Um filho pródigo levou o cheiro da rua à prisão
Há meses que, atrás das paredes de Santa Cruz do Bispo, reclusos ensaiam ao lado de actores e músicos profissionais. Já não há muros entre eles. Nesta quinta e sexta-feira, vêm cá fora tentar derrubar outros mais, com O Filho Pródigo.
Num antigo armazém de pedra, despido de qualquer artifício de cenografia, os actores do mundo de cá de fora e os actores das duas prisões de Santa Cruz do Bispo não se distinguem. Num palco que pouco eleva o olhar, cabem mesas rodeadas de cadeiras, um balcão de bebidas, guitarras e rua. Também lá cabem dois filhos e dois pais, que pisam o mesmo palco, mas hemisférios diferentes.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Num antigo armazém de pedra, despido de qualquer artifício de cenografia, os actores do mundo de cá de fora e os actores das duas prisões de Santa Cruz do Bispo não se distinguem. Num palco que pouco eleva o olhar, cabem mesas rodeadas de cadeiras, um balcão de bebidas, guitarras e rua. Também lá cabem dois filhos e dois pais, que pisam o mesmo palco, mas hemisférios diferentes.
Um filho que foi embora, um pai que o quer esquecer, uma mãe que não deixa de o relembrar e um irmão condenado a preencher o vazio que o outro deixou para trás. É dessa gente que se faz uma estória de dolorosos desencontros. E de perdão.
“Eles estão ávidos disso. Embora não o digam, eles estão ávidos de que as pessoas os perdoem, os aceitem”, conta a Luísa Pinto sobre os reclusos que com quem tem trabalhado nos últimos anos. A encenadora já levou a palco duas peças protagonizadas por reclusos das prisões de Santa Cruz do Bispo. Na primeira, escrita e interpretada só por mulheres, colocava sob os holofotes a violência de intimidade nas prisões. Na segunda, trouxe para o mesmo palco reclusos e actores profissionais.
Desta vez, foi mais além. Movida pelo trabalho de investigação da sua tese de doutoramento, Luisa levou à cena reclusos inimputáveis, pessoas “com questões cognitivas muito abaladas” com as quais nunca tinha trabalhado. É com estes cinco homens, três reclusas e sete actores e músicos profissionais que se faz O Filho Pródigo, um texto de Helder Wasterlain e João Maria André, que vai ser apresentado hoje e amanhã, pelas 21h30, no MIRA, em Campanhã.
Na obra que dá uma reviravolta à parábola bíblica homónima, eleva-se uma personagem: a mãe. “[Os reclusos] falam permanentemente da mãe, mesmo que tenham tido a pior das relações com ela. Em muitos casos, os laços familiares foram rompidos. E este texto devolve-lhes isso. Dá-lhes a possibilidade de se perdoarem a si próprios e de levarem as famílias, que vêm assistir, a perdoá-los”, explica a autora do projecto.
É o público portuense o primeiro a pôr os olhos na peça, mesmo antes das prisões. Não foi uma opção tomada à toa. “Como primeiro impacto era importante que [a peça] fosse tratada como um objecto artístico como qualquer outro, sujeito a críticas, [às pessoas] gostarem ou não gostarem. Somos todos iguais, somos todos artistas”.
A proximidade é a palavra-chave. Aproximar os de lá de dentro aos de cá de fora. Reinserir e devolver a dignidade. Luísa quis fazer tudo isso através da arte: “Quis perceber, até que ponto o teatro consegue transformar as pessoas e a sociedade. Porque o estigma do ex-recluso é terrível. Todos temos medo, todos nós temos preconceito”.
Trazer o cheiro da rua e levar os medos embora
A desconstrução do estigma começou há cinco meses, do lado de lá das paredes dos estabelecimentos prisionais de Santa Cruz do Bispo. “Os primeiros dias custaram. Ficamos tão presos quanto eles”, conta Luísa, que acompanhou a aprendizagem e a evolução dos reclusos.
O casting foi como qualquer outro. “Não queria ter o tratamento de ‘coitadinhos, são reclusos’. Fiz o casting como fiz aos actores profissionais e escolhi os que melhor iam ao encontro do perfil das personagens”, explica.
João Melo, actor profissional e protagonista da peça, também esteve lá: “A realidade é dura e as organizações e as logísticas são difíceis. Mas eles foram entrando, ganhando gosto e vontade, quando se aperceberam que isto ia mesmo ser possível”.
Com o projecto, também João apagou carimbos: “O teatro dá essa hipótese de nos fazer evadir da nossa realidade e experimentar outras. É um espaço neutro, onde todos são iguais. [Com a experiência] pude ver o lado humano dos reclusos, como eles se queriam agarrar a isto”.
E agarraram-se bem. Agarraram-se a um espaço de liberdade, criado dentro de um espaço de reclusão. “A arte é o que salva a humanidade de todos nós. É o que nos faz correr. E acho que é o que acontece com eles. O facto de se testarem e de se conseguirem concretizar. Alguns, no início, tinham dificuldade em dizer o nome, por terem questões cognitivas muito abaladas”, conta Luísa. Agora, em cima do palco, o medo, o nervosismo e a vergonha fogem para longe. Conseguem declamar “um grande bife de texto”, entrar a tempo, ter uma relação de contracena.
Mas, mesmo fora do guião, há falas que marcam. Foi entre as paredes onde os reclusos vivem, que Luísa diz ter recebido “os piropos mais bonitos”. Após ter faltado a um ensaio, por ter apanhado uma gripe, disseram-lhe: “Não me faças mais isto, porque quando vocês estão aqui sinto-me vivo”. Uma outra deixa deixou Luísa sem palavras: “Vocês trazem-me o cheiro da rua”.
“Sou eu, quando estou em palco”
Em cena, Veríssimo Rosário é o irmão do filho pródigo. Hoje, depois de muitos anos, volta a pisar um palco. Já tinha representado em jovem, mas nada desta dimensão. “É uma grande oportunidade que deram aos reclusos, de começarem a praticar uma arte, poderem sair dos quatro muros e desenvolverem mais a personalidade”, explica.
Não esconde a felicidade em ter sido um dos escolhidos. “É um projecto que não vou esquecer tão cedo, não vou. A não ser que a velhice me obrigue”, diz Veríssimo, sorrindo.
Mas nem só de falas se faz a O Filho Pródigo. A música que, por vezes, se levanta, não é pano de fundo. Os fados que transbordam as paredes do MIRA não se ouvem no rádio. Foram escritos há um ano, por Adriana Maurício, uma das reclusas. Hoje, chegam pela primeira vez aos ouvidos do público, já com as guitarras dos músicos Eduardo Silva e Rui David.
“O fado que ela canta, a forma como ela canta… Está ali a vida. Está ali a alma de uma fadista, de alguém que vive em desafio com o destino”, afirma João Melo.
Também não é esta a primeira actuação de Adriana. Diz que já fez “algumas brincadeiras” e que se sente bem frente-a-frente ao público. “Faz-me sentir que faço parte de algo”, conta. Já há muitos anos que queria investir numa carreira musical, mas o destino, que a “virou do avesso”, não a deixou. Agora, que teve esta oportunidade, não quer parar.
Os apoios à iniciativa chegaram de vários lados. Da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, da Santa Casa da Misericórdia do Porto e do Mira-Artes Performativas. Mas estes são apoios pontuais porque são muitos os projectos que se iniciam e poucos os que continuam.
Depois das cortinas descerem, para Adriana fica o agridoce. “Nós somos capazes de ainda mais e melhor”.
Texto editado por Ana Fernandes