Os três concertos em que a “metade pássaro” de Elza Soares voltou a voar
Entre o lançamento em São Paulo e o regresso este ano a Portugal, A Mulher do Fim do Mundo renasceu e tornou-se unânime. Neste sábado, é como se fechasse um ciclo no Nos Primavera Sound — que começou no Ibirapuera e termina no Parque da Cidade.
Era a noite do dia 3 de Outubro de 2015 quando o público ouviu pela primeira vez A Mulher do Fim do Mundo, álbum da cantora brasileira Elza Soares que, logo em seguida, seria mundialmente premiado e reconhecido como um marco na música brasileira.
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Era a noite do dia 3 de Outubro de 2015 quando o público ouviu pela primeira vez A Mulher do Fim do Mundo, álbum da cantora brasileira Elza Soares que, logo em seguida, seria mundialmente premiado e reconhecido como um marco na música brasileira.
O local escolhido para o lançamento foi o Auditório do Ibirapuera, um teatro para 800 pessoas projectado por Oscar Niemayer no coração do parque mais importante de São Paulo. Construído inteiro em cimento armado branco, com algumas (poucas) estruturas em vermelho, este auditório ocupa um lugar muito especial no imaginário paulistano: com pouco mais de uma década de existência, já foi palco de grandes espectáculos da cena local. E aquela noite tinha tudo para ser grande também.
Junto com Elza, estariam no palco Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Bixiga 70, Celso Sim e tantos outros nomes que fazem parte de uma espécie de tesouro escondido da música paulistana. No que toca à música brasileira, o Rio de Janeiro sempre ganhou toda a fama e poesia Já São Paulo, com sua aparência mais austera, tradicionalmente foi o lar de vanguardas interessantes, mas menos conhecidas, que os paulistas se orgulham de ter, mas que não fazem muita questão de divulgar.
O encontro desses ícones da chamada “nova vanguarda paulista” com Elza Soares provocava no público uma certa curiosidade. Fazia 13 anos que Elza não lançava um disco e, em mais de 60 anos de carreira, aquele seria o primeiro projecto com músicas inéditas. Além disso, com aqueles parceiros, a cantora que se consagrou ao interpretar sambas e outros estilos mais tradicionais estava a aproximar-se de uma nova sonoridade, muito mais contemporânea. Aonde tudo aquilo ia chegar?
Era exactamente isso que todos se perguntavam quando a cortina se levantou e deu lugar ao cenário de A Mulher do Fim do Mundo. Do alto do seu trono — que agora já se tornou habitual, mas que na época deixou todos sem ar — Elza entoou as primeiras notas de Coração do mar, tema à capela que abre o concerto, e daí em diante é difícil definir o que aconteceu. Aquilo tudo era tão original, tão forte. Elza dava vida (a sua própria vida) a letras e melodias que falavam de temas sociais profundamente reais e, entre um arranjo distorcido e outro, o público era dilacerado pela sonoridade densa, repleta de sintetizadores tão característica deste álbum, mas também por uma certa culpa: como é que aquela mulher tinha ficado tanto tempo esquecida?
Elza Soares sempre foi vista como uma das grandes vozes da MPB, mas por algum motivo nunca recebeu o protagonismo que merecia. “Tem um lugar um pouco aquém do que merece, talvez até por conta das lutas em que se embrenhou”, disse o produtor do disco, Guilherme Kastrup, ao PÚBLICO, por ocasião do lançamento internacional do álbum. Como isso não aconteceu antes, jamais saberemos, mas com A Mulher do Fim do Mundo Elza finalmente conquistou o espaço que merecia.
Quem estava no Ibirapuera naquele dia 3 de Outubro certamente saiu de lá desnorteado. Foram todos atropelados por alguma força incontrolável e, só no dia seguinte, quando os jornais anunciaram o ocorrido, é que conseguiram entender o que haviam testemunhado: Elza Soares renascera das cinzas, dizia um dos meios de comunicação com maior circulação da cidade. Ao final dos concertos de A Mulher do Fim do Mundo é lido o poema Metade pássaro, do modernista Murilo Mendes, pois: naquela noite, Elza foi metade mulher, metade fénix. E a única explicação possível para ela ter sido aplaudida, e não ovacionada, como era de se esperar, é que o público tinha de alternar entre bater palmas e segurar o queixo.
