Os 60.000 euros que envergonham a Justiça portuguesa
A condenação de Portugal em Estrasburgo põe termo a um dos processos mais lamentáveis da história recente dos nossos tribunais.
Passados mais de dez anos, terminou na passada terça-feira a saga judicial que teve origem com a publicação, em 29 de Setembro de 2006, de um editorial do então director do jornal PÚBLICO, com o título “A estratégia da aranha — Noronha de Nascimento, o homem que vai presidir ao Supremo, representa a face sombria da nossa Justiça”.
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Passados mais de dez anos, terminou na passada terça-feira a saga judicial que teve origem com a publicação, em 29 de Setembro de 2006, de um editorial do então director do jornal PÚBLICO, com o título “A estratégia da aranha — Noronha de Nascimento, o homem que vai presidir ao Supremo, representa a face sombria da nossa Justiça”.
Nesse texto, José Manuel Fernandes, de uma forma crítica e contundente, pronunciava-se sobre a eleição, no dia anterior, do juiz Noronha do Nascimento para o lugar de presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O visado, meses depois, recorreu aos tribunais nacionais onde conseguiu a condenação do jornalista e da sua mulher.
Há cerca de quatro meses, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) declarou, por unanimidade, que os tribunais portugueses, ao condenarem José Manuel Fernandes e a sua mulher a pagarem ao presidente do STJ uma indemnização no valor de 60.000 euros por afirmações do referido editorial, tinham violado a liberdade de expressão do jornalista, já que este tinha suficientes fundamentos factuais para ter exprimido as opiniões que exprimira e, por isso mesmo, condenou o Estado a pagar ao jornalista as despesas judiciais que este tinha suportado.
O Estado português apresentou ainda um recurso para a Grande Câmara do TEDH, invocando que a queixa não devia ter sido sequer recebida, já que, por um lapso da defesa do jornalista, assumido por esta, o STJ não se tinha pronunciado definitivamente sobre o assunto. Mas o TEDH não aceitou o recurso e a condenação de Portugal do passado dia 17 de Janeiro tornou-se definitiva, pondo termo a um dos processos mais lamentáveis da história recente dos nossos tribunais.
Lamentável, em primeiro lugar, pelo conteúdo das decisões judiciais, no que revelaram de incompreensão do papel da liberdade de expressão numa sociedade democrática e de provinciano corporativismo que chegou ao ponto de o Tribunal da Relação de Lisboa, ao fixar em 60.000 euros o valor da indemnização a pagar pelas ofensas feitas ao presidente do STJ, o ter justificado tendo em conta que esse era o valor médio que o valor vida assumia na jurisprudência do STJ! Igualmente chocante e lamentável, e inédita no nosso país, foi a condenação da mulher de um jornalista pelo artigo escrito pelo marido, já que teria beneficiado do seu salário!
Mas para além da forma lamentável como os tribunais nacionais, nas suas decisões, não foram capazes de se afastar da omnipresença do juiz Noronha do Nascimento, importa referir que o próprio presidente do STJ não se coibiu de estar presente em sessões da audiência do julgamento na 1.ª instância, condicionando, inevitavelmente, as sessões, ao mesmo tempo que se ia pronunciando publicamente sobre a necessidade de a comunicação social ser condenada a pagar pesadas indemnizações!
Noronha do Nascimento, qual Donald Trump nacional, enquanto corria o processo contra José Manuel Fernandes, desancava na comunicação social manipuladora e prometia tempos melhores. Nas próprias instalações do STJ, e na qualidade de presidente do STJ, comentou num colóquio que o editorial do director do PÚBLICO assumia o “carácter inconfundível de um requiem encomendado por uma impunidade que se vai perdendo”. E, meses depois, no boletim do Conselho Superior da Magistratura, Noronha do Nascimento, presidente desse órgão, declarava urbi et orbi que tinha sido “insultado e injuriado pelo director de um jornal em pré-falência” e, modestamente, acrescentava que “nesse editorial, não se descredibilizava apenas o presidente do STJ, mas todo o STJ, o Tribunal Constitucional, enfim, os juízes e os tribunais no seu conjunto”! Um recado, que provavelmente entendeu como subtil, para o juiz de 1.ª instância que julgava o jornalista.
Condenado em Portugal, o jornalista recorreu a Estrasburgo, que lhe deu razão, esclarecendo que tinha o direito de escrever o que tinha escrito e censurando as decisões judiciais portuguesas por confundirem opiniões com afirmações de facto, não terem em conta a totalidade do artigo e o seu interesse público, terem fixado um altíssimo valor de indemnização e terem condenado também a mulher do director do PÚBLICO. Uma vergonha.
(Declaração de interesses: fui advogado de José Manuel Fernandes e da sua mulher em Portugal e em Estrasburgo.)