Armando Silva Carvalho (1938-2017): um poeta ácido, lúcido, erótico, político

O autor morreu esta quinta-feira de manhã, aos 79 anos, num hospital das Caldas da Rainha. Tinha publicado há dois anos um dos grandes livros da poesia portuguesa contemporânea, A Sombra do Mar, que ganhou quantos prémios havia para dar.

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RUI GAUDÊNCIO

O poeta Armando Silva Carvalho, um dos nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea, morreu um pouco antes das oito da manhã desta quinta-feira no hospital Montepio Rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha, na sequência de um cancro nos pulmões que só há dias fora diagnosticado. Tinha 79 anos.

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O poeta Armando Silva Carvalho, um dos nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea, morreu um pouco antes das oito da manhã desta quinta-feira no hospital Montepio Rainha D. Leonor, nas Caldas da Rainha, na sequência de um cancro nos pulmões que só há dias fora diagnosticado. Tinha 79 anos.

O seu corpo foi velado a partir do meio da tarde de quinta-feira na igreja de Olho Marinho, no concelho de Óbidos, onde o poeta nasceu, e o funeral sairá sexta-feira às 17h30 para o cemitério local. A missa será celebrada pelo seu amigo, e também poeta, José Tolentino Mendonça.

Autor de alguns dos mais importantes títulos da poesia portuguesa das últimas décadas, como Alexandre Bissexto (1983), Canis Dei (1995) ou Lisboas (2000), não só escreveu quase até ao fim, como o vinha fazendo ao mais alto nível: a energia criativa do seu último volume de poemas, A Sombra do Mar (2015), escrito já a caminho dos 80, só tem talvez paralelo recente em Servidões (2013), de Herberto Helder, a quem Armando Silva Carvalho presta aliás homenagem num dos melhores textos do livro, O Grande Artesão.

A qualidade desta que veio a ser a sua obra final não passou despercebida: num exemplo de absoluto consenso muitíssimo pouco habitual, sobretudo tendo em conta a diversidade das instituições e júris envolvidos, A Sombra do Mar ganhou os prémios da Sociedade Portuguesa de Autores, da Fundação Inês de Castro, da revista Cão Celeste e do festival Correntes d’Escritas, e venceu ainda o Grande Prémio de Poesia António Feijó, co-atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores (APE) e pela Câmara de Ponte de Lima.

Este reconhecimento deu “um grande ânimo” ao poeta numa fase em que este recuperava de um AVC, e terá contribuído para o levar a escrever alguns poemas – entretanto publicados no recém-lançado número 4 da revista Delphica –, contou à Lusa o seu amigo José Manuel Vasconcelos, dirigente da APE, que considera Armando Silva Carvalho “um dos grandes poetas portugueses”, autor de “uma poesia de grande intensidade, amarga, mas de uma profunda lucidez em relação à realidade que o circundou”, uma poesia “que quase dá patadas no leitor”.

Também o ministro da Cultura já lamentou esta morte num comunicado que denuncia o poeta e leitor de poesia que Luís Filipe Castro Mendes também é: Armando Silva Carvalho, diz a nota, “destacou-se como uma das vozes mais singulares da nossa literatura, tanto na poesia como na prosa, graças ao modo como consegue articular certas experiências do quotidiano e uma notável criatividade da linguagem, levando a que as emoções individuais sejam filtradas por um olhar lúcido e muitas vezes irónico sobre a realidade circundante”.

Uma das curiosas particularidades da recepção de Armando Silva Carvalho é o facto de a regularidade dos prémios e de outros sinais exteriores de apreço, como a presença nas principais antologias, nunca ter verdadeiramente tido a contrapartida que seria de esperar em termos de produção crítica sobre a sua obra. Numa entrevista dada ao PÚBLICO há quase exactamente dez anos, por ocasião do lançamento da primeira compilação da sua obra poética (O que Foi Passado a Limpo, Assírio & Alvim, 2007), o autor sugeria mesmo que o longo prefácio escrito por José Manuel de Vasconcelos para esse volume era a primeira abordagem de fundo que alguém fazia à sua poesia.

De Gastão Cruz, seu amigo e companheiro de geração, passando pelo poeta Luís Miguel Nava, até críticos mais recentes, como Hugo Pinto Santos ou Joana Frias Martins, foram muitos os que escreveram sobre Armando Silva Carvalho, incluindo Eduardo Lourenço, que sublinhou a “acuidade” e “originalidade” da subversão da mitologia cultural lusíada que o autor empreende na prosa ficcional de Portuguex (1977). Mas fica a sensação de que falta ainda o grande estudo que esta obra merece.  

Num testemunho sobre o amigo agora enviado ao PÚBLICO, Gastão observa que Armando Silva Carvalho foi “um autor de primeiro plano” e que “deixou, desde o começo, uma marca fortemente individualizada na poesia portuguesa”, uma “originalidade imediatamente visível no seu primeiro livro, Lírica Consumível”, que, lembra, venceu o Prémio de Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores (antecessora da APE) em 1962, ainda que o livro só viesse a ser publicado em 1965.

