Um príncipe no Grão-Ducado
Os portugueses no Luxemburgo rejeitam a ideia de que sejam uma só comunidade. Dos 100 mil que ali residem, cerca de metade chegou nos últimos 15 anos, muitos desde 2012. Os mais jovens e mais qualificados nem se vêem a si mesmos como emigrantes.
Se as comunidades portuguesas no Luxemburgo são várias e diversificadas e se vão sobrepondo em camadas, como um bolo, a viagem do Presidente da República ao país com maior percentagem de portugueses por habitante – um em cada seis, pelo menos – foi o chantilly que uniu todas elas. E a presença constante e sorridente do Grão-Duque em todos os momentos foi a cereja no topo.
Marcelo Rebelo de Sousa chegou com o sol a um país do Norte da Europa, frio e quase sempre sombrio, que há mais de 50 anos é pólo de atracção de portugueses em busca de melhores oportunidades. São já mais de 101 mil com passaporte português, onde não entram os 8000 com dupla nacionalidade, pois estes contam apenas como luxemburgueses.
Metade terá chegado nos últimos 15 anos, de acordo com as estimativas feitas pela revista luso-luxemburguesa Decisão, com base no Statec, o índice estatístico do Grão-Ducado e nas sondagens que a universidade local vai fazendo para actualizar os censos feitos em cada década.
Nos últimos cinco anos vieram muitos jovens qualificados que ajudam a mudar o paradigma do emigrante português. Têm expectativas muito diferentes das primeiras vagas, estão no Grão-Ducado como podem estar amanhã em qualquer outro país que lhes dê oportunidade de desenvolver o seu potencial e serem bem pagos por isso. Não gostam da palavra “emigrante”, preferem outras, como “expat” (de expatriado). As palavras também envelhecem com o peso dos estereótipos.
A todos a visita presidencial tentou chegar. Nos primeiros dois dias, no âmbito da visita de Estado, o programa dirigiu-se fundamentalmente às elites culturais e institucionais, portuguesas e luxemburguesas, com passagem pelas ruas embora (quase sempre) à distância exigida pela segurança.
Marcelo encarna a síntese das várias almas portuguesas. Perante o povo, é o homem afectuoso e compreensivo com quem as pessoas mais simples se conseguem identificar e mesmo apreciar. Perante as elites, é o professor universitário distinto e cultíssimo, que fala francês, inglês e alemão com a mesma naturalidade com que disserta sobre literatura, música erudita ou política internacional.
Tanto agradece a David Carreira por animar os mais jovens luso-descendentes da Terra do Gelo como cumprimenta a Orquestra Barroca Casa da Música que deu em sua honra um concerto na sala de música de câmara da Philharmonie, uma das maiores salas de espectáculos do Benelux.
Num caso como noutro, gera romarias, que, com todas as suas diferenças, têm em comum o encanto pela paixão que transmite. Entre a casaca aba de grilo e o vestido comprido do jantar no palácio grão-ducal de terça-feira e os calções e chinelos dos que acamparam em Wiltz de quarta para quinta-feira, há uma identidade lusa e alguns problemas em comum. As duas principais mensagens que trouxe servem tanto a uns como a outros: o apelo à participação política e à inscrição dos seus filhos no ensino da língua portuguesa.
Do primeiro ao último dia, Marcelo Rebelo de Sousa repetiu-os por onde quer que passasse, considerando lamentável que apenas 17 mil portugueses estejam recenseados no Luxemburgo. Na quinta-feira, no encerramento dos Encontros com as Comunidades – um ciclo que o secretário de Estado José Luís Carneiro tem vindo a promover em vários países –, o chefe de Estado atreveu-se a colocar uma meta para o recenseamento que termina a 13 de Julho para as eleições de 8 de Outubro: mais 10 mil inscritos e ele volta até ao fim do ano.
Carlos Pereira Marques, o embaixador luso no Grão-Ducado, estava radiante: “Não podíamos ter cá melhor embaixador que o Presidente da República, o trabalho que ele fez em poucos dias foi absolutamente precioso e estamos muito gratos por isso.”
Desde logo pelo apelo “constante, directo e assertivo” que fez à participação política ao nível autárquico, nas comunas, onde os portugueses têm capacidade para votar e ser eleitos. “Estamos a falar das eleições locais que são precisamente aquelas que tocam os problemas do dia-a-dia, o ensino, a mobilidade, os serviços locais”, sublinha o diplomata. Noutra frente, porque Marcelo veio dar impulso ao trabalho que vem fazendo. Carlos Pereira Marques chegou em Novembro de 2014 e percebeu as diferenças e as distâncias existentes entre os portugueses residentes no país, tentando estabelecer pontes e diálogos entre todos. Mas também trabalha todos os dias para tentar fazer com que os luxemburgueses tenham uma imagem do que é o Portugal do séc. XXI. “Há uma visão um pouco desequilibrada sobre Portugal, há uma elite que sabe o que de excelente se faz lá e outros que têm uma visão um bocadinho passadista do nosso país. Tenho trabalhado para que haja uma imagem mais real e equilibrada de Portugal”, disse ao PÚBLICO no último dia da visita presidencial.
