralmente o domina – o seu próprio ministro das Finanças.”

Houve uma outra personagem nos bastidores deste episódio: um então discreto ministro francês da Economia, Emmanuel Macron, que ao contrário do seu Governo, liderado por François Hollande, se mostrou disponível para mediar o conflito entre Atenas e Berlim. Macron escreveu um SMS a Varoufakis, antes de a reunião do Eurogrupo começar, dando conta de que tudo estava certo. Macron estivera a almoçar com Merkel e obtivera a garantia de que a chanceler dera “instruções directas a Dijsselbloem para acabar com a saga grega”.

Continua Varoufakis: “Em todas as reuniões do Eurogrupo, logo que se abria o período de intervenções dos ministros, ocorria o mesmo ritual. Primeiro, a claque de apoio do dr. Schäuble, constituída por ministros das Finanças dos países do Leste, competiria entre si para ver que é mais pro-Schäuble que o próprio Schäuble. Depois, os ministros dos países submetidos a resgates como a Irlanda, a Espanha, Portugal e Chipre – os prisioneiros-modelo de Schäuble – acrescentariam a sua bagatela Schäuble-compatível imediatamente antes de, por fim, Wolfgang, o próprio, vir a terreiro para finalizar com alguns retoques a narrativa que controlava desde o início. “

No dia 20 de Fevereiro não aconteceu nada disto. “Libertado do feitiço de Wolfgang pelas instruções directas da chanceler alemã, Jeroem [Dijsselbloem] leu o esboço do comunicado e chamou-me para o defender”, conta Varoufakis. Ninguém se inscreveu para falar. Ao contrário das outras vezes, não houve claque. Apenas um “silêncio constrangedor”. Temendo Schäuble, “ninguém defendeu o comunicado, mas também não se atreveram a criticá-lo”. Para piorar a situação do ministro alemão, Christine Lagarde, do FMI, e Mario Draghi, do BCE, apoiaram a decisão tal como estava proposta.

Schäuble não se calou. Inscreveu-se várias vezes para falar, criticando o comunicado e a decisão do Eurogrupo. Queria que qualquer comunicado reafirmasse o compromisso da Grécia com o memorando existente e com o programa acordado. “Perdi a conta ao número de intervenções dele – mas devem ter sido mais de vinte”, conta Varoufakis.

O ministro alemão não ficou sozinho a criticar o acordo patrocinado pela sua própria chanceler: “Os únicos ministros que o apoiaram foram a portuguesa [Maria Luís Albuquerque] e o meu vizinho do lado, o ministro espanhol Luis de Guindos, que falou mais de dez vezes – seguramente reflectindo o medo do seu Governo por qualquer êxito do Syriza que pudesse suscitar apoio para o Podemos nas eleições que se avizinhavam em Espanha.”

O PÚBLICO tentou confirmar esta descrição com a ex-ministra das Finanças do anterior Governo. Maria Luís Albuquerque, amavelmente, recusou fazer “qualquer comentário” sobre o livro de Varoufakis, ou sobre este episódio em concreto.

Enquanto isso, Varoufakis mandava mensagens de texto para Atenas: “Até agora, Wolfgang está irremediavelmente isolado”. Mas o “contingente ibérico não desistia”, obrigando o holandês que preside ao Eurogrupo a um grande esforço para conter a oposição ao acordo, que seria alcançado alguns minutos depois. Varoufakis escreveu a Tsipras: “Esta ganhámos. Mas não vamos comemorar. A última coisa que queremos é irritar Schäuble ainda mais.” Macron também lhe enviou um SMS: “Vamos continuar a lutar”.

Apesar do êxito, escreve Varoufakis, “o acordo intercalar de 20 de Fevereiro foi um primeiro passo necessário mas insuficiente para escaparmos ao Resgatistão [o neologismo com que o ex-ministro grego nomeia o regime imposto pela troika no seu país].”

O resto da história é mais ou menos conhecido. O clímax viria meses depois, com um referendo e uma marcha-atrás de Tsipras no braço-de-ferro com o Eurogrupo. Varoufakis sairia do Governo. E no Eurogrupo poucos são os que terão sentido a sua falta. Que Schäuble quereria uma vingança depois daquela reunião do Eurogrupo, Varoufakis diz que sabia. “O que eu não fazia ideia é que a faca seria desembainhada dentro do meu ministério e, um pouco mais tarde, dentro do meu próprio gabinete de guerra [o nome do conselho restrito de governantes gregos que acompanhava as negociações com a Europa].”

Terá sido essa a estratégia paradoxal de Merkel, que quebrou algumas regras (isolar o seu ministro mais poderoso) para poder manter as regras que lhe importavam. E nada disto se consegue ver a preto e branco. O dia 20 de Fevereiro de 2015 foi uma ode aos vários tons de cinzento da realidade.

"Como patriota, não assinaria o memorando"

Nestas memórias, Varoufakis consegue ser impiedoso com muitos governantes europeus com que se cruzou. Das traições de alguns dos seus colegas no Governo grego, à pusilanimidade de ministros como o francês Sapin – que dizia uma coisa em privado e o seu contrário em público. Schäuble é a Némesis de Varoufakis, o temível e poderoso adversário. Mas um episódio, quando o grego já estava quase de saída, revela uma proximidade entre os dois homens que não parecia evidente para ninguém que acompanhasse o embate público no Eurogrupo. Foi quando Wolfgang Schäuble, o homem que impôs as condições mais duras para o resgate da Grécia, confidenciou a Yanis Varoufakis que, se estivesse no seu lugar, não assinaria o memorando da troika.  “Como patriota, não [assinaria]. É mau para o seu povo.”

A conversa, em Berlim, decorreu no gabinete de Schäuble. E parecia uma conversa de surdos até àquele momento. “O que devo fazer?”, perguntava o grego. “Assine o memorando”, respondia o alemão. Schäuble queria que a Grécia saísse do euro, por um tempo. Varoufakis queria ficar, mudando as regras. Nenhum tinha o que pretendia. Mas o alemão tinha menos a perder.

“Pode fazer-me um favor, Wolfgang? Perguntei humildemente. Ele acenou. (…) Assinaria o memorando se estivesse no meu lugar? Estava à espera que me respondesse previsivelmente – que dadas as circunstâncias não há alternativa – usando os mesmos argumentos comuns e destituídos de sentido. Ele não o fez. Em vez disso, olhou pela janela, para a rua. Para os padrões de Berlim, estava um dia quente e ensolarado. Depois voltou-se e espantou-me com a sua resposta. ‘Como um patriota, não. É mau para o seu povo.’” Varoufakis lembra que, quando saiu de Berlim, não deixou para trás um “ditador maquiavélico”, mas um homem poderoso que se sentia “impotente para fazer o que achava que devia ser feito”.