Manuel Alegre é o vencedor do Prémio Camões
Escritor é o 12.º autor português a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa.
O Prémio Camões de 2017 foi esta quinta-feira atribuído ao poeta e romancista Manuel Alegre, que se torna assim, aos 81 anos, o 29.º autor (e o 12.º português) a receber a mais importante consagração literária da língua portuguesa.
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O Prémio Camões de 2017 foi esta quinta-feira atribuído ao poeta e romancista Manuel Alegre, que se torna assim, aos 81 anos, o 29.º autor (e o 12.º português) a receber a mais importante consagração literária da língua portuguesa.
O prémio, no valor de cem mil euros, foi anunciado esta quinta-feira à tarde na sede da Biblioteca Nacional brasileira, no Rio de Janeiro, quando em Portugal eram cerca de 19h40. O nome de Manuel Alegre foi escolhido por um júri que integrou as ensaístas portuguesas Maria João Reynaud e Paula Morão, os académicos brasileiros José Luís Jobim de Salles Fonseca e Leyla Perrone Moisés, o poeta cabo-verdiano Jose Luiz Tavares e o especialista moçambicano em literaturas africanas Lourenço do Rosário.
Poeta, romancista e ensaísta, Manuel Alegre tem um longo percurso como lutador anti-fascista, é um dirigente histórico do PS e foi candidato à Presidência República em 2006. A sua escolha para vencedor do Prémio Camões de 2017 foi “unânime e rápida”, disse a professora e ensaísta Paula Morão ao PÚBLICO.
“A obra de Manuel Alegre é muito importante do ponto de vista da poesia”, sublinha Morão, lembrando que se comemoram este ano os 50 anos da publicação do livro O Canto e as Armas. Mas a ex-directora-geral do Livro e das Bibliotecas acrescenta que “a obra ficcional tem também muita relevância” e que a ensaística, “tendo menor dimensão em quantidade, não a tem em qualidade”.
E se a sua admiração pela obra bastaria para subscrever esta escolha, assume que também o percurso cívico de Manuel Alegre foi considerado. “Não podemos esquecer o lado da intervenção cívica, que, independentemente da opinião política de cada um, tem um lugar insubstituível na sociedade portuguesa das últimas décadas”, defende Morão, para quem “o exemplo cívico do autor muito contribuiu para a imagem que várias gerações de portugueses têm da figura do poeta”.
O escritor, em declarações à Lusa, diz ter recebido a notícia com "serenidade e alegria", considerando que o reconhecimento maior é o que vem de quem o lê. Mas reconheceu que lhe dá “particular satisfação” a atribuição de um prémio com o nome de Luís de Camões, certamente a mais forte referência literária da sua obra, que mantém desde o início um permanente diálogo com a lírica e épica camonianas. “Sinto-me muito honrado, sobretudo porque do júri fazem parte pessoas distintas, que me merecem toda a consideração, e porque o prémio tem um grande significado”, afirmou Manuel Alegre, que recordou o tempo em que cópias dos seus livros circulavam clandestinamente em Angola e Moçambique e pelas comunidades portuguesas no mundo.
O Presidente da República classificou esta quinta-feira a atribuição do Prémio Camões a Manuel Alegre como “uma homenagem justíssima a uma grande figura da literatura portuguesa". Este prémio é o reconhecimento a uma obra "longa, exaustiva e rica", como ensaísta, mas sobretudo como um “grande poeta” que marcou várias fases da vida nacional e que projectou de forma “inexcedível” a língua portuguesa, disse Marcelo Rebelo de Sousa, observando que o facto de este prémio ter sido anunciado nas vésperas do 10 de Junho o tornam “ainda mais gratificante”.
Também o ministro da Cultura já felicitara “calorosamente” o poeta por esta distinção, lembrando que a poesia de Alegre, “marcada por um forte sentido do ritmo, da rima e da musicalidade”, se destacou “pelo seu papel de intervenção política no final da ditadura, durante a guerra colonial, e quando se agudizava a emigração para os países da Europa desenvolvida”. É “toda essa mistura de dramas humanos, expectativas adiadas, frustrações colectivas, sentimentos de revolta e de alguma esperança nunca abandonada” que, diz Luís Filipe Castro Mendes, “vem à superfície nos seus poemas”.
O ministro nota ainda que a obra do autor revisitou depois “os principais mitos da História de Portugal” e “ganhou com o tempo uma consistência e uma dimensão que pôs em evidência a grande qualidade da sua expressão poética, para além da voz de combate pela liberdade e pela justiça" que a sua poesia representou "nos anos sombrios da ditadura”.
