Uma retrospectiva da história feminista (e não muito feminista) da Mulher-Maravilha
Em 1942, a Mulher-Maravilha revela-se tão popular que ganha uma banda-desenhada própria na Sensation Comics.
Durante a II Guerra Mundial, enquanto o Super-Homem e o Batman emergiam como símbolos pop dominantes de força e de moralidade, a editora que viria a tornar-se a DC Comics precisava de um antídoto para aquilo a que um psicólogo de Harvard chamava o pior crime das bandas-desenhadas de super-heróis: a “masculinidade aterradora”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Durante a II Guerra Mundial, enquanto o Super-Homem e o Batman emergiam como símbolos pop dominantes de força e de moralidade, a editora que viria a tornar-se a DC Comics precisava de um antídoto para aquilo a que um psicólogo de Harvard chamava o pior crime das bandas-desenhadas de super-heróis: a “masculinidade aterradora”.
Afinal, este psicólogo (William Moulton Marston) tinha um plano para combater este crime – sob a forma de uma guerreira com as estrelas e as listas da bandeira americana, que conseguia escapar constantemente às amarras de um mundo masculino de orgulho e preconceito desmedido. Essa criação foi Diana Prince, que ao chegar à América, vinda da sua isolada Ilha do Paraíso, assumiu a identidade de Mulher-Maravilha.
Por um lado, Marston era um homem com ideias políticas progressistas, que declarava com entusiasmo que estava em curso um grande movimento das mulheres. Por outro lado, ele também personificava algumas ideias primitivas.
Marston insistia que a Mulher-Maravilha estivesse acorrentada ou presa de alguma maneira em todos os capítulos, dizendo ao seu editor da DC que “as mulheres gostam de submissão” – mesmo quando este acorrentar torturante gerou críticas por parte dos leitores. Mas Marston também estava bem ciente de que o “romper de amarras” era um poderoso símbolo feminista de emancipação. E Marston – cujo trabalho científico conduziu ao desenvolvimento do teste de detecção de mentiras – também equipou a Mulher-Maravilha com o Laço da Verdade dourado e poderoso, que obriga quem for capturado por ele a contar a verdade.
(Marston era pouco verdadeiro em relação a si próprio: vivia em segredo numa relação poliamorosa com duas feministas – a mulher, a advogada Elizabeth Holloway Marston, e a sua antiga aluna da faculdade, Olive Byrne, sobrinha de Margaret Sanger, a pioneira da pílula contraceptiva. Teve dois filhos com cada uma delas.)
Vinda desta complexa história sobre sua origem, nascida de uma mente complicada, a Mulher-Maravilha estreou-se na All-Star Comics em 1941. Na véspera da estreia do novo filme Mulher-Maravilha – que, sendo a primeira longa-metragem a solo da personagem, também riposta contra o domínio dos super-heróis masculinos no mercado – apresenta-se aqui uma cronologia da história feminista (e pouco feminista) da Mulher-Maravilha.
1941: A criação: Segundo a tradição, inicialmente Marston não pensou numa personagem feminina quando imaginou um super-herói menos masculino do que o Super-Homem. Mas, posteriormente, Marston caracteriza esta solução como natural, afirmando: “As qualidades fortes das mulheres têm-se tornado odiadas por causa da fraqueza delas. A solução óbvia é criar uma personagem feminina com a mesma força do Super-Homem e também com o encanto de uma mulher bondosa e bela.”
Ao ser contratado como conselheiro editorial na All-American/Detective Comics, Marston vende a sua personagem da Mulher-Maravilha ao editor, sob o acordo de as suas histórias destacarem “o crescimento do poder das mulheres”. Ele une-se ao artista homem Harry G. Peter (e não a uma mulher) para criar o fato da Mulher-Maravilha, que mostra muito o corpo e inclui uma tiara.
A Mulher-Maravilha aparece pela primeira vez no All-Star Comics Nº8, usando pulseiras parecidas às que usava Byrne (a antiga aluna de Marston que se tornou sua amante). De acordo com a prosa da Mulher- Maravilha, as pulseiras tinham sido “construídas pelos nossos captores” como símbolos físicos de que “temos de nos manter sempre distantes dos homens”. Jill Lepore, da The New Yorker, autora do livro The Secret History of Wonder Woman, escreve que o aspecto da Mulher-Maravilha – com uma alusão às sensuais “Varga Girls” da época – é “a sufragista como pinup”.
Primavera de 1942: “Parte do grupo dos rapazes” – mais ou menos: Ao fim de meia-dúzia de edições do All-Star Comics, a Mulher-Maravilha torna-se membro honorário da Liga da Justiça da América, mas, durante muito tempo, a sua posição oficial continua a ser de “secretária” – uma distinção surpreendente, em comparação com os outros heróis.
