Sgt. Pepper: é lendário, é um marco, é só um disco
Foi o álbum que marcou o início de uma era, um “momento decisivo na história da civilização ocidental”, escreveu-se então. Foi editado dia 1 de Junho de 1967. Exactamente 50 anos depois, talvez devamos tentar ouvi-lo como um disco. Apenas isso. Continua magnífico.
Certa noite de Maio de 1967, os Beatles foram a casa de Cass Elliot, no bairro londrino de Chelsea onde vivia a vocalista dos californianos The Mamas & The Papas. John, George, Paul e Ringo levavam consigo uma preciosidade, um acetato do seu novo disco. Entretanto, a noite já não era noite, era jovem manhã do dia seguinte. Abriram-se as janelas da casa, dispuseram-se colunas viradas para o exterior, pôs-se o volume da aparelhagem no máximo. Eram seis da manhã quando a vizinhança foi surpreendida com a não anunciada pré-escuta de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, edição oficial marcada para 1 de Junho seguinte.
Diz quem presenciou que nem uma reclamação se ouviu dos vizinhos. Reclamar com o quê, afinal? Com o privilégio de ouvir pela primeira vez, antes de toda a gente, o álbum que marca um antes de um depois na história da música popular urbana? Infinitamente ingrato seria quem o fizesse.
Poucas semanas depois, o escritor Langdon Winner conduzia o seu automóvel em viagem pelos Estados Unidos. Sgt. Pepper já fora editado, já estava nas lojas, já era ouvido nas rádios e criticado nos jornais. Em todas as rádios, em todos os jornais. Em todo o lado. “Em cada cidade em que parei para comer ou pôr gasolina – Laramie, Ogallala, Moline, South Bend –, as melodias flutuavam desde um rádio ou gira-discos portátil longínquo … Por um curto período de tempo, a irreparavelmente fragmentada consciência do Ocidente foi unificada, pelo menos na mente dos jovens”, escreveu Winner.
A reverência com que a nova música dos Beatles foi recebida a umas incómodas seis da manhã num bairro em Chelsea, e a sua omnipresença nas terriolas americanas pelas quais passou Langdon Winner, são apontamentos anedóticos, mas reveladores de um impacto bem real. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band não era simplesmente o oitavo álbum dos Beatles, não era só aquele que cristalizou até hoje, na capa e nas famosas fardas coloridas, uma das mais fortes marcas iconográficas da banda. Não era apenas o disco que, anunciava-se, daria ao rock respeitabilidade de alta cultura. No ano absurdamente fértil que nos ofereceu o primeiro álbum dos The Doors, dos Velvet Underground, de Jimi Hendrix ou dos Pink Floyd, Sgt. Pepper foi o farol que iluminou mais do que que qualquer outro.
“Um feito espantoso para o qual ninguém poderia estar completamente preparado”, escrevia Richard Poirier, peso-pesado da crítica literária, na Partisan Review. Uma “metamorfose miraculosa de dúzias de ideias musicais do Oriente e do Ocidente”, elogiava o Washington Post. Sgt. Pepper era, anunciava o crítico de teatro britânico Kenneth Tynan, sustenhamos a respiração, “um momento decisivo na história da civilização ocidental”. Até uma voz desavinda, a do então jovem crítico de rock do New York Times, Richard Goldstein, que escrevera que o álbum “tresandava a efeitos especiais” e lhe apunha o adjectivo “fraudulento”, ressalvou que, apesar de todos os defeitos, “é melhor que 80% da música que se ouve por aí”. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band era, era, era… Sgt. Pepper? “É só um álbum”. Di-lo Paul McCartney em 2017. Descemos à terra.
Em entrevista recente à Mojo, Macca fala: “É um álbum tão ‘importante’ que, por vezes, as pessoas ouvem a reputação em vez de ouvirem o disco”. Acontece que, em relação a Sgt. Pepper, o mito parece difícil de separar da música.
