O Reino Unido regressa ao passado pela mão de May e de Corbyn
Como May, Corbyn não tem uma visão para o seu país a não ser um impossível regresso ao passado num mundo em acelerada transformação.
1. O Reino Unido não é excepção. As democracias europeias estão a viver a ressaca da globalização que dominou a economia mundial durante as últimas décadas e os efeitos socialmente devastadores da Grande Recessão que se abateu sobre a Europa em 2009. O resultado, hoje visível a olho nu, é a fragmentação social e as novas linhas divisórias entre os ganhadores e os perdedores da liberalização dos mercados, que se traduz, ao nível político, entre os que continuam a defender a abertura ao mundo e os que preferem o regresso do nacionalismo, seja ele mais extremo ou mais mitigado, antieuropeu e anti-imigrantes. O risco maior tem sido a erosão do centro político. Os problemas são os mesmos, as respostas são distintas.
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1. O Reino Unido não é excepção. As democracias europeias estão a viver a ressaca da globalização que dominou a economia mundial durante as últimas décadas e os efeitos socialmente devastadores da Grande Recessão que se abateu sobre a Europa em 2009. O resultado, hoje visível a olho nu, é a fragmentação social e as novas linhas divisórias entre os ganhadores e os perdedores da liberalização dos mercados, que se traduz, ao nível político, entre os que continuam a defender a abertura ao mundo e os que preferem o regresso do nacionalismo, seja ele mais extremo ou mais mitigado, antieuropeu e anti-imigrantes. O risco maior tem sido a erosão do centro político. Os problemas são os mesmos, as respostas são distintas.
A França sempre preferiu as revoluções às reformas. Em meia dúzia de meses fez implodir o seu velho sistema político. O Reino Unido reformista, em vez de dinamitar o sistema, foi ao passado tentar recuperar as velhas soluções. Com uma coisa em comum: tudo pode mudar em 15 dias. Pelas mais variadas razões. Foi o que (não) aconteceu em França, quando do atentado nos Campos Elísios a meia dúzia de dias da eleição presidencial. As urnas provaram que a “interferência” do Daesh não mudou o sentido de voto. A França, causticada pelos atentados, vive em estado de emergência. Do outro lado da Mancha, o terrorismo já fez suspender a campanha por duas vezes: em Manchester e no centro de Londres. Com que efeito, ninguém realmente sabe.
A banalização do terror é a outra face da moeda de uma Europa a braços com uma profunda crise identitária. Os discursos xenófobos encontram nele mais um pretexto. A abertura às sucessivas vagas de imigrantes que fogem das guerras na periferia da Europa é outra das suas vítimas. Em França como no Reino Unido. Emmanuel Macron desafiou esta tendência nacionalista e ganhou. Na Grã-Bretanha, os liberais-democratas, os únicos que se mantêm fieis à Europa e à abertura ao mundo, quase desapareceram nas sondagens. Ontem, depois dos atentados de Londres, May endureceu o discurso. Jeremy Corbyn, que teve a imprudência (cautelosa) de relacionar Manchester com a política externa britânica, vai voltar a enfrentar um teste que, aparentemente, lhe é adverso.
A incerteza regressa à campanha, quando tudo já parecia estar definido, mesmo que contrariando todas as expectativas. A vencedora à partida, que convocou as eleições para reforçar o seu poder negocial com Bruxelas, revelou-se incapaz de manter a esmagadora vantagem com que partiu. Mesmo ganhando, sairá provavelmente enfraquecida. Em três semanas, reduziu a sua vantagem de 20 para 5%, se as sondagens estão correctas, o que não é certo.
2. O “Brexit” revelou-se profundamente traumático para os dois grandes partidos britânicos. Theresa May virou o seu para o velho conservadorismo anterior à revolução neoconservadora de Thatcher, mais nacionalista, mais “social” e mais favorável ao papel do Estado na economia. Foi uma espectacular reviravolta. O Labour completou o seu regresso ao passado anterior a Blair, elegendo em 2015 um líder que foi retirar ao frigorífico da história, regressando à cartilha dos anos 70 e 80, quando o partido atravessou o mais longo período da sua vida sem conquistar o poder (18 anos).