O êxtase paulista
A catarse merecida viria somente um mês depois, no teatro do SESC Pompéia, um pólo cultural com aspecto industrial projectado pela arquitecta Lina Bo Bardi a partir da estrutura de uma fábrica desactivada, também em São Paulo. Assim como o Auditório do Ibirapuera, o SESC é um espaço muito querido pelos paulistanos. Com uma programação cultural intensa e de preço acessível, o local tornou-se o ponto de encontro de diversas tribos e classes sociais em busca de concertos, exposições ou apenas de um bom espaço de convivência.
Diferente da maioria dos teatros convencionais, a sala de espectáculos do SESC Pompéia é construída quase como uma arena, com lugares para o público nos dois lados do palco. Por conta disso, quando a cortina levantou, Elza estava de lado, no canto e não no centro do palco, onde habitualmente ficaria. Basta dizer que foi difícil olhar para frente: de novo, as primeiras notas da canção de abertura soaram, mas dessa vez, antes mesmo do fim, a plateia já aplaudia em êxtase. Era como se o público tivesse precisado de algum tempo para digerir e entender a importância daquele álbum, mas quando a ficha caiu, não houve quem segurasse as palmas, os gritos e as lágrimas.
No bis, enquanto cantava as versões rearranjadas dos sambas mais antigos, o elenco completo, que em São Paulo é composto por quarteto de cordas, metais, percussão, participações especiais e mais outros tantos artistas, entrou no palco a cantar junto, dançar, improvisar e a saudar Elza Soares que, naquele momento, era plena. Metade mulher, metade andorinha, que é desses pássaros que só trazem belezas e bons presságios.
Com o teatro a tremer de tantas boas vibrações e aplausos, Elza se emocionou: “Obrigada. Isso aqui é só o começo. Oxalá permita. Tem muita coisa pela frente”, ela dizia. E tinha mesmo. Depois desses dois concertos em São Paulo, A Mulher do Fim do Mundo ganhou multidões. Ao todo, foram seis prémios, incluindo um Grammy Latino, e concertos em diversos cantos do planeta. Só em Portugal, Elza já se apresentou três vezes, duas em Novembro de 2016, e uma no sábado passado, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
Suavidade de peso
Na apresentação mais recente, Elza não perdeu a potência, mas talvez alguns pormenores do concerto, que antes passavam despercebidos, tenham ganhado força. Ou talvez seja o público, que ainda mais acostumado com o álbum, começa a dar-se conta de que um espectáculo de tantas emoções e mensagens é construído também de pequenas subtilezas.
Independentemente do que tenha sido, a verdade é que o concerto que aconteceu muito longe de São Paulo e em uma sala com muito mais anos de vida do que as outras duas juntas, teve como marca a delicadeza. Chega a ser estranho combinar esta palavra — “delicadeza” — com o peso deste disco, mas no Coliseu dos Recreios, brilharam elementos como os arranjos respeitosos feitos para os sambas que Elza intercala com o repertório original.
Sem perder a identidade, a sonoridade de A Mulher do Fim do Mundo desceu alguns degraus para abrir alas a clássicos como Malandro, que começa com um cavaquinho solitário e termina com um coro emocionado de “laialaiá” que não caberia em lugar algum do disco, mas que no concerto se faz quase indispensável.
Brilhou também a desenvoltura de Guilherme Kastrup na bateria, que alternava levadas e intensidades com a maestria de quem tem muito a dizer com o som que faz. Quem escutava, sentia o peso daquilo muito antes de perceber do que se tratava. E nessa toada virtuosa de fazer sentir sem ser visto, Kastrup transmitia uma segurança constante para o elenco reduzido em relação ao que se vê no Brasil, mas não menos completo.
Ali, imersa nessa tranquilidade de quem sabe o que conquistou, Elza cantou com o peso de quem mergulha na eternidade. Metade mulher, metade coruja, dessas bem sábias que dão de comer, beber e sonhar a homens e mulheres, curando tempestades e embalando com o seu canto.
A digressão segue pela Europa com mais duas datas em Portugal, neste sábado, dia 10, no Nos Primavera Sound, Porto, e dia 14 em Faro. No Algarve, Elza se apresenta no Teatro das Figuras, onde deve arrebatar o público, como costuma fazer pelos teatros onde passa. Já no NOS Primavera Sound, é curioso pensar que, de certa forma, o espectáculo retorna às origens. Novamente no coração de um parque, dessa vez o Parque da Cidade do Porto, o maior parque urbano do país, resta saber em que pássaro Elza irá se transformar e se, após quase dois anos na estrada, haverá algum novo renascimento para A Mulher do Fim do Mundo.
Texto editado por Hugo Torres