Agora em estéreo a sério
Exactas cinco décadas passadas, a data é assinalada com a pompa devida. Em Liverpool, terra natal dos Beatles, decorre desde o passado 26 de Maio o festival Sgt. Pepper At 50. Encerrará a 16 de Junho e inclui concertos, espectáculos de dança, instalações artísticas, gigantescos fogos-de-artifício ou a exibição de um novo documentário sobre o álbum, It Was Fifty Years Ago Today! Sgt. Pepper & Beyond, realizado por Alan G. Parker. Em Portugal, sobe esta sexta-feira a palco do GNRation, em Braga, Getting Better All The Time, concerto comemorativo criado em conjunto por músicos amadores e os alunos do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian da cidade – o espectáculo será levado, em Outubro, à Casa da Música, no Porto. A celebração no GNRation começa já esta quinta-feira, com um espectáculo infantil, Beatle-Battle, e encerra sábado com uma sessão de escuta que será também tertúlia e em que participa, por exemplo, Adolfo Luxúria Canibal, dos Mão Morta.
Como é inevitável, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band recebe tratamento deluxe e ressurge em nova edição, com mistura estéreo da autoria de Giles Martin, filho do eterno produtor dos Beatles, George Martin, falecido em 2016 aos 90 anos. Como é habitual nestas ocasiões, será distribuído em vários formatos: um disco único com a nova mistura (vinil e CD); um álbum duplo em que, ao original, se acrescenta um disco de extras; uma edição de luxo composta de seis discos (o original, três de extras, um DVD com The Making of Sgt. Pepper e um Blu-Ray em Surround 5.1).
A nova mistura estéreo surge para repor uma incorrecção histórica. Na altura em que Sgt. Pepper foi editado, ditava lei o mono. O estéreo era uma relativa novidade, um item de luxo. Em 1967, foram dedicados três meses a encontrar a mistura perfeita do álbum – em mono. Tarefa concluída, a banda desapareceu de cena e entregou a versão estéreo a George Martin. Ficou tudo despachado em três dias. Acontece que é precisamente a apressada versão estéreo que tem circulado nas últimas décadas.
“Tecnicamente, o objectivo era capturar o espírito da música, o que é a coisa menos técnica que podemos dizer”, ri-se desde Londres Giles Martin, em curta entrevista telefónica com o Ípsilon. “Temos que ser muito cuidadosos, porque ao tentar dar à música um som mais hi-fi, podemos torná-la mais fria e perder o espírito das canções”, alerta. Recorrendo ao mesmo material usado originalmente pelos Beatles e usando como referência as misturas mono originais, Giles Martin concentrou-se em eliminar as escolhas peculiares da primeira versão estéreo, em que, por exemplo, se ouvia a bateria de Ringo deslocada para um dos canais. Não ouvimos Sgt. Pepper como nunca ouvimos, mas recebemo-la com uma renovada claridade, com o jogo de guitarras do tema título a fazer-se ouvir com vivacidade, com os timbalões de Ringo a ressoarem com outra profundidade, com a onírica massa sonora de Being for the benefit of Mr. Kyte a envolver-nos ainda mais.
Quanto aos extras, foram escolhidos, explica Giles Martin, para destacar o muito humano trabalho de artesão envolvido. “As pessoas pensam que o Sgt. Pepper foi entregue por um unicórnio que desceu de uma nuvem até Abbey Road, mas tudo se resume, na verdade, a pessoas a tocarem em instrumentos e em botões no estúdio. É muito simples e, na minha opinião, ainda melhor. A beleza e simplicidade do espírito humano são mais mágicas que tudo o resto.”
Parte considerável são curiosidades que pouco acrescentam ou iluminam em relação à obra acabada. Há, contudo, excepções. A mais primorosa será Strawberry fields forever, canção que, juntamente com Penny Lane, foi editada como duplo single em Fevereiro de 1967. Nas primeiras versões, a voz doce de Lennon recorda aquele lugar da sua infância, apoiado por coros angelicais, uma guitarra acústica que se destaca, uma guitarra slide que faz cair sobre o refrão um travo de melancolia. Quase um Requiem pela infância perdida. Take após take (existem quatro na versão Super Deluxe), a canção transforma-se. Assiste-se à chegada do órgão Mellotron que fará a introdução, a bateria ganha corpo e densidade – num dos takes até acelera em tumulto inesperado – e Lennon perde em doçura o que ganha em autoridade.
