A esquerda acelerada
Um assentimento geral dá vida longa a esta piada: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Esta paralisia de ordem política não é igual a tantas outras do passado porque o que está em causa, agora, não é só o curso da História e as representações e configurações de ordem política, é também um cataclismo ecológico global que nos reenvia para o nosso frágil estatuto de earthbound, de seres ligados à terra, como diz o sociólogo Bruno Latour. Uma heresia política contemporânea que interpela sobretudo a esquerda e as suas tendências nostálgicas (veja-se, por exemplo, como ela joga muito mais na miragem do pleno emprego do que na lógica de um mundo sem trabalho com o qual estamos confrontados) é um polémico manifesto publicado em 2013 por dois universitários ingleses: Nick Srnicek e Alex Williams. Trata-se do Accelerate Manifesto for an Acclerationist Politics. Parece certamente estranho como é que um programa “aceleracionista” pode ser uma alternativa numa época em que a regra a que tudo está sujeito é precisamente a velocidade. O que leva todo o pensamento ecológico a defender o regresso à lentidão. Diga-se, em boa verdade, que o Manifesto Aceleracionista cai numa tecnofilia ingénua, quando não ganha até a dimensão de um “prometeísmo demente”, como observou o filósofo francês Yves Citton (que o traduziu para francês, na revista Multitudes). O Manifesto pretende superar o capitalismo neoliberal e recuperar, para a esquerda, a ideia perdida de futuro. Este modo de pensar suscita imediatamente esta interrogação: o capitalismo neoliberal não impôs precisamente a lei da aceleração, em todos os domínios? Fazendo uma distinção entre velocidade e aceleração, os autores do Manifesto defendem que o que se passa é que temos o sentimento de que avançamos rapidamente, mas os fundamentos não sofrem qualquer mudança. Aumentamos a velocidade sem alterar a mudança da bicicleta. Por isso, precisamos de pedalar cada vez mais. Ora, o Manifesto Aceleracionista é de um grande optimismo: entende que a passagem para um pós-capitalismo se pode dar aproveitando as infra-estruturas do capitalismo, da logística à finança, transformando do interior a sua estrutura material. E critica a negatividade da esquerda, a sua obsessão pela resistência (que tem como efeito confirmar pura e simplesmente as regras daquilo que recusa), a sua incapacidade em ser afirmativa e constituir um horizonte positivo de superação. Podemos mesmo dizer que este Manifesto tem uma enorme capacidade de mostrar, com grande verosimilhança, os anacronismos, as ineficiências e as impotências da esquerda tradicional. O movimento de aceleração deve consistir num pragmatismo que reorienta as potencialidades sociais do capitalismo numa outra direcção, reapropriando-se do progresso científico e tecnológico. Não se trata de destruir ou fazer tábua-rasa, mas de transformar do interior. O ponto mais polémico do Manifesto é aquele em que os seus autores escrevem: “Os aceleracionistas querem libertar as forças produtivas latentes. No âmbito deste programa, a plataforma material do neoliberalismo não precisa de ser destruída. Tem de ser reorientada para finalidades comuns”. Tratando-se de um Manifesto, não admira que o texto deixe muitas coisas em suspenso e ostente um impulso idealista (limitei-me aqui a descrever as suas proposições mais gerais). Mas ele tem uma grande virtude, que um dos seus comentadores mais notáveis, Toni Negri, resumiu desta maneira: “A aceleração tem as características de um processo experimental de descoberta e de criação no interior do espaço de possibilidades determinado pelo próprio capitalismo”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Um assentimento geral dá vida longa a esta piada: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Esta paralisia de ordem política não é igual a tantas outras do passado porque o que está em causa, agora, não é só o curso da História e as representações e configurações de ordem política, é também um cataclismo ecológico global que nos reenvia para o nosso frágil estatuto de earthbound, de seres ligados à terra, como diz o sociólogo Bruno Latour. Uma heresia política contemporânea que interpela sobretudo a esquerda e as suas tendências nostálgicas (veja-se, por exemplo, como ela joga muito mais na miragem do pleno emprego do que na lógica de um mundo sem trabalho com o qual estamos confrontados) é um polémico manifesto publicado em 2013 por dois universitários ingleses: Nick Srnicek e Alex Williams. Trata-se do Accelerate Manifesto for an Acclerationist Politics. Parece certamente estranho como é que um programa “aceleracionista” pode ser uma alternativa numa época em que a regra a que tudo está sujeito é precisamente a velocidade. O que leva todo o pensamento ecológico a defender o regresso à lentidão. Diga-se, em boa verdade, que o Manifesto Aceleracionista cai numa tecnofilia ingénua, quando não ganha até a dimensão de um “prometeísmo demente”, como observou o filósofo francês Yves Citton (que o traduziu para francês, na revista Multitudes). O Manifesto pretende superar o capitalismo neoliberal e recuperar, para a esquerda, a ideia perdida de futuro. Este modo de pensar suscita imediatamente esta interrogação: o capitalismo neoliberal não impôs precisamente a lei da aceleração, em todos os domínios? Fazendo uma distinção entre velocidade e aceleração, os autores do Manifesto defendem que o que se passa é que temos o sentimento de que avançamos rapidamente, mas os fundamentos não sofrem qualquer mudança. Aumentamos a velocidade sem alterar a mudança da bicicleta. Por isso, precisamos de pedalar cada vez mais. Ora, o Manifesto Aceleracionista é de um grande optimismo: entende que a passagem para um pós-capitalismo se pode dar aproveitando as infra-estruturas do capitalismo, da logística à finança, transformando do interior a sua estrutura material. E critica a negatividade da esquerda, a sua obsessão pela resistência (que tem como efeito confirmar pura e simplesmente as regras daquilo que recusa), a sua incapacidade em ser afirmativa e constituir um horizonte positivo de superação. Podemos mesmo dizer que este Manifesto tem uma enorme capacidade de mostrar, com grande verosimilhança, os anacronismos, as ineficiências e as impotências da esquerda tradicional. O movimento de aceleração deve consistir num pragmatismo que reorienta as potencialidades sociais do capitalismo numa outra direcção, reapropriando-se do progresso científico e tecnológico. Não se trata de destruir ou fazer tábua-rasa, mas de transformar do interior. O ponto mais polémico do Manifesto é aquele em que os seus autores escrevem: “Os aceleracionistas querem libertar as forças produtivas latentes. No âmbito deste programa, a plataforma material do neoliberalismo não precisa de ser destruída. Tem de ser reorientada para finalidades comuns”. Tratando-se de um Manifesto, não admira que o texto deixe muitas coisas em suspenso e ostente um impulso idealista (limitei-me aqui a descrever as suas proposições mais gerais). Mas ele tem uma grande virtude, que um dos seus comentadores mais notáveis, Toni Negri, resumiu desta maneira: “A aceleração tem as características de um processo experimental de descoberta e de criação no interior do espaço de possibilidades determinado pelo próprio capitalismo”.