Feliz estava também José Luís Carneiro, e pelos mesmo motivos. “As autoridades luxemburguesas ao mais alto nível reconheceram publicamente a importância que a comunidade portuguesa tem no domínio da cultura, das artes, da economia, do desenvolvimento social, como também mostraram abertura para algumas preocupações que o Presidente da República sublinhou”, considera o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.
Mas a maior alegria deste governante foi ouvir os elogios aos compatriotas e partilhar o reconhecimento, tanto dos portugueses como das autoridades luxemburguesas, dos sucessos do país, sobretudo a nível económico-financeiro. “A maior alegria que posso ter enquanto secretário de Estado das Comunidades é sentir que há, da parte dos portugueses que vivem fora do país, um sentimento de pertença a Portugal como senti aqui.”
O simbólico e o real
Esse sentimento de pertença, no entanto, parece ter um valor pouco mais do que simbólico para grande parte dos portugueses que vivem no Grão-Ducado. A verdade é que o Luxemburgo está com uma taxa de crescimento económico na casa dos 5%, o desemprego ronda os 6% e o salário mínimo é quatro vezes superior ao que se ganha em Portugal: 1998 euros.
Se isso não é pouco, as perspectivas de vir a receber grandes instituições financeiras em fuga da City de Londres por causa do “Brexit” aumentam as perspectivas de futuro de um país que está apostado em tornar-se dos primeiros, depois dos EUA, a registar e explorar asteróides. Para os mais qualificados, abrem-se oportunidades de carreira que não existem em muitos países e estão a anos-luz de Portugal.
Francisco Soares Machado tem 32 anos, um mestrado em Direito e é chefe de gabinete do vice-presidente do Banco Europeu de Investimento. Está no Luxemburgo desde Março de 2015 e veio por razões estritamente profissionais, não tem quaisquer raízes neste país. Considera-se de passagem, mas nunca se sabe. Hoje está aqui, amanhã logo se vê.
Sérgio Amado também. Aos 43 anos, este engenheiro informático formado no Instituto Superior Técnico é desde há seis anos project manager (gestor de projecto) na empresa luxemburguesa Sociedade Europeia de Satélites (ESE), uma das três maiores do mundo no género, onde trabalham outros 13 conterrâneos. O mais recente projecto que tem a responsabilidade de pôr de pé é um teleporto, um centro de telecomunicações, uma espécie de estação de radares como o que existe no Qatar.
Antes do Luxemburgo, já viveu em França, Alemanha e Inglaterra e agora poderá ir temporariamente para países como o Kosovo e o Afeganistão, consoante os projectos que tiver em mãos. Regressar a Portugal? “Como qualquer português, eu gosto de Portugal, neste momento temos uma oportunidade que eu gostava de aproveitar, mas a vida abre e fecha portas, se não é uma porta é uma janela, portanto vamos deixar acontecer”, responde.
Uma dessas janelas pode vir a ser o centro de lançamento de satélites que está em estudo para os Açores, cuja ideia Sérgio Amado está convencido de que está no bom caminho. E é esse o caminho: “Portugal, como os outros países, tem de apostar na inovação, na tecnologia e tentar tirar algumas lições de outros países. A SES nasceu num ambiente em que não era provável o seu crescimento e floresceu. Foi uma aposta do Luxemburgo em que ninguém apostaria.”
Sobre o país que o acolheu, diz: “É muito fácil viver aqui”, é uma espécie de “emigração para totós”. Francisco Soares Machado concorda. “Ensina-se português nas escolas, vamos ao supermercado e há produtos portugueses ou escritos em português, na caixa está um português ou fala-se português.”
Para mais, não há fenómenos de exclusão como noutros países, nem movimentos nacionalistas ou xenófobos. O facto de apenas 25% dos residentes na capital serem luxemburgueses também ajuda a explicar essa abertura. O envelhecimento dos nacionais é tal que o país tem tido sucessivos avisos da UE sobre a sustentabilidade do sistema de pensões, tendo em conta as previsões do crescimento populacional.
Francisco nota que existe a preocupação de receber bem, mas pensa que os méritos também são dos portugueses desde a primeira geração: “São pessoas trabalhadoras, pacíficas e amigáveis. Os luxemburgueses reconhecem que os portugueses têm ajudado a construir este país.”