Quando chegamos à versão final, tudo se transformou. Strawberry fields já não é um apelo à nostalgia. É a voz de alguém que nos puxa para um novo mundo, agitado, intrigante, atraente pela estranha beleza das formas que desenha. “Os Beatles transformaram as reflexões de Lennon num ‘sonho psicadélico, de forma a que Strawberry fields fosse o lugar mágico de infância de toda a gente, em vez de apenas o nosso'”, escrevia há alguns anos o jornalista Phil Sutcliffe, citando Paul McCartney.
Em 2006, quando da edição de Love, George Martin recordou ao Ípsilon, nos estúdios de Abbey Road, o momento em que John Lennon lhe mostrou Strawberry Fields Forever pela primeira vez. “Cantou-a na sua guitarra acústica e foi um dos momentos mais emotivos que já vivi. É tão maravilhosa. Ainda hoje me comovo com ela. ‘John, é uma canção fantástica’, disse-lhe. ‘O que vais fazer com ela?’. Ele fez-me logo descer à terra. ‘Bem, esse é o teu trabalho, não é?’”. Nem um unicórnio à vista.
Um novo disco, com novos sons
Com Revolver, editado em Agosto de 1966, como acontecera antes com Rubber Soul, a música dos Beatles ganhara novas dimensões: a experiência proto-electrónica de Tomorrow never knows, a soul moderna de Got to get you into my life, o Oriente entreaberto por Harrison em Love you to, a desolação existencial de Eleanor Rigby, registada em voz e duplo quarteto de cordas, o rock psicadélico aplicado a questões muito mundanas de Taxman. No estúdio evoluíam e galgavam patamares criativos a uma velocidade estonteante. No exterior, a Beatlemania continuava a rugir. Mas mais perigosa.
Entre Junho e Julho, partem em digressão para a Alemanha, Japão e Filipinas. No Japão, recebem ameaças de morte por parte de tradicionalistas que consideram uma afronta um concerto rock no sagrado Budokan e são obrigados a deslocarem-se em carros blindados. Nas Filipinas, recusam participar num jantar de gala servido pela Primeira Dama, Imelda Marcos. Resultado: depois do concerto, sob ameaça de prisão, protagonizam uma fuga digna de filme de acção, perseguidos até ao aeroporto pela polícia e pela população enfurecida. No regresso a Inglaterra, George Harrison comentaria à imprensa: “Vamos tirar um par de semanas para descansar, antes de ir levar tareia dos americanos”. Não era só humor.
Aterraram nos Estados Unidos na sequência das famosas declarações de John Lennon ao London Evening Standard, – “Neste momento somos mais populares que Jesus Cristo, e não sei o que desaparecerá primeiro, o rock'n'roll ou o Cristianismo”. No país, promoviam-se autos-de-fé com os discos da banda e boicotes à sua música. A digressão congregaria menos público que as visitas anteriores e ficou marcada pela consciência de que era impossível, naquelas condições, os Beatles serem em palco a banda que haviam sido. Já em Inglaterra, George Harrison ameaça abandonar os Beatles. Recua na condição de as digressões terminarem definitivamente. O resto da banda acompanha-o nesse desejo. Sgt. Pepper começa a nascer.
Quando se reúnem novamente, três meses depois, McCartney tinha uma ideia. Inventara uma personagem, Sgt. Pepper, líder de uma banda do início do século XX. Paul, John, George e Ringo seriam a sua banda, forma de se libertarem do peso que carregavam enquanto Beatles e, no processo, de descobrirem novos rumos para a sua música. Era esse o projecto a cumprir quando, em Novembro de 1966, entraram em Abbey Road para as primeiras sessões de Sgt. Pepper. Na cabeça McCartney levava, além do Sargento, o visionário trabalho de Brian Wilson e dos Beach Boys em Pet Sounds.
