O absurdo de Horváth, segundo Tónan Quito

Tónan Quito quis aproximar-se do teatro amador e dos locais onde habitualmente se apresenta. Para isso, pegou em Fé, Caridade e Esperança, de Horváth, e regressa à tensão entre indivíduo e colectivo. A provocação começa logo no título.

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Depois de se extinguir no ar a Marcha Fúnebre de Chopin, Elisabeth faz soar uma outra música — a campainha do Instituto de Anatomia. Vendia cintas, espartilhos, soutiens, agora já não vende nada, resta-lhe o desemprego. Quando toca à campainha do Instituto de Anatomia, é o desespero que lhe comanda a mão — depois de perder um trabalho em que comercializava as peças de roupa mais rente ao corpo, pergunta agora se, a troco de 150 marcos, pode vender o próprio corpo. Não com o intuito de se prostituir, bem entendido, mas porque necessita de um adiantamento por conta de legar o cadáver à ciência quando chegar a sua hora, antecipando o pagamento para com ele poder custear uma licença de vendedora ambulante.

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Depois de se extinguir no ar a Marcha Fúnebre de Chopin, Elisabeth faz soar uma outra música — a campainha do Instituto de Anatomia. Vendia cintas, espartilhos, soutiens, agora já não vende nada, resta-lhe o desemprego. Quando toca à campainha do Instituto de Anatomia, é o desespero que lhe comanda a mão — depois de perder um trabalho em que comercializava as peças de roupa mais rente ao corpo, pergunta agora se, a troco de 150 marcos, pode vender o próprio corpo. Não com o intuito de se prostituir, bem entendido, mas porque necessita de um adiantamento por conta de legar o cadáver à ciência quando chegar a sua hora, antecipando o pagamento para com ele poder custear uma licença de vendedora ambulante.

Fé, Caridade e Esperança, peça que o dramaturgo austríaco Ödön von Horváth escreveu em 1932, traz para a discussão essa palavra que cada um tem sobre o próprio corpo e a sua qualidade de bem derradeiro, de última coisa de se pode, no mais desgraçado limite, prescindir. Depois do corpo não há nada. Nesta “pequena dança da morte em cinco quadros” — subtítulo com que Horváth ajuda a caracterizar um pouco mais o texto —, Elisabeth é um veículo tanto do desespero quanto do absurdo (um absurdo afluente da violência). Apesar disso, não é, para o encenador Tónan Quito, um texto completamente entregue à desesperança. Tónan cruzou-se com a peça no seu segundo ano de Conservatório de Teatro e, a partir desse momento, deixou-se seduzir por um dramaturgo que coloca a par de Tchékhov e Shakespeare enquanto modelo teatral, mas cuja escassa presença nos teatros portugueses lhe causa indisfarçável estranheza.

Depois de ter dirigido Histórias do Bosque de Viena (em 2012) e antes de se atirar a Casimiro e Carolina (tudo aponta para 2018) — duas peças que “antecipam o nazismo”, diz -, avançou com a ambiciosa ideia de abordar Fé, Caridade e Esperança depois de anos sem encontrar a ponta por onde havia de lhe pegar. “Nunca tinha percebido como fazer esta peça, que tem tantas personagens, e nunca percebi onde é que isto poderia ter alguma vibração.” Aos poucos, esse número alargado de personagens foi-se justapondo à vontade de trabalhar com grupos de teatro amador e fora dos grandes teatros. “Comecei também a pensar num espectáculo na lógica de digressão, de fazer nos sítios a que estou habituado a ir e poder trabalhar e envolver-me mais localmente, em vez de ir até Guimarães ou Viseu, apresentar o espectáculo, fantástico, maravilhoso, e depois vir embora. Quis começar a conhecer um bocadinho melhor os sítios onde vamos trabalhar.”

