Peter Grimes, contra o vento e o mar

Estreia-se esta terça-feira Peter Grimes no Teatro de São Carlos, em Lisboa. Uma produção marcante da ópera de Benjamin Britten, na encenação controversa de David Alden. Com o coro do São Carlos a dar a temperatura.

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Peter Grimes não é uma ópera qualquer. Para o director musical desta produção, Graeme Jenkins, ela é “uma das grandes obras do século XX”. Uma ópera que permanece um grande desafio artístico e que foi para muitos difícil de engolir, até se tornar a ópera inglesa mais produzida no século XX. Jenkins explica-nos porquê, a suar em bica, de toalha na mão como um tenista à espera do terceiro set, no intervalo de um ensaio: “Quando se estreou Peter Grimes em 1945, houve muita gente que ficou furiosa. No fim da guerra apresentar Peter Grimes, ópera de um pacifista, homossexual, sobre um pescador...” Muitos esperavam qualquer coisa de heróico, em que pudessem agitar bandeirinhas de Inglaterra. Mas saiu-lhes uma ópera inquieta, uma ópera de ideias, profundamente crítica da hipocrisia social e com uma intensidade musical fora do comum.

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Peter Grimes não é uma ópera qualquer. Para o director musical desta produção, Graeme Jenkins, ela é “uma das grandes obras do século XX”. Uma ópera que permanece um grande desafio artístico e que foi para muitos difícil de engolir, até se tornar a ópera inglesa mais produzida no século XX. Jenkins explica-nos porquê, a suar em bica, de toalha na mão como um tenista à espera do terceiro set, no intervalo de um ensaio: “Quando se estreou Peter Grimes em 1945, houve muita gente que ficou furiosa. No fim da guerra apresentar Peter Grimes, ópera de um pacifista, homossexual, sobre um pescador...” Muitos esperavam qualquer coisa de heróico, em que pudessem agitar bandeirinhas de Inglaterra. Mas saiu-lhes uma ópera inquieta, uma ópera de ideias, profundamente crítica da hipocrisia social e com uma intensidade musical fora do comum.

O espectáculo que esta terça-feira se estreia no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, é uma reposição da controversa encenação do norte-americano David Alden, estreada em 2009. A produção é uma parceria da English National Opera com a Vlaamse Opera, a Ópera de Oviedo e a Deutsche Oper Berlin. O responsável por esta reposição foi Ian Rutherford. Estamos com ele na plateia do São Carlos. Rutherford começa por nos explicar como esta ópera é profundamente marcada pelo percurso de Benjamin Britten e do seu companheiro Peter Pears, que “sofreu coisas parecidas com as de Peter Grimes”.

Britten e Pears foram ambos objectores de consciência na Segunda Grande Guerra. Foram alvo de violência, boatos, exclusão. Viajaram para os Estados Unidos da América em 1939 e tiveram de pensar como podiam voltar a viver em Inglaterra. Mas Peter Grimes é muito mais do que uma reflexão autobiográfica: “É um manifesto em relação à sociedade, com figuras muito fortes de mentes violentadas. São almas atormentadas, todos eles, e as pessoas deixam que aconteçam coisas terríveis. Grimes, num certo sentido, é a única pessoa saudável numa sociedade extrema, quase enlouquecida”, diz-nos Ian Rutherford junto à sua estante de trabalho montada na plateia. “O mar que ele tem de vencer é o seu julgamento constante”, diz. Ressoam as palavras do próprio Benjamin Britten, que declarou nos anos 60 numa entrevista à BBC: “Ao escrever Peter Grimes, queria expressar a minha consciência da luta perpétua de homens e de mulheres cuja vida depende do mar – mesmo que fosse difícil tratar um assunto tão universal sob a forma teatral.”

Benjamin Britten ficou entusiasmado com o poema The Borough, escrito em 1810 pelo poeta inglês George Crabbe. “De repente descobri onde pertencia e o que me fazia falta”, disse  Britten numa declaração pública ao receber o prémio Aspen, em 1964. E começou a inventar com Peter Pears uma ideia depois concretizada em libreto com a ajuda de Montagu Slater, poeta, com actividade no teatro e no cinema, um escritor comunista que havia sido fundador da Left Review nos anos 30. O compositor vislumbrou naquele poema uma terra sua (ou que poderia fazer sua), e naquela povoação um lugar de gente com vidas duras mas admiráveis. Britten e Slater fizeram de Peter Grimes uma história, em música, de um indivíduo em luta com uma sociedade intolerante e perversa, ela mesma criminosa.

A estrela é o coro

Peter Grimes é uma ópera de grandes contrastes, afrontando a violência da sociedade sobre o indivíduo, um dos grandes temas de Benjamin Britten. Não há apenas as vidas duras de trabalho no mar. “Há também demónios na cabeça, em todas as personagens”, diz Rutherford. O director musical, Graham Jenkins, também vê nesta ópera uma reflexão sobre o lado negro dos seres humanos: “Aqui as pessoas mostram os seus lados obscuros.” Ao mesmo tempo, há uma denúncia feroz da sociedade. “Nesta produção trabalhou-se também o que pode ser aquela hipocrisia, como exprimi-la”, adianta Ian Rutherford. Graeme Jenkins vai mais longe: “A hipocrisia está em todos nós. Depois de beber uns gins, que atitude temos? Esta ópera é muito desafiante, e não se pode andar à deriva, tem de se estar dentro do drama, totalmente empenhado.” E repete-nos o repto que lançou ao coro nos ensaios: “O coro é a temperatura do drama, deve ficar cada vez mais zangado, mais amargo. Há momentos muito difíceis. É um verdadeiro desafio.”