Por isso, não sobrevaloriza a influência dos recentes sucessos do país na forma como se olha para Portugal. Vê o tema ao contrário: “As várias vitórias – desportivas, culturais, eleição de portugueses para cargos relevantes – fazem com que os portugueses se sintam mais confiantes e olhem para os outros com essa confiança. Mas do ponto de vista dos estrangeiros, não sei se muda muita coisa. Eu acho que a opinião já era boa e continua a ser.”
O ir, o voltar e o ir voltando
No dia-a-dia, Francisco relaciona-se com muitos portugueses, por escolha e por inevitabilidade. Considera “natural” que as pessoas tentem criar círculos com quem se identifiquem, mas reconhece que, no Luxemburgo, os portugueses estão por todo o lado, sobretudo nos serviços – transportes, restauração, hotelaria.
No seu círculo, as pessoas sentem-se de passagem. “Mas também é verdade que alguns vão mudando a sua expectativa ao longo do tempo, porque é uma terra acolhedora, a integração é fácil e se se tiver um bom trabalho, acaba por se pensar em constituir família e ir ficando.”
Esta nova geração acaba por criar uma outra rede, para não usar a estafada palavra “comunidade”, que se sobrepõe em mais uma camada neste bolo português em que todas se tocam, mas não se misturam. “Raramente se cruzam”, afirma mesmo Marco Godinho, um artista luso-luxemburguês de 39 anos que vive e trabalha entre Paris e Luxemburgo.
“Estes portugueses que vêm com estudos universitários, procuram trabalho de alta qualificação profissional, falam várias línguas e defendem os seus direitos, integram-se directamente no núcleo de pessoas de várias nacionalidades que chegam ao Luxemburgo com as mesmas características profissionais”, acrescenta.
Marco Godinho faz parte de uma outra realidade, a camada do meio deste bolo: a segunda geração. Filho de emigrantes, viveu grande parte da vida no Luxemburgo, onde estudou antes de frequentar academias de arte em França, Suíça e Alemanha, até concluir o mestrado no Atelier National de Recherche Typographique em Nancy. Como artista conceptual, Marco Godinho está interessado na percepção subjectiva de tempo e espaço, questiona as noções de nomadismo, exílio, experiência, memória e tempo vivido. Na arte como na vida.
Por conhecer as várias “comunidades” constata que a última a chegar – os “expats” – não se mistura com a primeira, mas reconhece que veio mudar mentalidades. “Os luxemburgueses têm a noção cada vez maior de que os portugueses não se limitam aos estereótipos, mas são um povo com múltiplos talentos, um país inovador, com qualidade para alcançar objectivos em todas as áreas.”
Dois factores foram decisivos para essa mudança, acrescenta: o facto de hoje se encontrarem portugueses a trabalhar em todos os níveis da sociedade luxemburguesa, mas também porque “os luxemburgueses começaram a visitar Portugal e descobriram um país contemporâneo e desenvolvido em diferentes níveis”.
Marco Godinho gostaria de voltar para o país onde nasceu: “Neste momento, tudo o que tem que ver com a cultura e arte, por exemplo, está a desenvolver-se a uma rapidez incrível e há muitos artistas estrangeiros a escolherem Portugal para viver. Já tive a oportunidade de expor em importantes lugares de arte em Portugal – Museu Berardo, Museu do Chiado, Fundação EDP –, mas quando tiver a próxima oportunidade para realizar um grande projecto em Portugal, será talvez a forma de voltar.”
Enquanto isso não acontece, vai voltando. Como fazem tantos outros – emigrantes, luso-descendentes ou “expats” –, que vão a Portugal sempre que possível, nas férias ou andam mesmo “entre cá e lá”. Como Maria Amélia e Maria Helena, duas emigrantes reformadas que o PÚBLICO encontrou na quarta-feira nas ruas da capital para ver o Presidente passar, ao lado dos grãos-duques, entre fortes medidas de segurança.
Maria Amélia é minhota, mas está há 34 anos no Luxemburgo, aqui criou os dois filhos e agora ajuda a criar os netos. Como mantém residência neste país, não se preocupa muito com a dupla tributação da reforma de que se queixam muitos outros – e que trouxe o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais aos Encontros com as Comunidades. “Ando cá e lá, uns meses em cada sítio, depende.”
Maria Helena também. Quarenta e seis anos depois de ter emigrado, vai voltando. E de vez em quando também vai à Bélgica, onde tem uma filha médica. Estava encantada a ver Marcelo Rebelo de Sousa, até trouxe uma bandeirinha de Portugal, o que lhe valeu uma quebra de protocolo do Presidente para lhe dar um beijo. “Vamos ver se isto agora vai para a frente.” “Isto” é Portugal. Agora, mesmo que já seja só para os netos. Não faz mal.