Num primeiro momento, esse encontro (com o apoio do Teatro Maria Matos) faz-se através do trabalho partilhado com três grupos amadores de Lisboa. Estando o corpo em queda de Elisabeth entregue à actriz profissional Filipa Matta (a que se juntam Carla Galvão, Miguel Loureiro, Marco Mendonça e o próprio Tónan), a fricção entre Elisabeth e a cidade resultante do choque entre “ela e as várias pessoas com que se cruza e que acabam por abrir o fosso e acentuar o desespero” em que vive resulta também, em palco, da fricção entre essas duas condições de profissional e amadores. Assim, a cidade ficará a cargo do Grupo de Interpretação Criativa (Sociedade Instrutiva Guilherme Cossoul, até 4 de Junho), Gesto (Auditório Fernando Pessa, 15 a 18 de Junho) e Pano Cru (A Promotora, 29 de Junho a 2 de Julho), passando depois para Campanhã, no Porto (entre 7 e 9 de Julho).

Embora o texto de Horváth se mantenha e a cenografia seja apenas adaptada às diferentes condições oferecidas pelas salas, Tónan Quito localizou um ponto da peça — numa cena frente à Segurança Social e que assenta num constante empurrão para outros balcões de atendimento demasiado familiar para ser ignorado — em que a voz de cada grupo amador se faz ouvir com uma outra clareza. Assim, com base num levantamento de histórias pessoais conduzido por Rui Catalão, foi feita uma selecção de material que permitisse “pôr o grupo amador a falar das suas próprias experiências com os mecanismos do Estado”. Com o cuidado de evitar qualquer “tom didáctico ou brechtiano”, ressalva Tónan.

Comédias trágicas

A reescrita dessa cena em específico não deve, ainda assim, a sua inclusão a qualquer vontade do encenador de traçar um atalho para a actualidade numa peça que, apesar de escrita em 1932, parece não ter acrescentado um segundo de antiguidade àquilo que o texto propõe. Se Tónan queria “ouvi-los na sua dinâmica de grupos e escutar o que pensam da peça e das questões que os tocam”, queria também que esse pulsar colectivo não fosse uma mera formalidade e artificialidade.

Fé, Caridade e Esperança — três conceitos cuja presença na peça é um verdadeiro desafio encontrar e, no final, pode ser violenta a conclusão para que Horváth parece querer empurrar-nos ao lançar-nos naquilo que se pode assemelhar a uma caça aos gambozinos — prossegue uma relação pouco pacífica e algo tempestuosa entre o indivíduo e o colectivo. Essa tensão não é nova no historial do encenador, afirmando-se desde Histórias do Bosque de Viena (2012) e passando destacadamente por Um Inimigo do Povo (2015) e Ricardo III (2015). “Aqui, aquilo a que assistimos é também um confronto social e de ideias face ao colectivo, onde nos posicionamos em relação ao nosso tipo de julgamento e onde, mesmo num grupo de dez pessoas em que ninguém tem nada, há sempre um que vai achar que o outro tem mais e que o seu caso é ainda pior.”

Aquilo em que Horváth é mestre, acredita Tónan Quito, é contar a história de alguém banalíssimo e a partir dessa narrativa implicar todos os olhares, obrigar a um posicionamento — não o assumir será, talvez, tanto cegueira quanto cobardia. “Tal como fez Büchner com Woyzeck, ao pegar numa pessoa banal, uma desempregada, como pode ser qualquer um de nós, Horváth questiona como é que lidamos com essa fraqueza, com esse momento de desespero. N’Um Inimigo do Povo, aquele homem burguês estava também em desespero mas porque era completamente injustiçado; esta rapariga está mesmo só a tentar safar-se. E há nela uma perplexidade perante os outros que não compreendem o seu ponto de vista”.

Tónan cita Horváth quando este dizia que todas as suas peças eram comédias — porque eram trágicas no seu absurdo. O risível, aqui, é exactamente isso. O riso perante o absurdo que teima em não se deixar apanhar.