Azul de tornassol
Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa
Que maravilha, terem criado, após tanta espera inglória, uma aplicação para telefone portátil (sem fios) que conseguiu levar as multidões portuguesas a sair de casa e a enfrentar montes e vales, parques e rios, ruas e praças, eiras e nabais, não deixando por escrutinar os lugares menos frequentados, tais como os que se tornam visíveis quando se desencaixam os calhaus das suas camas terrestres, quando se encolhem as barrigas progressistas para melhor penetrar os recônditos interpenedios das larguezas rurais, as estreitezas de becos citadinos e quelhos aldeões, quando se levantam os ancestrais bonés de fazenda ou os modernos bonés de sarja, repescados dos vendedores de gelados da praia mas inteligentemente virados para trás, à americana, com a pala a fazer sombra ao pescoço, seguindo a tradição dos limpa-chaminés (os mais curiosos podem confirmar a veracidade desta afirmação tendo atenção ao boné usado pelo pai de Eliza Doolittle em “My Fair Lady”, o filme de 1964 realizado por George Cukor. Os menos curiosos tirarão igualmente bastante benefício de verem o filme, mesmo que mantenham um certo cepticismo em relação ao cinema que se fazia nos anos 60, aliás completamente compreensível).
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Que maravilha, terem criado, após tanta espera inglória, uma aplicação para telefone portátil (sem fios) que conseguiu levar as multidões portuguesas a sair de casa e a enfrentar montes e vales, parques e rios, ruas e praças, eiras e nabais, não deixando por escrutinar os lugares menos frequentados, tais como os que se tornam visíveis quando se desencaixam os calhaus das suas camas terrestres, quando se encolhem as barrigas progressistas para melhor penetrar os recônditos interpenedios das larguezas rurais, as estreitezas de becos citadinos e quelhos aldeões, quando se levantam os ancestrais bonés de fazenda ou os modernos bonés de sarja, repescados dos vendedores de gelados da praia mas inteligentemente virados para trás, à americana, com a pala a fazer sombra ao pescoço, seguindo a tradição dos limpa-chaminés (os mais curiosos podem confirmar a veracidade desta afirmação tendo atenção ao boné usado pelo pai de Eliza Doolittle em “My Fair Lady”, o filme de 1964 realizado por George Cukor. Os menos curiosos tirarão igualmente bastante benefício de verem o filme, mesmo que mantenham um certo cepticismo em relação ao cinema que se fazia nos anos 60, aliás completamente compreensível).
Aí está o jogo que pôs toda a gente a procurar palavras e expressões em forma de bichinhos risonhos escondidos nos locais mais improváveis. Então é ou não possível pôr os portugueses à procura das suas próprias palavras? Claro que sim, desde que lhes dêem a oportunidade de fazer parte de um rebanho internacional. Basta, para isso, que o jogo seja genuinamente japonês ou, idealmente, norte-americano. Apesar de adaptado à nossa realidade nacional em encolhimento, o sucesso é multidimensional (é a famosa “situação ganha-ganha” dos “tradutores” formados no YouTube): as pessoas reaprendem palavras e expressões raras tais como “alcoolemia”, “rubrica”, “panfleto”, “folheto”, “vigília”, “aeróbio”, “pormenor”, “auto-retrato”, “artes interpretativas”, “central de atendimento”, “painel publicitário”, “50 por cento para cada lado”, “24 horas por dia”, “experimentar um carro”, “tomar um medicamento”, “aplicar gelo”, “ter uma alergia”, “seja como for”, “garantia de um empréstimo bancário”, “efeitos secundários”, “estar no lugar de outra pessoa”, “o chamado caso irritante das pessoas que não sabem que o verbo chamar não é regido pela preposição de” e, ao mesmo tempo, fazem exercícios de oxigenação e de desenvolvimento de massa muscular entre as quais as caminhadas e os piqueniques se contam entre os mais populares.