Associando-o aos que, no início dos anos 1960 tinham aberto “um espaço de inovação” na poesia portuguesa, “nomeadamente Herberto, Fiama ou Luiza Neto Jorge”, Gastão Cruz observa que, “logo nos seus três primeiros livros” – Lírica Consumível, O Comércio dos Nervos (1968) e Os Ovos d’Oiro (1969) –, o autor apresenta uma linguagem de frequente “matriz satírica”, o que “levou a uma comparação com Alexandre O’Neill, que, aliás, o admirava”. Mas “a sátira de Armando é mais ácida e explosiva”, avisa o poeta.

Uma acidez a que o próprio visado chama, na referida entrevista ao PÚBLICO, um “gozo em estragar o bonitinho”, e que pode, de resto, ajudar a explicar que não tenham sido assim tantos os que se atreveram a lidar criticamente com esta poesia agreste, sarcástica, fortemente política sem nunca cair no panfletário, e de uma violência erótica só talvez ultrapassada, na época, pela de Luiza Neto Jorge. Mas Armando Silva Carvalho também reclamou sempre uma dimensão lírica que os rótulos de poeta satírico e anti-lírico terão ajudado a obscurecer.

Nascido em 1938 num ambiente rural que marcaria para sempre a sua visão da cidade, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, mas pouco exerceu a advocacia, tendo sido professor do ensino secundário e técnico de publicidade. Impedido de trabalhar na função pública por razões políticas, dedicou-se à publicidade enquanto sonhava que um dia poderia seguir a carreira diplomática, confessou em 2007 ao PÚBLICO. “Via o Saint-John Perse, esses tipos, o Paul Claudel, e achava que era o que me convinha: sentava-me a uma secretária e tinha tempo para fazer versos”.

Revelado na revista académica Quadrante, ainda no final dos anos 50, e na Antologia de Poesia Universitária, publicou em 1965 o seu já referido livro de estreia. Quatro anos mais tarde, António Ramos Rosa já o incluía no quarto e último volume das prestigiadas Líricas Portuguesas.  

Depois do 25 de Abril, publica em 1976 uma escolha da sua poesia organizada por Gastão Cruz, a que se seguem, em 1977, Eu Era desta Areia e Armas Brancas, um livro absolutamente singular no modo como relata e pensa o chamado processo revolucionário em curso, num registo que funciona como uma espécie de diário poético do PREC, desde a revolução até ao final de 1975.

Nos anos seguintes publica Técnicas de Engate (1979) e Sentimento de um Acidental (1981), cujo título homenageia, na sua ironia, uma das suas grandes referências literárias, Cesário Verde, e em 1983 sai um dos seus livros mais justamente apreciados: Alexandre Bissexto. É também a sua última obra antes de um prolongado silêncio lírico, durante o qual o autor, que já tinha publicado nos anos setenta a prosa de O Alicate (1972), O Uso e o Abuso (1976) e Portuguex, se vira mais decisivamente para a ficção, escrevendo Donamorta (1984), A Vingança de Maria de Noronha e Em Nome da Mãe (1994), que Álvaro Manuel Machado descreve como “uma implacável sátira do Portugal ‘pífio’ da submissão à CEE” e uma “denúncia do capitalismo selvagem”.

Regressa à poesia em 1995 com Canis Dei, mas passarão mais cinco anos até publicar Lisboas (2000), livro que resultou de uma candidatura a uma bolsa literária, e que marca a sua fulgurante entrada no século XXI. Espécie de guia turístico às avessas, é por uma cidade embaciada e triste que este flâneur contemporâneo deambula. “Saí para comprar tabaco e alguma vida/ mas não havia troco no único café aberto ao mundo/ povoado de bêbados que louvam o Benfica”, escreve no extenso e cesariano poema Seco e Quente Desespero.

O Amante Japonês (2008), Anthero Areia e Água (2010) e De Amore (2012) são alguns dos livros de poemas mais recentes de Armando Silva Carvalho, que em 2006 publicou com Maria Velho da Costa O Livro do Meio. E em 2015 assombra-nos com A Sombra do Mar, onde dialoga com Vieira e Pessanha, com Pessoa, Eugénio, Herberto, e sobretudo com a sua velhice e a perspectiva da morte. Escreve no poema Contramão: “Às vezes o poema espreita dentro do corpo/ e desconfia,/ vê os anos trocados, a língua muito grossa e carregada,/ o coração vadio e corrompido, as digestões nervosas,/ os pulmões sem espuma, lento o respirar,/ apressado o cio.// Não sabe onde expor as palavras, não encontra suportes, cantarias, majestade nos músculos,/ robustez na textura óssea,/ fluidez no sangue, no pescoço e na alma (…)”.