Em Abril de 1967, finalizadas as 700 horas de produção do álbum (quatro anos antes, Please, Please Me, o primeiro, demorara treze horas a gravar), pouco restava do conceito original. Havia Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, a canção de abertura, cujo final introduzia a única personagem, Billy Shears (e Ringo aparecia a cantar With a little help from my friends), bem como a respectiva Reprise. Havia a capa, criada por Peter Brown, em que os Beatles, enquanto Sgt. Pepper's Lonely Hearts Clube Band, surgiam à frente de uma galeria de personagens: Fred Astaire, Bob Dylan, Edgar Allan Poe, Lewis Carrol, Oscar Wilde, Marlon Brando, Marylin Monroe, Carl Jung, Stockhausen ou gurus indicados por George Harrison. Uma outra coisa nascera.
A morte do rock'n'roll
“Foi com Sgt. Pepper que o meu pai teve tempo ilimitado com eles no estúdio”, conta Giles Martin. “Sentia que, pela primeira vez, estavam a trabalhar juntos da forma adequada”. Libertos dos constrangimentos impostos pela vida pública da Beatlemania, viraram-se para dentro. Exploraram memórias de infância em Penny Lane e Strawberry fields forever, puseram em canção a nova consciência trazida pelo psicadelismo e pelas experiências com LSD - Fixing a hole, Lucy in the sky with diamonds. Viraram-se para a Inglaterra de ontem e transformaram um velho cartaz de circo do século XIX no carnaval surrealista da admirável Being for the benefit of Mr. Kyte. Viraram-se para a Inglaterra do seu tempo e nasceu a excitação rock'n'roll fundada em tédio urbano de Good morning (“I've got nothing to say, but it's ok”, canta Lennon). Nasceu esse portento, ainda hoje inacreditável pelo génio da produção e composição, que é A day in the life (versos inspirados na leitura do Daily Mail).
Nem todos os Beatles, assinale-se, viveram as gravações com o mesmo entusiasmo. “A experiência mais marcante das gravações foi ter aprendido a jogar xadrez”, recordou Ringo. George, incomodado com a posição subalterna na banda, reduziu a sua contribuição, em grande parte, à influência indiana.
Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band foi elogiado e reverenciado pelas engenhosas técnicas de estúdio e pela forma como conjugava diferentes expressões musicais – rock'n'roll, pop music-hall, psicadelismo, música concreta, música indiana, pop. Impôs o álbum como unidade, não como conjunto de canções sem ligação óbvia entre si, e deu respeitabilidade às palavras cantadas – as letras surgiram imprimidas pela primeira vez.
Enquanto marco musical e cultural, manteve-se incontestado durante longos anos, surgindo uma vez após outra no topo das listas de melhores discos de sempre. Com o tempo, porém, começaram a surgir as fissuras no seu estatuto. Tão cedo quanto 1981, o crítico musical Lester Bangs escrevia que exalava dele uma seriedade emproada que permitia equivaler a data da sua edição à da morte do rock'n'roll. “Datado”, começou a ver-se escrito, enquanto Revolver e Abbey Road, já neste século, lhe ganhavam vantagem como álbuns superiores.
Ainda assim, em 2017, o seu simbolismo mantém-se incontestável. Mas, seguindo o que disse McCartney, tentemos ouvi-lo simplesmente. Teremos perante nós o álbum de uma banda que conjugou de forma admirável o pulsar do presente com uma profunda nostalgia. Uma banda que afirmava uma britishness excêntrica, ora vibrante, ora melancólica, equiparável à do Kinks Ray Davies. Numa época em que se usava como slogan contracultural “não confiem em ninguém com mais de 30 anos”, os Beatles gravavam She's leaving home, desarmante por tão dura quanto comovente, com tanta empatia pela filha que foge quanto pelos pais destroçados que ficam para trás.
Ouvimo-lo simplesmente 50 anos depois. Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, esse “momento decisivo na história da cultura ocidental”, pode ser simplesmente um disco. Não nos parece que tenha perdido com isso. É magnífico.