E não se ignore o efeito desta prática, desta onda, desta “tendência” nos fluxos turísticos, na hotelaria, na restauração, no artesanato, no comércio de combustíveis, no seu contributo para a saída de Portugal do Procedimento por Défice Excessivo da União Europeia, ao levar os automobilistas a fazerem saídas repentinas das auto-estradas e a aventurarem-se na natureza selvagem das estradas variantes, municipais e florestais, não falando das excursões organizadas que não se enquadrem no subgrupo de viagens de finalistas universitários para beber até cair e partir uma ou outra cama de hotel na observação de hábitos nocturnos de marsupiais. E com um pequeno mas genial acréscimo da personagem “Foguinho” a este jogo já prodigioso, os jogadores ajudaram até a curvar o gráfico dos incêndios para baixo de modo tão acentuado que levou o ministro alemão da Agricultura a considerar recentemente o seu homólogo português como o “Cristiano Ronaldo da silvicultura europeia”.
É claro que nada disto seria possível sem o rumo preclaro do Ministério da Educação deste Governo sustentado na precária tripeça partidária, que, honra lhe seja, pela primeira vez em mais de 500 anos, suscitou corridas ao ouro da filologia, da ortografia, da prosódia por parte de dezenas de milhares de alunos das nossas universidades, num irreprimível entusiasmo febril pela possibilidade de passarem os seus dias em laboratórios de línguas anasalados (no sentido de semelhantes à NASA), a observar as palavras à lupa, ao microscópio, tocando-lhes, com a reserva própria das grandes cerimónias, com tiras de papel embebido em azul de tornassol, na expectativa de o verem passar ao cor-de-rosa atestador de um vocábulo imune à infecção anglo-saxónica.
Foi desta bem arquitectada estratégia académica que nasceu, na condição de “spin-off”, a “start-up” que viria a desenvolver a “app” para “smartphone” que se tornou verdadeiramente viral e que tornou estupidimilionário mais um programador informático a quem dois amigos tinham pedido para escrever as linhas de código de um jogo para pôr as pessoas a reaprender as palavras e expressões idiomáticas da sua própria língua a que tinham chamado “Lexicon Go”. O doutoramento “honoris causa” desse dinâmico programador de espírito empreendedor, pela Universidade de Harvard ou quejandos, deve estar por dias, podendo perfeitamente aproveitar-se, para esse efeito, um intervalo que aquela Joana d’Arc de calças faça entre palestras sobre a salvação do mundo e arredores.
Consideremo-nos todos salvos. Que o digam o meu feitor Ernesto e o meu mordomo Galhardo, que estão a ponderar uma troca das respectivas carreiras pela de “gamer”, ou de “youtuber”, com a expectativa de receberem um pouco mais do que aquilo que muito justamente lhes pago e de serem contratados pelas lojas dos centros comerciais para darem autógrafos a crianças e jovens e a deixarem-se captar em fotografias com eles e com algumas mães não completamente destituídas de atributos geradores de entusiasmo. Mas eu é que vou ficar descalço. Efeitos secundários da revolução digital...
Correio Premente
De Maria do Amparo Crineia, lugar de Pia Furada, freguesia de Alqueidão da Serra, concelho de Porto de Mós: “Espero que esta o encontre bem. Sempre ouvi chamar mineiros aos que tiram carvão das minas, chamar mineiros aos que tiram prata, aos que tiram ouro, aos que tiram diamantes, mas nunca aos que tiram dentes. Também aqui em casa temos uma mina de água e só a mim e à minha irmã é que o meu pai mandou ir tirar água toda a vida, mas nunca nos chamou mineiras, nem uma única vez. Ora, eu acho que aqui há gato. O meu cunhado Francelino acha que não e até apostámos um porco, assim não muito grande porque senão não posso com ele quando o levar para minha casa. Ó senhor, quem tem razão?”
Não gosto que os meus leitores me ponham numa posição de ter de dirimir opiniões divergentes. Também não gosto de queijo. Nunca ouvi falar em mineiros de água, nem mesmo em livros. Em caso de dúvida, remeto-a para o Dr. Pacheco Pereira, que tem mais livros do que eu (e há quem diga que tem até mais do que a Smithsonian Institution de Washington, DC, pelo menos escritos em português). Quanto à extracção de dentes, confirmo que os profissionais não são conhecidos por mineiros, apesar de a sua actividade já ter sido uma mina (do nosso ouro). Agora é mais a ortodontia, que é a arte de procrastinar o final do tratamento, sob pena de voltar tudo à primeira forma (excepto as nossas contas bancárias). Mas mesmo esses chamam-se ortodontistas. E são uns artistas (da sua arte).