O Governo tinha decidido que devíamos sair
Sei bem o que me disse António Guterres durante os seis dias e as seis noites em que estive refugiado na UNAMET.
O jornalista Luciano Alvarez acusa-me, no artigo intitulado O novo chefe das secretas está a mentir publicado na edição de dia 1 de Junho de, como chefe da Missão de Observação ao Referendo de Timor-Leste, ter cometido dois pecados: o de ter saído de Timor “contrariando directivas do Governo português”; e o de “nunca” ter feito nada para que os timorenses, que trabalharam para a Missão Portuguesa e se encontravam refugiados na UNAMET, fossem retirados.
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O jornalista Luciano Alvarez acusa-me, no artigo intitulado O novo chefe das secretas está a mentir publicado na edição de dia 1 de Junho de, como chefe da Missão de Observação ao Referendo de Timor-Leste, ter cometido dois pecados: o de ter saído de Timor “contrariando directivas do Governo português”; e o de “nunca” ter feito nada para que os timorenses, que trabalharam para a Missão Portuguesa e se encontravam refugiados na UNAMET, fossem retirados.
Não utilizarei a frase usada pelo sr. jornalista de “mente duas vezes”. Mas direi que, no mínimo, confunde-se duas vezes.
Sobre a primeira questão o próprio jornalista se contradiz ao dizer que “o Ministério dos Negócios Estrangeiros… aceitava que todos se retirassem”. Aquilo que digo no livro que publiquei e a que o jornalista chama mentira é a exacta verdade. Na madrugada do dia 10 de Setembro “recebo finalmente, cerca das 5 horas [da manhã], instruções. O Governo tinha decidido que devíamos sair”. Sim, aquilo que L. Alvarez, numa escolha criteriosa de palavras, refere como aceitar “que todos se retirassem” foram “instruções”, “ordem expressa” para sair. Ordem essa que foi decidida ao mais alto nível do Estado Português.
L. Alvarez recicla citações suas para me atacar. Mas omite o que publicou a 7 de Setembro: "Os observadores portugueses foram atacados nas instalações onde se encontravam e tiveram de refugiar-se em condições precárias na UNAMET. Anteontem [dia 5] chegou a admitir-se a evacuação, mas o chefe da missão de observadores portugueses, Júlio Pereira Gomes, diz que isso nunca esteve em causa". Pergunta: "Depois de ponderar a possibilidade de a missão portuguesa deixar Díli devido aos actos de violência, decidiu continuar no território. Que razões o levaram a tomar essa decisão?" Resposta: "Desde o princípio que existiam planos de contingência para uma evacuação se as condições de segurança se degradassem ao ponto de termos de optar pela evacuação. Quando tivemos de abandonar as casas que ocupávamos e a nossa sede e nos deslocámos para a sede da UNAMET, estávamos mais próximos de um cenário de evacuação, mas nunca estivemos num momento em que achássemos que era absolutamente necessário sair".
Curiosamente quem primeiro pediu a evacuação foram precisamente os jornalistas. Cito do meu diário: no dia 6 de Setembro “José Vegar pede para falar comigo, em nome dos jornalistas portugueses… Diz-me que Ian Martin está sem estratégia, não sabe o que se passa nem o que fazer. Vegar continua: "como chefe da Missão você tem de mandar vir um C-130 para nos evacuar. Senão vamos ser todos massacrados" (pág. 118).
L. Alvarez confunde-se ainda quando sugere “muitos esforços…nomeadamente de António Guterres, nas 48 horas anteriores, para que a missão ficasse pelo menos até à chegada dos homens do Conselho de Segurança da ONU”.
