Desconcertantes serpentinas negras

Em BOMBYX MORI, encantatória e desconcertante proposta coreográfica, Ola Maciejewska encapsula diversas considerações artístico-discursivas que promovem ligações improváveis entre o sujeito humano e a matéria.

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FILIPE BRAGA

Estamos definitivamente a experienciar tempos turvos e instáveis. No seu recente livro Staying with the Trouble. Making Kin in the Chthulucene (2016), a teórica Donna Haraway aponta para a necessidade de reconhecermos o turbilhão perturbador do presente, e encontrarmos respostas igualmente potentes às situações devastadoras, de modo a desenhar possíveis lugares de calma na espessura dos dias. Segundo a autora, necessitamos de estabelecer relações inventivas entre as mais diversas entidades planetárias, encontrar modalidades de viver e morrer-com, contrapondo-as às ditaduras do humano (antropoceno) e do capital (capitaloceno).

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Estamos definitivamente a experienciar tempos turvos e instáveis. No seu recente livro Staying with the Trouble. Making Kin in the Chthulucene (2016), a teórica Donna Haraway aponta para a necessidade de reconhecermos o turbilhão perturbador do presente, e encontrarmos respostas igualmente potentes às situações devastadoras, de modo a desenhar possíveis lugares de calma na espessura dos dias. Segundo a autora, necessitamos de estabelecer relações inventivas entre as mais diversas entidades planetárias, encontrar modalidades de viver e morrer-com, contrapondo-as às ditaduras do humano (antropoceno) e do capital (capitaloceno).

Em BOMBYX MORI, encantatória e desconcertante proposta coreográfica, a jovem coreógrafa e performer polaca Ola Maciejewska encapsula diversas considerações artístico-discursivas que se inscrevem neste desfiar de pensamento tentacular, promotor de ligações improváveis entre o sujeito humano e a matéria. Trata-se de uma peça para três performers, elaborada na sequência de outro projecto intitulado LOÏE FULLER: Research (2011), que integrou o (pré-) Serralves em Festa na Baixa do Porto.

Em LOÏE FULLER: Research, Maciejewska apropria e confere novo sentido ao longo vestido circular que a coreógrafa da vanguarda da dança moderna Loïe Fuller (1862-1928) tornou emblemático na sua hipnótica Serpentine dance (1891). Loïe Fuller serve-se de um fino vestido em seda como ecrã diáfano, não só para receber as inovações tecnológicas da energia eléctrica, como para evocar as diversas camadas extra-físicas e pan-psíquicas do sujeito moderno. A hipnose, em voga na época, convocava a ambivalência do corpo e do espírito, e os seus vestidos expandiam o humano em ser híbrido, do mesmo modo que desestabilizavam a sensibilidade do espectador. Ola Maciejewska interessa-se menos pelo aspecto hipnótico destas matérias em movimento, e mais pelo descentramento do humano que a obra de Loïe Fuller convoca, ao evidenciar o objecto, a luz e o som como parte da “obra de arte total”.

Em LOÏE FULLER: Research, vimos Ola a entrar no espaço público com dois vestidos, um negro e um amarelo, que coloca em oposição no espaço: a noite e o dia que se encontram nesse estado hipnótico, entre o sono e a vigília, a realidade e a imaginação. A performer manipula primeiro o vestido negro e sua matéria, dispõe-no cuidadosamente no chão e evidencia a sua forma circular. Segue-se um processo de incorporação da performer que o habita, explorando as múltiplas potencialidades de movimento, da forma e dos bastões incorporados no vestido. Igual processo se dá com o vestido amarelo e, em ambos os momentos, Maciejewska desconstrói o imaginário etéreo e a coreografia ilustrativa e formalista da Serpentine Dance. O desenho coreográfico pauta-se pela ambivalência, pela ambiguidade e pela violência. A figura de vestido é múltipla e metamórfica, remetendo-nos para imagens tão díspares como a figura da feiticeira, entidades animais ou objectos esculturais híbridos em movimento.

Em BOMBYX MORI, Maciejewska e outros dois performers retomam os longos vestidos de Loïe Fuller, porém não brancos e reflectores como outrora, mas negros sobre fundo e linóleo brancos. O início desta peça assemelha-se à sua anterior. A matéria do tecido convoca os gestos: um desdobrar lento e meticuloso que no desenhar dos três círculos testa a atenção e a resiliência do espectador. Os performers retomam o processo de entrada no objecto, e deambulam pelo espaço branco, evocando a abstracção becketiana de Quad (1981), e emitindo sons guturais que amplificados contribuem para o desconcerto do todo. A performance prossegue com a manipulação daquela imensa matéria negra, com o som do tecido e da movimentação do ar amplificados e distorcidos a comporem a sonoplastia, ora em gestos violentos e bruscos, ora fluidos e etéreos. Com o espaço em penumbra, os três corpos vão desenhando figuras híbridas e bizarras, que convocam a metamorfose que vai da animalidade esvoaçante a seres aquáticos e à abstração geométrica.

Nas suas memórias, Loïe Fuller referia que “a natureza era o nosso maior guia, o nosso mestre, mas nós não a observamos”, e que “o alfabeto da dança é o de se mover no caos”. Bombyx Mori é o nome em latim para a espécie domesticada do “bicho da seda”, um insecto de grande relevância económica, cujo processo metamórfico de larva em borboleta é interrompido para a obtenção do casulo em seda, com a morte da larva. BOMBYX MORI condensa a estranheza de uma prática rizomática e tentacular, seja na relação que estabelece com o legado histórico da vanguarda da dança, desconstruindo-o, ou na evidência que confere à hibridez como fundamento coreográfico, em detrimento do foco no movimento do corpo humano. Ao dar nome à animalidade que o capitalismo captura e elimina para sustentar um economia de consumo, BOMBYX MORI inscreve-se ainda numa linhagem político-ecológica nesta era de capitaloceno.