Porquê e para quê voltar à escravatura 150 anos depois?
Mostrei, em artigo anterior, três razões para Portugal recusar o caminho das desculpas. O pedido de indemnizações é a quarta razão para não ir por aí.
Eu olho o tráfico e a escravidão dos africanos de um ponto de vista histórico. É normal que assim seja: sou historiador e há 30 anos que estudo esses assuntos. Mas mesmo que não fosse historiador e que a escravatura não fosse a minha área de especialização, eu continuaria a olhar estas questões de um ponto de vista histórico. Posso dar-me a esse luxo porque os navios negreiros, os chicotes, a separação forçada de pais e filhos e todas as injustiças e atrocidades relativas à escravatura negra já cá não estão. O que cá está — e me arrepia — são os pobres desgraçados que cruzam o Mediterrâneo em barquinhos que frequentemente se afundam, as mulheres e crianças que são forçadas a prostituir-se, as formas de escravidão por dívida que ainda florescem na Ásia. Mas a antiga escravatura dos africanos já cá não está graças aos esforços e às vidas das pessoas, brancas e negras, que contra ela lutaram desde finais do século XVIII até lhe pôr fim. Parece inútil, portanto, estar a trazer para a praça pública algo que já foi profusamente debatido — repito: profusamente debatido — e que já não existe. Todavia, há quem queira um debate. Porquê e para quê?
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Eu olho o tráfico e a escravidão dos africanos de um ponto de vista histórico. É normal que assim seja: sou historiador e há 30 anos que estudo esses assuntos. Mas mesmo que não fosse historiador e que a escravatura não fosse a minha área de especialização, eu continuaria a olhar estas questões de um ponto de vista histórico. Posso dar-me a esse luxo porque os navios negreiros, os chicotes, a separação forçada de pais e filhos e todas as injustiças e atrocidades relativas à escravatura negra já cá não estão. O que cá está — e me arrepia — são os pobres desgraçados que cruzam o Mediterrâneo em barquinhos que frequentemente se afundam, as mulheres e crianças que são forçadas a prostituir-se, as formas de escravidão por dívida que ainda florescem na Ásia. Mas a antiga escravatura dos africanos já cá não está graças aos esforços e às vidas das pessoas, brancas e negras, que contra ela lutaram desde finais do século XVIII até lhe pôr fim. Parece inútil, portanto, estar a trazer para a praça pública algo que já foi profusamente debatido — repito: profusamente debatido — e que já não existe. Todavia, há quem queira um debate. Porquê e para quê?
Por três razões. Desde logo porque algumas pessoas aproveitam esse ensejo para falarem de colonialismo, racismo, descolonização e por aí fora. Ainda há pouco vimos como as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o marquês de Pombal e o tráfico transatlântico de escravos deram aso a que se deslizasse no assunto para tratar de tudo menos da dita escravatura. Já escrevi sobre essas confusões. Passemos, pois, às outras duas razões que estão interligadas e são mais importantes.
A primeira delas é que há muita gente que olha para a questão não de um ponto de vista histórico mas sim emocional e moral, e sente a compulsão de se envolver em debate apenas com base em sentimentos e juízos de valor. É compreensível e humano que assim seja quando se abordam dramas com esta dimensão e este grau de horror, apesar de terem ocorrido há 150 anos ou mais, mas às vezes faz falta algum distanciamento. Para as pessoas a que me refiro, a simples alusão à escravatura transmite, mesmo que vagamente, uma incomodidade por ter havido antepassados seus envolvidos em tal abominação.
Ora — e eis a terceira razão e a mais importante de todas —, essa mistura de sentimentos de condenação moral, de lamento e de vergonha nacional é um campo fértil para o desenvolvimento de campanhas emotivas e é aí que alguns activistas (jornalistas de causas, ingénuos bem-intencionados, académicos engagés, etc.) têm vindo a plantar uma série de reivindicações políticas. Esses activistas estão firmemente convencidos de que os países ocidentais foram os únicos ou os principais responsáveis pelo tráfico e escravidão dos africanos. Estão igualmente convencidos de que as dificuldades económicas que certas comunidades negras e certas regiões do mundo actualmente enfrentam são causadas por essa antiga escravatura. Daí as suas reivindicações, de que destaco três: que os estados ocidentais que, no passado, estiveram envolvidos no tráfico negreiro e na correspondente escravidão colonial reconheçam que cometeram um crime e peçam desculpa por isso; que respeitem a versão (ou “memória”) que os que se dizem “descendentes de escravos” têm dos acontecimentos passados; e que paguem indemnizações.
A estratégia para fazer vingar estas e outras reivindicações tem várias etapas. A primeira é a de criar pressão política, começando por afirmar que o tema da escravatura tem sido silenciado ou esquecido (o que é falso), e que é necessário e urgente um grande debate público para trazer à tona o que foi (supostamente) escondido. Este modo de proceder já se manifestou em alguns dos países que tiveram uma relação histórica com a escravatura negra. Chegou agora a Portugal, na sequência das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, no Senegal. Todos vimos as imediatas censuras por Marcelo não ter aproveitado aquele local e aquela ocasião para pedir desculpa. Todos assistimos à súbita exigência de debates públicos e de um “trabalho de memória” sobre a escravatura, nomeadamente através da revisão dos programas escolares.
Para já, em Portugal, os activistas ficaram-se por aqui, mas há mais etapas para além destas. Eu gostaria de fazer notar que isto não apareceu por acaso nem é uma originalidade portuguesa: insere-se num movimento muito mais amplo. As reivindicações a que assistimos após as declarações de Marcelo não nasceram de repente, já adultas e preparadas como Minerva nasceu da cabeça de Júpiter. Só surgiram porque já estavam ideologicamente engatilhadas e à espera de um pretexto para disparar. Obedecem, mesmo que seja por simples imitação, a uma agenda reivindicativa internacional que vem dos anos 90 e foi afinada em 2001, na Conferência de Durban. Apesar de não ter vingado em Durban, por oposição de vários países (entre os quais, curiosamente, o Senegal), a agenda mantém-se viva e prossegue o seu caminho.
Para entender em profundidade o quadro de pensamento e os objectivos destes reivindicantes, nada melhor do que ler Britain’s Black Debt, de Hilary Beckles, o mais activo e credenciado de entre eles. Trata-se de um livro publicado em 2013 no qual Beckles (que já se evidenciara em Durban) expõe toda a agenda reivindicativa, exige uma indemnização ao Reino Unido — processo esse que já está em curso — e avisa que, adiante, chegará a vez de a exigir a todos os outros países que estiveram envolvidos no tráfico de escravos e na escravidão colonial, Portugal incluído. Não é dito por Beckles, mas eu acrescento, que esses países já pagaram enormes somas e sacrificaram muitas vidas para porem fim à escravatura.
O caminho dos activistas é, portanto, este. Começa com exigências de um debate público e de um pedido oficial de desculpa pela escravatura, exigências essas que já aí temos. Mostrei, em artigo anterior, três razões para Portugal recusar o caminho das desculpas. O previsível pedido de indemnizações é a quarta razão para não ir por aí.