O que é que a construção da Ponte da Arrábida tem que ver com a Selminho?
Faz agora 60 anos que as obras da Ponte da Arrábida se iniciaram. Nesse feito da engenharia nacional está a origem da controvérsia sobre os terrenos que pertencem, de igual modo, à empresa Selminho e à Câmara do Porto.
À data do início da obra, em Março de 1957, a Ponte da Arrábida, entre Porto e Vila Nova de Gaia, batia um recorde invejável: era aquela que tinha o maior arco em betão armado do mundo. O projecto era do engenheiro Edgar Cardoso e a arte da construção pertencia ao engenheiro José Pereira Zagallo, o empreiteiro geral, e aos seus operários e mestres, muitos deles, tal como o patrão, originários de Aveiro.
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À data do início da obra, em Março de 1957, a Ponte da Arrábida, entre Porto e Vila Nova de Gaia, batia um recorde invejável: era aquela que tinha o maior arco em betão armado do mundo. O projecto era do engenheiro Edgar Cardoso e a arte da construção pertencia ao engenheiro José Pereira Zagallo, o empreiteiro geral, e aos seus operários e mestres, muitos deles, tal como o patrão, originários de Aveiro.
Atendendo à envergadura excepcional da empreitada, que se prolongou por seis anos, um dos bicos de obra da firma J. P. Zagallo foi o alojamento do pessoal. Entre os mais afortunados, aqueles que ficaram junto aos estaleiros, encontrava-se o mestre Álvaro Nunes Pereira. Já tinha corrido ceca e meca a erguer ponte e viadutos, mas as vistas do Douro e da Foz prenderam-no para sempre à escarpa da Arrábida.
À semelhança do que aconteceu em muitas outras obras públicas, com aqueles que as erguiam, foi nos terrenos contíguos à ponte, expropriados para esse fim ou não, que Álvaro Pereira acabou por se fixar. Como foi ao certo já ninguém se lembra, mas foi para lá, na Calçada da Arrábida n.º 7, numa velha casa com um terreno a cair para o rio e seguro por socalcos que davam couves e feijões, que trouxe a família de Aveiro. Foi de lá que a filha Maria Irene foi à escola e foi lá, numa pequena casa junto à do pai, que ela continuou a viver quando se casou com o taxista João Baptista Ferreira, transmontano de Mirandela.
Em nome deste, em 1975, foi feito o contrato de fornecimento de electricidade à habitação que foram arranjando e, um pouco mais acima, na modesta Rua da Arrábida, não longe do que viria a ser o Bairro do Aleixo, Maria Irene tomou de trespasse uma mercearia. Nem ao pai nem a ela, ao longo destes 60 anos, alguma vez alguém perguntou fosse o que fosse sobre a propriedade das casas e dos mais de dois mil m2 de terra e pedras de que dispunham como seus.
Só em 1998, com as obras do condomínio Douro Foz, ali por baixo, a fazer tremer a escarpa, é que os Pereiras perceberam que tinham de descer do céu à terra. Pelo caminho pediram ajuda ao jovem advogado Nuno Carvalhinhas e foi graças a uma veneranda figura do direito romano, a usucapião, que em Março de 2001 se tonaram donos daquilo que, pela lei fundada nos usos e costumes, já era seu.
O que eles não sonhavam é que o seu quinhão já tinha dono e que este também não sonhava que o tinha. E foi por isso que o terreno que era da Câmara do Porto desde 1950, mas do qual esta nunca tinha cuidado como se fosse, passou a ser de João Batista e da mulher, cumpridas as formalidades legais inerentes à sua aquisição e registo.
Mas as vistas que meio século antes tinham deslumbrado o pai de Maria Irene, e outros construtores de pontes que por ali ficaram, eram as mesmas que já então levavam muitos fazedores de dinheiro a bater-lhes à porta, em busca de negócio. Com os terrenos, escarpados ou não, a atingirem preços nunca vistos, a oportunidade estava à mão. O advogado que tinha tratado da legalização da propriedade e que garante nunca ter tido qualquer contacto anterior com a família de Rui Moreira fez o resto.
Menos de um mês depois da publicação de um anúncio a duas colunas nas páginas do Jornal de Notícias, com o número de telefone do advogado, a venda estava apalavrada com a empresa Inteplacas. Foi então, relata Nuno Carvalhinhas, que lhe apareceu no escritório Luis Miguel Moreira, gerente da firma Selminho, de que eram sócios os seus sete irmão, entre os quais Rui Moreira, o actual presidente da Câmara do Porto.
Ainda que um dos sócio da Selminho tenha memória de um agente imobiliário francês então estabelecido no Porto, Bernard Fouquet, a intermediar o contacto, o advogado mantém que não houve qualquer intermediação. Certo é que a proposta da Selminho cobriu a da Interplacas e esta ficou fora de jogo.
A escritura foi lavrada logo em Julho de 2001 e com os 35 mil contos que recebeu, segundo reza a escritura, o casal Ferreira, que o PÚBLICO não conseguiu ouvir, comprou a moradia em que ainda vive do outro lado da ponte, em Gaia.
Para as silvas e para os gatos ficaram o terreno e as casas, agora em ruínas, que tinham sido do taxista, da mulher e do sogro. Para a burocracia camarária e judicial ficaram as guerras em que a Selminho e o município se envolveram depois.
Guerras em que a câmara sempre reconheceu a propriedade como sendo da Selminho, mas que acabaram por revelar que afinal a propriedade era, na sua maior parte, do próprio município. Não fosse o abandono, em termos de limpeza de matos, a que a imobiliária da família Moreira votou a parcela em que queria construir 12 apartamentos topo de gama, com projecto do arquitecto Alcino Coutinho, e a batalha que se anuncia pela propriedade do terreno e que já está a pôr o Porto político ao rubro nunca teria começado.
É que foram as silvas e a bicharada que o abandono traz que, em anos sucessivos, levaram os gestores do vizinho condomínio Douro Foz a requerer à câmara, por motivos de salubridade e segurança, a limpeza dos terrenos cujo proprietário desconheciam. E enquanto os serviços jurídicos e de Urbanismo da autarquia pelejavam em tribunal desde 2005 por causa das pretensões da Selminho para construir no terreno que tinha comprado, os serviços de Ambiente da mesma autarquia gastavam quase dois mil euros por ano para desmatar o mesmo terreno que sabiam ser do município.
Já em 2015, senão antes, os responsáveis destes serviços tinham investigado a dominialidade da parcela para saber a quem deveriam apresentar a conta da limpeza. A conclusão foi a de que ela era maioritariamente da câmara, que pagou a factura à empresa Suma.
O mesmo aconteceu em 2016. Para azar de quem os tribunais vierem a decidir, desta vez, os serviços de património do município aperceberam-se, casualmente, que a propriedade também estava registada em nome da Selminho. A culpa foi da polémica gerada em torno do litígio existente entre a autarquia e a empresa da família Moreira quanto aos direitos de construção que esta tem, ou não, no local.
Por causa dela saiu num jornal a planta dos terrenos da Selminho e os serviços da Direcção Municipal de Finanças e Património somaram dois mais dois e fizeram o trabalho que lhes compete.
Agora só falta saber quem é que vai este Verão pagar a limpeza do terreno.