Zeca no coração, Patxi na voz (e vice-versa)
Um cantautor pode iluminar outro: Patxi Andión deu voz a José Afonso num Centro Cultural de Belém repleto e entusiasmado. Esta segunda-feira canta no Porto, na Casa da Música.
Não é celebração nem uma homenagem, é um reencontro na música. Patxi Andión, cantautor espanhol que ao longo de meio século criou profundos laços com Portugal, apresenta em Zeca no Coração uma simbiose de dois universos: o dele próprio, nas canções que tão intimamente o identificam, e o de José Afonso, genial criador de um caminho pioneiro na música portuguesa, no 30.º aniversário da sua morte (1929-1987). E é uma simbiose que resulta num espectáculo emotivo, digno e profundamente alicerçado no conhecimento das culturas de ambos os povos, espanhol e português.
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Não é celebração nem uma homenagem, é um reencontro na música. Patxi Andión, cantautor espanhol que ao longo de meio século criou profundos laços com Portugal, apresenta em Zeca no Coração uma simbiose de dois universos: o dele próprio, nas canções que tão intimamente o identificam, e o de José Afonso, genial criador de um caminho pioneiro na música portuguesa, no 30.º aniversário da sua morte (1929-1987). E é uma simbiose que resulta num espectáculo emotivo, digno e profundamente alicerçado no conhecimento das culturas de ambos os povos, espanhol e português.
No primeiro dos concertos pensados exclusivamente para Portugal, na noite de sexta-feira 2 de Junho, a lotação da sala esgotou. O Grande Auditório do Centro Cultural de Belém estava cheio, em todos os seus espaços, mostrando que a popularidade de Patxi (associada à de José Afonso, neste particular) não esmoreceu. Tal como a ligação profunda e sincera que ele mantém com Portugal e os portugueses: em palco, insiste em falar português (ele que tem como idioma ascendente o basco e como língua usual o castelhano) e o único disco ao vivo da sua carreira, Quatro Días de Mayo, foi gravado em Portugal, em 2011.
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Isto quer dizer que, se Patxi traz Zeca no coração, pessoal e musicalmente, o coração português há muito que reservou um espaço para ele. A noite abriu com 33 versos a mi muerte, tema a que ele volta com regularidade, a abrir os seus espectáculos. A diferença é que desta vez quis cantá-lo em português, o que, se, por um lado, lhe retira alguma da força original, por outro sublinha a intenção de proximidade. Assinale-se que Patxi retomou aqui uma sonoridade antiga na sua produção musical, a do trio de jazz, e logo com um naipe coeso e criativo, de prestação deveras excelente, que há-de ser a base instrumental do seu próximo disco: Gabriel García Diego no piano, Josemi Garzon no contrabaixo e Guillermo McGill na bateria. Vários arranjos ganharam com a mudança.
O espectáculo foi dividido claramente em duas partes (interligadas): uma, onde Patxi se cantou a si próprio; e outra onde deu voz a José Afonso, primeiro sozinho e depois com convidados (quatro, no total). Na primeira, depois da já citada 33 versos, desfilariam ainda mais dez canções: Aún tengo verso (do disco Arquitectura, de 1979), que já não cantava há muito; a belíssima Samaritana seguida da dançável Canela pura; dois temas de Porvenir, o seu mais recente disco de estúdio, Maria en el corazón e La luz debida; o fado que ele compôs a partir de um poema de Fernando Pessoa e que gravou em dueto com Ana Moura para um disco desta, Vaga, no azul amplo solta; uma antiga canção do poeta novecentista José María Iparraguirre, Trapu zarrak, cantada em basco; Es tan difícil dejar de pensar, esta com o seu filho Iñigo Andión, de 25 anos, também músico e compositor, que acabou de lançar o primeiro disco e ficou depois em palco para cantar sozinho uma canção; e, por, fim, duas das canções mais marcantes (e são tantas) de Patxi: a melancólica e inesquecível Veinte aniversário… palabras (que lhe valeu fortes aplausos e vários “bravo!”) e a impressionante Con toda la mar detrás.