Jeremy Corbyn ressuscitou igual a si próprio de uma longa hibernação da facção radical e ultraminoritária que restava do velho Labour e que se limitava a ocupar a última fila da bancada dos Comuns e a votar contra. Resistiu a todos os golpes da velha-guarda blairiana. Bastou-lhe um mês de campanha para negar todas as análises dos media, dos think-tanks ou dos políticos sobre o seu curto reinado, que deveria acabar no próximo dia 8 com uma estrondosa derrota. Não vai ser assim. Arrisca-se a tirar a Theresa May o reforço da maioria nos Comuns que ela pretendia ao convocar eleições. Um resultado decente do Labour vai obrigar os seus rivais a percorrer um caminho mais longo e mais difícil até à sua saída de cena.
3. Em França, todos os cenários previsíveis foram dinamitados, sem que ninguém conseguisse antecipá-los. No Reino Unido, as verdades de hoje já não são as de amanhã. O eleitorado deixou de corresponder às velhas fidelidades partidárias. Como em França, houve eleitores do Labour nas velhas zonas industriais que passaram directamente para o UKIP de Farage e que hoje são disputados pelos conservadores de May. A primeira-ministra acreditava que ganharia o voto moderado de uma classe média que nunca votaria em Corbyn. O Labour conseguiu cativar uma parte dela. Não os beneficiários da globalização, a que o sociólogo alemão Wolfgang Merkel chama de “viajantes frequentes”. Mas aqueles que ficaram para trás, os “comunitários”, que viram os seus rendimentos “espremidos” até ao limite e as desigualdades aumentarem, enquanto os governos gastavam milhões e milhões de libras para salvar os bancos.
Os dois “países” coexistem. O mayor de Londres é muçulmano e de esquerda. Fora das grandes cidades, os ingleses estão fartos de imigrantes (mesmo que não os vejam) que alegadamente lhes roubam os empregos e a identidade. Foi a estes que May se dirigiu, abandonando o discurso liberal de Thatcher e dos seus sucessores. Disse logo ao que vinha: “Se queremos ser cidadãos de toda a parte, apenas seremos cidadãos de parte nenhuma.” Lê-se no seu manifesto: “Não acreditamos em mercados sem regras nem limites, rejeitamos o culto do individualismo egoísta, repudiamos as divisões sociais, a injustiça e a desigualdade. Vemos o dogma rígido e a ideologia não apenas como desnecessários, mas como perigosos.” Desafiou a convicção fundamental dos neoliberais: a redução do peso do Estado. Os governos, disse ela, fazem coisas boas e necessárias. Esqueceu-se do défice e da dívida, o grande objectivo do tempo de Cameron. Disse que o investimento estrangeiro é bem-vindo, desde que não ponha em causa os interesses estratégicos do país. Definiu os sectores onde essa avaliação tem de ser feita: nas telecomunicações e na energia. Cameron tinha-se declarado o maior amigo da China.
A outra grande reviravolta (que já vem de trás) foi a imigração. É a sua bandeira mais importante, ao ponto de abdicar do acesso ao Mercado Único, uma criação para a qual Thatcher contribuiu de forma decisiva, a troco do fim da livre circulação. Propõe-se penalizar as empresas que contratem imigrantes (2000 libras de multa). Quer controlar o acesso dos estudantes estrangeiros às reputadas universidades britânicas, das quais foram sempre uma parte de valor inestimável. Prometeu subir o salário mínimo, ainda que menos do que Corbyn. Fala para os “comunitários” e distancia-se dos “passageiros frequentes”. O mundo dos negócios desconfia. Como disse ao PÚBLICO Charles Grant, director do Center for European Reform de Londres, May não gosta da City nem da globalização.
