Tempestade no Golfo ou a mais perigosa crise desde a invasão do Kuwait em 1990
"A colocação do Qatar numa lista negra pelos sauditas é um sinal da desordem do novo mundo do presidente Trump", escreve o The Economist.
1. Encoberta pelos “casos” de Trump e pelas eleições europeias, forma-se no Golfo Pérsico uma tempestade, a mais grave desde a invasão do Kuwait em 1990-91 e a guerra que se seguiu contra Saddam Hussein. À primeira vista, é um confronto entre a Arábia Saudita e o Qatar, ambos sunitas; por trás dele, reconhece-se a disputa de hegemonia da região entre sauditas e iranianos, ou seja, entre a potência sunita e a potência xiita. Os americanos têm tido um comportamento dúplice: Donald Trump atira fósforos para o “petróleo”, enquanto o secretário de Estado, Rex Tillerson, procura evitar o incêndio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. Encoberta pelos “casos” de Trump e pelas eleições europeias, forma-se no Golfo Pérsico uma tempestade, a mais grave desde a invasão do Kuwait em 1990-91 e a guerra que se seguiu contra Saddam Hussein. À primeira vista, é um confronto entre a Arábia Saudita e o Qatar, ambos sunitas; por trás dele, reconhece-se a disputa de hegemonia da região entre sauditas e iranianos, ou seja, entre a potência sunita e a potência xiita. Os americanos têm tido um comportamento dúplice: Donald Trump atira fósforos para o “petróleo”, enquanto o secretário de Estado, Rex Tillerson, procura evitar o incêndio.
No dia 5, a Arábia Saudita, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos (EUA), o Bahrein e o Iémen cortaram relações diplomáticas com o Qatar e impuseram um agressivo bloqueio: fecharam-lhe as fronteiras terrestres, as águas territoriais e o espaço aéreo, com sugestões veladas de apelo a um “golpe de Estado”.
Seria, noutras circunstâncias, um casus belli. Por si só, o pequeno Qatar não tem meios para desafiar as potências árabes. Por outro lado, o verdadeiro alvo dos sauditas é o Irão, o que torna as coisas verdadeiramente perigosas. De resto, basta ter em conta a geografia. É no Golfo que estão as maiores jazidas e por lá passam as principais rotas do petróleo e do gás.
2. Os sauditas querem a hegemonia do Golfo e passaram a agir agressivamente. Acusam o emir do Qatar, xeque Tamim al-Thani, de financiar a Irmandade Muçulmana (inimiga histórica da Casa de Saud), o Hamas e o Hezbollah pró-iraniano. E, sobretudo, de contrariar a sua política de cerco ao Irão. Riad suspeita que o Qatar deseja um Irão poderoso para equilibrar o peso saudita. Tudo isto parece verdade. Mas a grande acusação pública é a do apoio ao terrorismo. Não será falsa, mas pode virar-se também contra Riad e outras monarquias do Golfo, com pesado cadastro na matéria.
Doha (capital do Qatar) sempre procurou manter a aliança americana — abriga a maior base dos EUA no Médio Oriente — sem prejudicar as boas relações com Teerão. Os dois países partilham a maior reserva de gás natural do mundo, nas águas do Golfo. Em resposta ao bloqueio, Teerão pôs dois portos à disposição do Qatar, que importa 90% dos alimentos.
Desde que se emancipou da tutela saudita, o Qatar segue uma política externa independente. Serve-se da sua extraordinária riqueza. Financia jihadistas, tal como investe maciçamente na Europa e nos EUA. E não só. A televisão Al-Jazira funcionou como instrumento de desestabilização das monarquias do Golfo e outras ditaduras durante as “primaveras árabes”. Já era uma arma de agitação anti-israelita e antiamericana. Uma das exigências sauditas é o encerramento da Al-Jazira. O Qatar também está em conflito com o Egipto do general Al-Sissi, por continuar a proteger a Irmandade Muçulmana.