Sei bem o que me disse António Guterres durante os seis dias e as seis noites que estive refugiado na UNAMET. Nunca ele - nem de resto ninguém - utilizou tal argumento. Até porque teria sido impossível. Quando o Governo português toma a decisão de sairmos (entre a meia noite e as 5h do dia 10, hora de Timor) não estava prevista qualquer deslocação da Delegação do Conselho de Segurança (CS) a Díli. Segundo o relato do embaixador inglês, Sir J. Greenstock, que integrava a delegação do CS, esta encontra-se com Wiranto a 10/9/1999. O embaixador da Namíbia Martin Andjaba, como chefe da delegação, manifesta ao general Wiranto o desejo de ir a Timor. Wiranto responde: "Não é necessário … Asseguro-lhe que a calma voltou a Timor Oriental". Nesse momento, o telefone portátil do chefe da Missão do Conselho de Segurança toca. É Ian Martin. A sede da ONU acaba de ser atacada à granada, diz o chefe da UNAMET. O embaixador namibiano dá conta da sua conversa ao general Wiranto que pede aos seus ajudantes-de-campo que verifiquem a situação. Os incidentes não são sérios, insiste ele… O telefone do embaixador namibiano toca de novo. Os ataques são cada vez mais graves, diz Ian Martin. O general Wiranto não tinha outra saída. Aceita a ideia de uma visita a Díli (Cfr. Le Monde, 31/10/1999 e ONU, Doc. S/1999/976, de 14/9/1999. Nesse momento já nós estávamos a caminho de Darwin.
Sobre a 2.ª questão o sr. jornalista diz que eu “nunca” teria feito nada. Diz ainda que a “ONU … decidiu… num acordo com a Austrália, que ninguém ficava para trás. E o tema dos portugueses que trabalhavam para a missão portuguesa deixou de ter relevância”. Volta a confundir-se.
No dia 10, quando fomos retirados, a esmagadora maioria dos timorenses refugiados na sede da UNAMET fica, de facto, “para trás”. Só saem aqueles que eram funcionários das Nações Unidas ou da Missão Portuguesa e poucos mais (como familiares de Ramos Horta).
Para que os timorenses, nossos funcionários, pudessem sair nesse dia foi necessário incluí-los numa lista e negociar a sua saída com a Indonésia e, mais difícil ainda, com a Austrália que, naquele momento, não queria receber refugiados timorenses. L. Alvarez não diz quem elaborou a lista e acompanhou os timorenses às entrevistas individuais com o funcionário consular australiano que tentava justamente assegurar-se que o “esquema” não era “abusado” por outros timorenses e de que apenas os nossos funcionários saíam. Pois foi o António Gamito e eu.
Cito o meu diário: No dia 8 de Setembro, “cerca das 13h, Ian Martin convoca-me. Informa-me que acabava de ser decidida a evacuação total da UNAMET. O secretário-geral da ONU estaria em contacto com o presidente Habibie para obter garantias para a nossa saída… Ian Martin pede-me para não revelar a informação a ninguém durante as próximas horas. Digo-lhe que só poderia atender ao seu pedido, se me garantisse que os timorenses funcionários da MOPTL [Missão Portuguesa] e seus familiares também sairiam. De contrário, teria de informar imediatamente o meu Governo da situação. Disse-me que sim… Diz-me para entregar a lista dos portugueses a evacuar e dos nossos funcionários e seus familiares ao funcionário da UNAMET encarregue da operação de evacuação e ao funcionário consular australiano”. (pag.123)
O Ministério dos Negócios Estrangeiros, em telegrama desse dia (8/9/99, 13h45), para Nova Iorque e Jacarta, diz: "Face iminência nossa Missão Observadores ser obrigada retirar Díli, quadro mais global evacuação UNAMET, muito agradeceríamos V. Ex.ª assegurasse com maior urgência junto essas autoridades que funcionários locais por nós contratados serão também autorizados a sair. Segundo dados transmitidos esta manhã por Dr. Pereira Gomes, haverá 24 pessoas nessa situação, tendo seus nomes sido já comunicados a Chefe UNAMET. Ian Martin terá garantido que os incluirá plano evacuação, tendo porém solicitado estas diligências". É caso para dizer que o MNE se terá deixado enganar por mim pois como assegura L. Alvarez eu não teria feito “nunca” nada pelos timorenses nossos funcionários.
Bem sei que a memória é curta – o que se compreende relativamente a acontecimentos com quase 18 anos – e o rigor é aproximativo, mas, contrariamente ao que o sr. jornalista diz, a evacuação da Missão não se deu a “9 de Setembro de 1999”. Foi a 10! Detalhe? Talvez não.