Ian Rutherford defende aquilo que considera uma equipa excepcional, da cenografia aos cantores, dos figurinos ao desenho de luz: “Estas pessoas no seu conjunto formam uma das melhores equipas operáticas com que já trabalhei, e logo para a melhor ópera de Britten, com as suas visões e ideias, uma grande obra de arte em movimento.” E, tal como o director musical, sublinha que a estrela da companhia é o coro: “Esta é também uma grande ópera de coro. O coro é a estrela. Lisboa devia ter orgulho deste coro.”

Outra vida é possível

No elenco encontram-se também alguns excelentes cantores: Peter Grimes é o tenor John Graham-Hall. Falamos com ele no seu camarim, onde acaba de fazer a maquilhagem e parece já vestir a pele e a alma de Peter Grimes: “Aquela aldeia é um lugar duro, de trabalho duro, onde toda a gente luta para sobreviver. Grimes é um homem rude que teve, também ele, uma infância violenta. É um homem que não se consegue controlar bem.” Já caracterizado com a rudeza necessária ao papel, Graham-Hall não esquece, contudo, o outro lado de Grimes: “Mas ele é ao mesmo tempo um homem espiritual, poético, tem uma visão do que a vida deveria ser. Só que precisa de dinheiro para viver e para se legitimar, para responder às críticas de que é alvo.” Grimes não é apenas perseguido e obstinado, ele tem um sonho de outra vida possível, se vencer o combate com a sociedade e com o mar. E esse sonho é partilhado por Ellen, a única pessoa que parece acreditar nele. A soprano Emily Newton tenta clarificar a posição ambígua da “sua” Ellen, e ajuda-nos a compreender “o que ela gostou no Peter e o que ele pode dar-lhe a ela. Também Ellen é uma sonhadora e consegue ver o interior poético dele. Há uma comunidade que se fecha, mas ela não faz bem parte dela.” Ellen Orford é central nesta ópera, porque está à margem, como Peter Grimes. E por isso pode entendê-lo e partilhar o seu sonho. Também Emily Newton faz o papel com que sonhou desde os seus estudos universitários. “Aqui não é como em Rossini, que se canta e pára”, diz Emily Newton. “Aqui a composição é contínua, e sentimos o melhor do que pode ser o teatro musical.”

Ian Rutherford vê nesta ópera “influências do musical americano, mas também de Alban Berg e do seu Wozzeck, por exemplo”. Wozzeck era, aliás, uma ópera muito admirada por Benjamin Britten. Rutherford não poupa elogios ao encenador: “David Alden é um dos encenadores mais musicais que eu conheço. Um encenador único, notável, com enorme sensibilidade e inteligência. Esta produção tem a capacidade de sublinhar a música, uma partitura extraordinária na variedade e na intensidade. Creio que esta produção traz ainda mais a essa música. Veja-se a personagem de Ellen, como canta e o que canta. Mais uma alma atormentada.”

Uma ópera arrebatadora

O papel do homem que dá nome à ópera foi um papel composto à medida do tenor Peter Pears: “Grimes é um dos grandes papéis de tenor de Britten. Toda a sua vida é uma luta constante, um combate. Britten escreveu uma música lírica excepcional a partir desta luta para ultrapassar a pequenez de espírito e o fechamento”, diz-nos, com fervilhante entusiasmo o tenor John Graham-Hall. “Grimes é uma figura poética. Aqui, a música e o drama são uma e a mesma coisa – o drama está na música. Nesse sentido, não é um papel difícil, ele faz o trabalho por ti.” E acrescenta ainda: “Ninguém na língua inglesa compôs como Britten.” A verdade é que as dificuldades musicais, quando ultrapassadas, revelam uma ópera de grande potência dramática. O tenor considera que esta “é uma produção muito forte, muito corajosa, in your face”. “Espero que as pessoas venham conhecer Peter Grimes, esta coisa monumental, e encontrem uma obra arrebatadora.”

No ensaio pudemos confirmar este lado comovente, mas também rude, belo e imperfeito, da ópera de Britten. Uma música que ecoa ainda hoje, apesar de escrita há mais de 72 anos. E a música diz tudo. “É uma ópera que exerce sobre mim um fascínio interminável”, diz-nos o director musical. “Uma ópera de génio, quando ouvimos o que Britten faz com uma grande orquestra, que às vezes fica quase música de câmara.” Música, palavra, drama! “É o espantoso poder da linguagem no palco”, diz. “É verdadeiramente dramático – não é vir cantar uma ária de coloratura e sair.” E acrescenta ainda, em jeito quase publicitário: “Se não veio à ópera, esta é uma para vir.” Esta terça-feira à noite, a partir das 20h (e nos dias 1, 3, 5 e 7 de Junho) ouvir-se-á ali pelo Teatro de São Carlos o grito inquietante desta ópera contra o vento e o mar: “Peter Grimes! Peter Grimes!”