Poemas contra o fascismo
Nascido em Águeda em 1936, numa família de tradição política liberal – já um seu trisavô andou nas revoltas contra D. Miguel –, Manuel Alegre começou os estudos secundários no liceu Passos Manuel, em Lisboa, e terminou-os no Porto, no Liceu Central Alexandre Herculano. Em 1956, matriculou-se em Direito na Universidade de Coimbra e depressa se envolveu nos grupos estudantis de oposição salazarismo. Logo em 1957 aderiu ao Partido Comunista Português, que abandonou em 1968.
Em 1962 foi mobilizado para Angola, onde veio a ser preso pela PIDE, em 1963, e passa meio ano na Fortaleza de S. Paulo, em Luanda. É aqui que escreve muitos dos poemas que depois se tornarão hinos da oposição ao salazarismo. Regressado a Portugal, o regime fixa-lhe residência em Coimbra, mas em 1964 exila-se em Paris. Dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional presidida por Humberto Delgado, parte ainda no mesmo ano para Argel, onde se manterá dez anos, dando a sua voz às célebres emisssões da rádio A Voz da Liberdade.
Começou a escrever muito cedo, publicando poemas, a partir de 1960, em revistas como a Vértice ou Via Latina, e participando em antologias e obras colectivas, como A Poesia Útil ou Poemas Livres. Já antes dos 20 anos, em 1955, publicara um primeiro livro que nunca reeditará (apesar de Cruz Malpique, no prefácio, vaticinar que o seu autor virá a ser um grande poeta), e a sua verdadeira estreia é o volume Praça da Canção, publicado em 1965. Um livro que pode bem ser a mais conhecida primeira obra de toda a poesia portuguesa contemporânea.
Proibida e confiscada, circulava pelo país em cópias dactilografadas, e até manuscritas, e os seus poemas eram constantemente ditos e cantados nas iniciativas culturais de oposição ao regime. Adriano Correia de Oliveira foi o mais icónico cantor destes primeiros poemas de Manuel Alegre, mas muitos outros os interpretaram, de Amália a José Afonso e de Carlos do Carmo a Luís Cilia.
O modo como a intenção de protesto se fundia, nesses poemas, com uma forte dimensão lírica e uma musicalidade que depressa seduziu os compositores e cantores da oposição, torna Praça da Canção um caso à parte na chamada poesia de intervenção da época.
Ao longo de mais de 50 anos, Manuel Alegre construiu uma vasta obra poética com dezenas de títulos, entre os quais se contam, entre muitos outros, O Canto e as Armas (1967), Nova do Achamento (1979), Atlântico (1981), Babilónia (1983), Com que Pena: Vinte Sonetos para Camões (1992), Sonetos do Obscuro quê (1993), Senhora das Tempestades (1998), Livro do Português Errante (2001) ou o recente Bairro Ocidental (2015).
Na ficção, estreou-se com Jornada de África (1989), a que se seguiram livros como Alma (1995), um romance de forte dimensão autobiográfica no qual narra a sua infância e adolescência, A Terceira Rosa (1998), Cão Como Nós (2002) ou Rafael (2003).
Instituído em 1988 pelos governos de Portugal e do Brasil, o prémio Camões é atribuído a “um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”, diz o respectivo protocolo, na sua versão revista de 1999. O acordo impõe que o prémio seja alternadamente atribuído em território português e brasileiro, e a sua história sugere que tem também prevalecido a intenção de equilibrar o número de vencedores portugueses e brasileiros, bem como a preocupação de fazer representar as várias literaturas africanas.
Antes do prémio agora atribuído a Manuel Alegre, o Brasil, com 12 premiados, tinha apenas mais um do que Portugal, que estreou a galeria com Miguel Torga, o primeiro escritor a receber o Camões, em 1989. Nos anos seguintes, o prémio voltou a ficar em Portugal com Vergílio Ferreira (1992), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Eugénio de Andrade (2001), Maria Velho da Costa (2002), Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007), Manuel António Pina (2011) e Hélia Correia (2015).
A lista de premiados brasileiros começa com João Cabral de Melo Neto, em 1990, e inclui Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012), Alberto da Costa e Silva (2014) e Raduan Nassar (2016).
O poeta moçambicano José Craveirinha foi o primeiro autor africano a receber o Camões, em 1991. Em 1997, Pepetela, então com 56 anos, tornava-se simultaneamente o primeiro angolano e o mais jovem autor de sempre a ser galardoado com este prémio, que só voltaria à literatura africana em 2006 para reconhecer a obra do angolano Luandino Vieira, que recusou o galardão. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, e em 2013 o escolhido foi o romancista moçambicano Mia Couto.