Veio, depois, José Afonso em espírito e obra. Patxi começou, a solo, com Verdes são os campos, que Afonso compôs a partir das líricas de Camões. E, não sendo o português a sua língua primeira (como ele fizera questão de frisar), Patxi manteve vivo o pulsar das palavras e a sua beleza original. Depois, foi a vez dos convidados. José Barros, fundador do grupo Navegante, foi o primeiro. Começou com uma canção sua com letra de Amélia Muge, Passam horas, passam dias, que soou desequilibrada, numa oscilação entre fado e hino. Já o dueto com Patxi na coimbrã Balada do Outono resultou em pleno.
Iñigo Andión foi o segundo convidado, acompanhando o pai (na voz e guitarras) em Traz outro amigo também e No comboio descendente, canção que José Afonso compôs a partir de versos de Fernando Pessoa (o público fez eco da onomatopeia do refrão). Seguiu-se-lhe Amélia Muge, que, depois de elogiar o espectáculo idealizado por Patxi como exemplo de “uma Ibéria iluminada”, cantou a solo um tema de José Afonso, De sal de linguagem feita sobre uma base pré-gravada (um belo arranjo de António José Martins para a versão registada no disco colectivo REintervenção), com o único senão de estar a base um pouco alta em relação ao micro da voz. O momento seguinte, porém, foi dos mais belos da noite: o dueto de Amélia e Patxi na Canção de embalar, só vozes e piano, foi notável, emocionante e muitíssimo aplaudido.
O quarto e último convidado foi Carlos Alberto Moniz, o único dos presentes a gravar com José Afonso, nos discos Eu vou ser como a toupeira (1972) e Coro dos tribunais (1974). Apresentou, também, como fizera José Barros, uma canção própria, E um dia fez-se Abril (letra dele e de José Jorge Letria, gravada originalmente com João Paulo Esteves da Silva ao piano). Mas cantou-a com um desagradável excesso histriónico que, embora agradando a parte do público (a julgar pelos aplausos), em nada abonou a seu favor ou da dita canção. Já no dueto com Patxi em Venham mais cinco, Carlos Alberto Moniz mostrou que pode cantar bem – quando quer. Por fim, a celebração da obra de José Afonso terminou com todos os cantores em palco e o apelo de O que faz falta.
Zeca no coração, Patxi na voz, o encore fez-se com dois temas-chave do cantautor espanhol: Padre (que Patxi escreveu numa sentida homenagem ao seu pai) e, depois de vários nomes de canções terem sido gritados da audiência, o elogio do conhecimento a contas com o seu avesso plasmados na icónica El maestro. Se Zeca tivesse podido assistir, teria selado a noite com um abraço, o da tal “Ibéria iluminada”, ou luminosa. Patxi Andión soube consumar na música um encontro físico já impossível e Portugal, mais uma vez, reconheceu-lhe o valor, numa grandeza sem sombra de vedetismos.
E ele retribui. Na sua mais recente crónica no diário digital espanhol Republica.com, no dia 1 de Junho, intitulada Menos mal que nos queda Portugal!, Patxi Andión escreve que “Portugal é um país educado, considerado, onde as pessoas se relacionam com formas que desapareceram de Espanha": "Em Portugal, a cultura nacional é respeitada e valorizada e a cultura que vem de fora é apreciada de igual forma.” Elogia Salvador e Luísa Sobral, e o seu papel de contracorrente no festival da Eurovisão, sublinhando que ambos têm contratos com uma multinacional discográfica. “Em Espanha”, escreve, “estariam a cantar no metro ou na Praça da Ópera”. A fechar, Patxi dá esta explicação para o Estado espanhol não promover uma maior aproximação entre os dois povos: “Porque nós, espanhóis, teríamos de sentar-nos nas carteiras enquanto os portugueses ficariam de pé junto ao quadro.” Daí o título: Menos mal que nos queda Portugal!
Depois do concerto em Lisboa, Zeca no Coração é apresentado esta segunda-feira no Porto, na Casa da Música (às 21h) e depois na Feira de S. João, em Évora (dia 28). Nos convidados, mantêm-se Carlos Alberto Moniz e José Barros, juntando-se-lhes João Afonso, também cantautor, sobrinho de José Afonso (em vez de Amélia Muge, agora a preparar o seu próprio espectáculo, com o pianista Filipe Raposo, que subirá ao palco da Culturgest no noite de 8 de Junho). Por ter esgotado o espectáculo de Patxi Andión em Lisboa, está já marcado outro: será no dia 1 de Novembro, no Tivoli BBVA.