O conflito com os sauditas remonta aos anos 1990, quando o xeque Hamad al-Thani fez um golpe de Estado contra o pai e assumiu o poder. Em 2013, Hamad abdicou a favor do filho Tamim, o que provocou um misto de alívio e preocupação em Riad, que esperava que o novo e inexperiente xeque fosse mais manejável, mas, por outro lado, via na abdicação um convite ao derrube dos velhos monarcas árabes. E Doha continuou a desafiar Riad, designadamente na Síria, onde apoiou grupos jihadistas antagónicos.
3. O Qatar não percebeu a tempo que os ventos mudaram e, com eles, as relações de força, dizem analistas. O desaire saudita na Síria, o seu impasse no atoleiro do Iémen e o crescente declínio do Daesh favoreceram o Irão, incitando Riad a radicalizar a sua política. Entretanto, saiu Obama e entrou Trump, arvorando uma nova era de hostilidade perante o Irão. Não é que Trump seja muito credível no mundo árabe: é tido como instável e pouco fiável. Mas o seu apoio à manobra anti-iraniana dos sauditas foi para estes um maná.
O Presidente americano chegou a Riad a 20 de Maio, na primeira etapa da sua digressão diplomática. Teve uma recepção imperial. Fez um discurso de louvor dos sauditas e atacou o Irão. Sonhou com uma espécie de “NATO árabe” antiterrorismo. Os sauditas prometeram comprar 110 mil milhões de dólares de armas americanas.
Disse-se que Trump “vendeu” a família Al-Thani aos sauditas pelos 110 mil milhões. “Fake news”, responde Bruce Ridel, analista da Brookings Institution. Parte dessa “encomenda” remonta ao mandato de Obama. De facto, os sauditas não compraram quase nada e, desta vez, voltaram a fazer “declarações de intenções” e não é previsível nenhum contrato. O libanês americano Mohamad Bazzi aponta outra pista: os sauditas depressa perceberam que Trump quer “lisonja e respeito” e por isso “apostaram no seu ego”. O certo é que Trump lhes deu uma “luz verde”.
A “NATO árabe” não chegou a nascer e no dia 5 de Maio é declarado o bloqueio ao Qatar. Tillerson, que como patrão do petróleo conhece a região como poucos, tenta acalmar o jogo e evitar que os Estados Unidos se embrulhem nesta crise, em que vislumbrará todos os perigos. Entretanto Trump não parou: escreveu dois tweets a animar os sauditas e a apontar o dedo ao Qatar. Simon Henderson, do Washington Institute for Near East Policy, faz um tenebroso paralelo histórico: “Sarajevo 1914, Doha 2017?” Teme “um confronto entre uma força saudita e dos emirados com o Irão”. Apela a que Washington “trave a marcha para uma guerra antes que a carnificina comece”. Henderson parece exagerar — aliás, os “mercados” não se agitaram —, mas há engrenagens que por vezes fogem ao controlo dos actores.
4. O Qatar parece encurralado. Pode não ter outra saída senão ceder: fechar a Al-Jazira e alinhar a sua política externa por Riad. Mas tentará resistir. Conta com o apoio do Irão e da Turquia. Diz Ancara que um ataque ao Qatar será considerado um ataque à Turquia. Pode ser retórica. Mas é muito difícil que Teerão deixe cair o Qatar. Não é segredo para ninguém que o Irão é o verdadeiro alvo da operação saudita.
A natureza tem horror ao vazio. Entram em cena outros actores. O emir do Kuwait tenta uma mediação. A Rússia precisa do Qatar, por negócios e por razões da “estabilização” da Síria, pela sua influência sobre alguns grupos jihadista, mas também não quer alienar os sauditas. Pôs a sua diplomacia em marcha. Resume o The Economist: “A colocação do Qatar numa lista negra é um sinal da desordem do novo mundo do presidente Trump.”
No Médio Oriente não há uma potência hegemónica, mas rivais a lutar por isso. Os EUA desempenhavam um papel de força estabilizadora no Golfo, mantendo os equilíbrios estratégicos e evitando tomar partido na “guerra entre sunitas e xiitas”. Vão retomar esse papel ou abdicar dele?
Os tweets de Trump fazem temer o pior.