Verão de 1942: Estrelato a solo: A Mulher-Maravilha revela-se tão popular que ganha uma banda-desenhada própria na Sensation Comics. Como escreve Martin Pasko no seu livro The DC Vault, a ascensão da Mulher-Maravilha foi garantida “por uma epidemia de veneração de heróis que se viria a apoderar da ‘frente interna’ enquanto os homens iam para a guerra”. À medida que Rosie the Riveter se torna um ícone e as mulheres assumem o lugar dos homens nos EUA, os leitores de todas as idades aceitam mais facilmente a heroína feminina dura e musculada. Dentro de poucos anos, a Mulher-Maravilha tem dez milhões de leitores e a sua própria banda-desenhada, publicada em vários jornais em simultâneo.
Década de 1950: A ascensão do romance novelesco: A reacção exagerada do Congresso americano face às conclusões questionáveis do psiquiatra Fredric Wertham — autor do livro Sedução dos Inocentes, sobre os “efeitos” da banda-desenhada nas crianças — leva à criação do Comics Code Authority — essencialmente, o consentimento por parte dos editores em moderar os conteúdos. Como resultado desta medida repressiva, as bandas-desenhadas de super-heróis e de terror declinam e as histórias românticas crescem. Seguindo esta tendência, Diana Prince – que abandonou a Ilha do Paraíso, habitada apenas por mulheres, com o herói militar Steve Trevor, cujo avião se tinha despenhado – torna-se uma figura com uma mentalidade mais doméstica, cujos pensamentos estão muitas vezes centrados no casamento e em ser modelo, quando não está a trabalhar como cronista dedicada a “corações solitários”.
Final da década de 1960: Rendição total: o sacrifício fica completo: Diana decide abdicar dos seus superpoderes para poder ficar perto de Steve. Duas décadas depois da morte de Marston, a narrativa está muito longe das intenções expressas pelo criador, quando este escrevera: “A Mulher-Maravilha é propaganda psicológica para um novo tipo de mulher que devia, creio eu, mandar no mundo.”
1972: Figura de capa: A Mulher-Maravilha reforça a sua percepção como ícone feminista ao aparecer na primeira capa da revista Ms., de Gloria Steinem, ligando desta forma a sua imagem ao movimento dos direitos das mulheres.
1973-1975: Estrelato feminino: A Mulher-Maravilha aumenta a sua presença e popularidade na televisão, quando participa na série de animação Super Friends; faz a sua estreia no pequeno ecrã em live-action, com um telefilme de 1974 protagonizado por Cathy Lee Crosby; e, posteriormente, obtém a sua própria série de televisão nomeada para os Emmy, protagonizada pela icónica Lynda Carter. A Mulher-Maravilha “engloba todos os aspectos excelentes e poderosos de ser mulher e Lynda levou tudo a sério”, disse ao fansite da DC Comics Marc Andreyko, autor da série de banda-desenhada Wonder Woman ’77.
1997-1999: A série afunda-se: A NBC desenvolve uma nova série de live-action em que Diana Prince vai trabalhar como professora de História Grega na UCLA. Apesar de iniciativas de casting a nível nacional, a série é cancelada antes de se filmar um único frame. Entretanto, na banda-desenhada, John Byrne escreve uma série memorável da Mulher-Maravilha em meados dos anos 90, onde a apresenta como uma deusa musculada.
2009: Apontar para um regresso: A Mulher-Maravilha volta a ter um sucesso a solo nos ecrãs. Keri Russell dá voz à super-heroína amazona no filme animado directo para DVD Wonder Woman, da WB/DC, realizado por Lauren Montgomery.
Setembro de 2016: Os rumores são verdade: O autor da DC Greg Rucka confirma a crença de longa data de que a Mulher-Maravilha é canonicamente gay . Rucka diz ao site Comicosity: “Pelos nossos padrões, na minha posição actual… Themyscira [Ilha do Paraíso] é cultura queer. Não estou a fugir a isso. Quem quiser ser ambíguo em relação a isto está a ser parvo.”
Outubro-Dezembro de 2016: Embaixadora Prince: As Nações Unidas nomeiam a Mulher-Maravilha como embaixadora honorária, com a intenção de a transformar em mais do que uma heroína que combate o crime e luta contra supervilões, de modo a ajudar a consciencializar as pessoas para a igualdade de género e para “a capacitação das mulheres e das raparigas como componente crucial para um mundo pacífico e próspero”.
No entanto, em Dezembro, as Nações Unidas livram-se da Mulher-Maravilha depois de muitos dos seus funcionários terem protestado contra uma personagem que afirmam, numa petição, ser uma figura fortemente sexualizada – “a epítome de uma pinup girl” que agora personifica “uma mulher branca de seios grandes e proporções impossíveis, muito pouco vestida num fato brilhante que revela as coxas, com um padrão da bandeira americana e botas até ao joelho.”
2 de Junho de 2017: A passadeira vermelha decorada com a bandeira americana: Mulher-Maravilha marca o primeiro filme a solo para uma heroína do Universo Alargado da DC (DCEU) e o primeiro filme da DCEU a ser realizado por uma mulher, Patty Jenkins. Mas, ainda assim, Jenkins diz à secção Comic Riffs do Washington Post: “Não me considero uma cineasta mulher e não penso no Mulher Maravilha como um filme feminino — é sobre um herói”.