Quis fazer do “Brexit” o tema central da campanha. Não conseguiu. Não tinha para apresentar qualquer estratégia para uma negociação que vai ocupar o Governo britânico nos próximos anos. Limitou-se a anunciar um “hard ‘Brexit’” (Corbyn prefere o “soft”) e disse que seria melhor sair sem acordo do que obter um mau acordo. Quis personalizar a campanha. Revelou-se mais fraca e mais hesitante do que a imagem de determinação e de bom senso com que chegou a Downing Street. Começou mal quando, quatro dias depois da apresentação do manifesto, se viu obrigada a uma reviravolta de 180 graus sobre uma das suas medidas mais emblemáticas: obrigar os idosos mais ricos (com mais de 100 mil libras de bens) a pagarem, depois de mortos, os cuidados (gratuitos) de que necessitaram no final da vida, entregando as suas casas como pagamento. Foi um estrondoso tiro no pé, tendo em conta que os eleitores de mais de 65 anos lhe são maioritariamente favoráveis. Recuou sem glória.
4. Do outro lado, as surpresas não foram menores. Blair foi o herdeiro do país que Thatcher criou. Cortou com o velho Labour, reconciliando-o com os mercados, com a Europa e com a aposta no reforço das capacidades de cada um para enfrentar os efeitos de uma globalização inevitável. Ganhou três maiorias absolutas. Deixou um país forte e dinâmico e contagiou pelo exemplo boa parte do centro-esquerda europeu. Foi um dos três governos (os outros foram a Suécia e Portugal) a dispensar o período de transição para a livre circulação dos nacionais dos países de Leste recém-entrados na União Europeia (2004). Curiosamente, May recorre à mesma frase com que Blair e Clinton anunciavam ao que vinham: “São boas as políticas que funcionam”, não as belas ideologias.
Corbyn está nos antípodas de Blair. Só tem ideologia. O seu manifesto promete muitas coisas que dificilmente serão possíveis ao mesmo tempo: dinheiro para o NHS, escola gratuita para as crianças até aos seis anos, o fim das propinas universitárias, a nacionalização dos comboios, das águas e dos correios. Tocou numa classe média “espremida” pela globalização e fustigada pela crise. Vai buscar o dinheiro aos impostos sobre as empresas e sobre os ricos (mais de 80 mil libras anuais). Nunca foi um adepto da União Europeia. Cedeu à vaga contra os imigrantes que domina a sociedade britânica, admitindo que também prefere o fim da livre circulação ao acesso ao Mercado Único.
As suas ideias sobre o lugar do seu país no mundo são polémicas, para dizer o mínimo. O manifesto reconhece a fidelidade à NATO e a renovação da frota nuclear britânica. Mas o seu líder demarcou-se de ambas (votou contra a renovação da frota no Parlamento), mesmo reconhecendo que são maioritárias no Labour. Anunciou, se ganhar, uma revisão da política de defesa em que olhará “para o papel das armas nucleares”. Mantém-se fiel à “maior nota de suicídio da história”, como ficou conhecido o manifesto do Labour nas eleições de 1983, que defendia o desarmamento unilateral do Reino Unido em plena Guerra Fria. As amizades que manteve com Chávez ou Fidel não são animadoras para o seu conceito de democracia. Não gosta da América mas não antipatiza com Putin. Acusou a NATO de ter provocado a invasão da Ucrânia. Mas fez uma boa campanha, cujo romantismo igualitário atraiu muitos jovens e cuja sinceridade contrastou com o descrédito das elites. Funcionou como “outsider”, que é hoje uma receita em alta na Europa. Como May, não tem uma visão para o seu país a não ser um impossível regresso ao passado num mundo em acelerada transformação.
No Reino Unido, a herança de Thatcher acabou definitivamente. “O conservadorismo queimou Reagan e Thatcher”, escreve Martin Wolf no Financial Times. May acreditou que teria no Presidente americano um aliado na sua luta pelo melhor “Brexit”. Já descobriu que o que ele diz ontem pode mudar já amanhã. Está sozinha. Aos herdeiros de Blair resta olharem para o outro lado da Mancha e reverem-se em Emmanuel Macron, o seu ilustre sucessor. Tudo pode mudar, no entanto, nos próximos 15 dias.