O nó cego do Brasil
Até à eleição directa de um novo Presidente, o Brasil está nas mãos do Supremo Tribunal
O Brasil entrou numa espécie de “estado de excepção” em que a política — e não apenas a sorte do Presidente Michel Temer — está suspensa das decisões dos tribunais. Tanto o poder executivo como o legislativo perderam a legitimidade. Cresce a polarização política da sociedade brasileira. O Brasil é hoje uma espécie de nó cego.
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O Brasil entrou numa espécie de “estado de excepção” em que a política — e não apenas a sorte do Presidente Michel Temer — está suspensa das decisões dos tribunais. Tanto o poder executivo como o legislativo perderam a legitimidade. Cresce a polarização política da sociedade brasileira. O Brasil é hoje uma espécie de nó cego.
No dia 6 de Junho, o Tribunal Superior Eleitoral tornará pública a sentença sobre a “cassação da chapa” Dilma Rousseff-Michel Temer. Ou seja, declarará a legalidade ou ilegalidade da eleição presidencial de 2014 por irregularidades no financiamento da campanha. Se a eleição for anulada, Temer terá de se demitir. Seria a solução da “saída honrosa”. A permanência de Temer é insustentável, mesmo que a gravação comprometedora entregue à justiça pelo empresário Joesley Batista seja uma falsificação. Um processo de destituição (impeachment) é improvável e duraria meses. E Temer ainda não renunciou e não quer abdicar da imunidade presidencial.
A realização de “directas já”, reivindicada nas ruas pela esquerda, também exigiria uma quase impossível revisão constitucional, aprovada por três quintos das duas câmaras do Parlamento. Neste quadro, a “eleição indirecta é a saída institucional para não mudar as regras ao sabor das circunstâncias”, resume o politólogo Leon Victor Queiroz, em entrevista ao El País Brasil.
Mas há um problema: “Quem é capaz de governar o país e que não esteja envolvido em uma das investigações da Polícia Federal? Quando boa parte dos poderes eleitos está envolvida em corrupção, fica difícil pensar em como alguém de fora do esquema teria condições de governar.”
Por que não um juiz?
Escolher um “Presidente probo” pode ser mais difícil do que parece. Explica Queiroz: “Há três grupos no Congresso, um está envolvido nos escândalos, outro não está e outro terceiro grupo pode estar, mas a polícia ainda não descobriu. Qual deles é maioria, independentemente da ideologia, capaz de escolher indirectamente um Presidente?” E quem tem a certeza de que o próximo ou a próxima não cairá?
É neste quadro que surge o nome de Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo da justiça. Diz à BBC o politólogo Christian Lynch: “Cármen Lúcia seria um nome perfeito, porque não só está fora das investigações como tem um perfil ‘republicano’ e ‘liberal’, acima de qualquer suspeita. É chefe do único poder que restou de pé e por isso está absoluto no país, que é o Judiciário.”
Qual é a anómala chave do “nó cego” brasileiro? “O STF é hoje o fiador da ‘revolução judiciária’ promovida pelo Ministério Público Federal, que derrubou a Nova República de 1985-88. (...) Até à posse do novo Presidente por eleições directas, estamos inteiramente nas mãos do STF.”
O STF foi arrastado para o centro da crise em 2016, dada a massa das denúncias. No princípio deste mês foi revelada uma lista de mais 98 políticos implicados na Operação Lava Jato, com 63 legisladores de 17 partidos. A Lava Jato não foi especificamente lançada contra o Partido dos Trabalhadores (PT), mas contra toda a classe política, contra o establishment, embora atingindo primordialmente o PT e o PMDB, que partilharam o poder nos últimos dez anos. Hoje, o PT ataca a investigação como “politicamente motivada” numa campanha para tentar recuperar apoio público e, ao mesmo tempo, para poder cavalgar a onda de protesto contra as reformas de Temer.
Um juiz não é um político. O facto de ser incorruptível reforça a sua legitimidade para ocupar um cargo, mas não garante as suas decisões políticas. O Judiciário ocupou involuntariamente um vazio, mas corre dois riscos: primeiro, o de uma derrapagem análoga às da Operação Mãos Limpas em Itália, em que os juízes excederam o seu papel e acabaram desautorizados; segundo, o de perderem o estatuto “acima das partes” e caírem desarmados num campo de minas, deixando o sistema sem um “árbitro supremo”.
“Receio que as pessoas passem a enxergar que a interferência do Judiciário é um remédio, quando na verdade mais parece um sintoma da doença”, escreveu há meses o jurista Daniel Vargas.
Directas já!
As raízes da corrupção são históricas, mas foram potenciadas pela extraordinária soma de dinheiro à disposição dos governos nos anos do “milagre económico” e num terreno propício: a natureza dos legisladores brasileiros. O sistema eleitoral produz deputados com uma base de apoio ridícula, multiplica partidos sem ideologia coerente e em que é escassa ou nula a lealdade dos seus deputados. Um Presidente tem de organizar coligações bastardas para aprovar as leis e daqui à compra do voto é um passo: foi assim o “Mensalão”.
Por outro lado, os grandes empresários corromperam activamente os políticos, para obter favores, autorizações, empréstimos ilegais ou subsídios. Está tudo na Lava Jato. Joesley Batista e seu irmão Wesley são os maiores produtores de carne do mundo e funcionaram como um “polvo”, sugando a banca pública e subornando políticos. Na véspera de entregar à justiça a gravação com Temer e calculando os efeitos da revelação na bolsa, Joesley fez uma operação de especulação contra o real, em que ganhou centenas de milhões de dólares. Depois do “crime perfeito” (a expressão é de Temer), os irmãos viajaram para Nova Iorque. Note-se que o Brasil não é mais corrupto do que outros países da região. A corrupção será aí mais visível, graças à imprensa e à justiça.
O “nó cego” do Brasil não se limita ao impasse político. Por mais urgentes que sejam para a economia, as reformas decretadas por Temer são encaradas como ilegítimas pela maioria da população. A polarização política cresce naturalmente. A esquerda autodestruiu-se e a velha direita perdeu a identidade. Dizem os sociólogos que está a surgir uma “nova direita”, mais agressiva, em reacção a uma década do domínio da esquerda.
O modelo económico da expansão esgotou-se no princípio desta década. Como noutras economias emergentes, a crise dá lugar a movimentos antipolíticos. Há um derradeiro risco evocado pelos politólogos: o da aparição, nas “directas”, de um aventureiro populista com um discurso antipolítico e de “limpeza moral”. Jair Balsonaro, uma das mais sinistras figuras da política brasileira, já está em campanha para as “directas”. Tem escasso prestígio e muitos anticorpos. É apenas um aviso.
Texto corrigido às 17h03 de 29/05/2017: corrigida a confusão entre Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral.