Jane Goodall veio com três peluches a Lisboa e saudou-nos de forma muito especial
Aos 83 anos, Jane Goodall continua a correr o mundo e para espalhar a mensagem de como temos de preservar o planeta porque isso é, afinal, preservar-nos.
Jane Goodall entra no palco da sua palestra em Lisboa, traz consigo três pequenos bonecos de peluche e, depois de umas palavras, a sua própria voz, num tom que vai subindo, ecoa por todo o Teatro Tivoli: “Uh, uh, uh, uh, uh, uh.” E é impossível não achar graça. “Significa sou eu, sou a Jane.”
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Jane Goodall entra no palco da sua palestra em Lisboa, traz consigo três pequenos bonecos de peluche e, depois de umas palavras, a sua própria voz, num tom que vai subindo, ecoa por todo o Teatro Tivoli: “Uh, uh, uh, uh, uh, uh.” E é impossível não achar graça. “Significa sou eu, sou a Jane.”
Depois da saudação como as vocalizações dos chimpanzés, a primatóloga e activista britânica de 83 anos começou esta a contar a sua viagem de vida na Conferência da National Geographic 2017, que é também a viagem das pessoas da sua vida e do seu encontro com os chimpanzés da Tanzânia e das grandes descobertas sobre o seu comportamento e cognição num trabalho de investigação pioneiro. Conta como a mãe foi importante para que cumprisse os seus sonhos e como sempre gostou de animais desde a infância. Até os levava para a cama, diz na conferência que também trouxe a Lisboa o activista especialista em desperdício alimentar Tristram Stuart e a fotógrafa Jodi Cobb.
“Tinha quatro anos e meio, vivia na cidade de Londres e não havia muitos animais. A minha mãe levou-me de férias a uma quinta com animais. Vacas, porcos… cara a cara.” Ficou fascinada com as galinhas poedeiras. “Onde está o buraco por onde sai o ovo? Ninguém me disse!” Rimo-nos. A sua veia de cientista começaria, na realidade, a manifestar-se aí, quando encontrou um galinheiro vazio. “Posso descobrir por mim própria”, pensou. “E esperei, esperei, esperei. Foi bom para mim. A minha família é que não sabia onde eu estava. Quatro horas depois chamou a polícia.” Apareceu coberta de palhas e a mãe o que fez foi sentar-se a ouvir a história dela. “A minha curiosidade científica estava lá.”
Mas veio a Segunda Guerra Mundial. “Tínhamos pouco dinheiro. Os meus livros vinham da biblioteca. Tinha dez anos quando encontrei um livro numa pequena livraria e poupei dinheiro para o comprar: Tarzan of the Apes. Apaixonei-me. Mas o que fez Tarzan? Casou com a Jane errada!” Da plateia soltam-se as gargalhadas.
“Não havia muito dinheiro para ir para a universidade.” Por isso, depois do ensino secundário, começou a trabalhar em Londres (tinha dois trabalhos, um como secretária e outro numa empresa de documentários). Até que um amigo a convidou para ir a África, à sua quinta de família no Quénia, e ela despediu-se e foi trabalhar como empregada de mesa para ganhar mais dinheiro e poder cumprir o seu sonho africano.
Este caminho levá-la-ia ao encontro de outra pessoa importante na sua vida – Louis Leakey, paleontólogo e antropólogo de renome no que depois seria o Museu de História Natural de Nairobi. “Ouvi falar do Dr. Louis Leakey, fui falar com ele sobre animais e ele deu-me trabalho como secretária.” Naqueles tempos, Louis Leakey fazia expedições a um dos locais (agora) mais importantes da evolução humana (graças às descobertas de fósseis por aquele paleoantropólogo), o desfiladeiro do Olduvai, na Tanzânia. Jane Goodall também foi. “Os leões, as girafas à volta… Era tão mágico”, sublinhou.
A surpresa das ferramentas
“Louis Leakey começou a falar comigo sobre um grupo de chimpanzés nas margens do lago Tanganica. Queria saber sobre o comportamento dos nossos parentes mais próximos e que podiam ajudar a perceber como os nossos antepassados vivam.” No seu livro In the Shadow of Man, de 1971, explica ainda: “Apenas um homem, disse-me Louis, tentou fazer um estudo sério do comportamento dos chimpanzés na natureza, e o professor Henry W. Nissen, que fez esse trabalho pioneiro, só pôde passar dois meses e meio no terreno – na Guiné Francesa.”
Jane Goodall viu-se então, em 1960, na Tanzânia, em Gombe, nas margens do lago Tanganica, para observar o grupo de chimpanzés que aí vivia. “Nessa altura, as raparigas não eram cientistas. Eram enfermeiras, secretárias.” Era isso o que também lhe diziam, refere na conferência. “A excepção foi a minha mãe. Disse-me: ‘Se queremos alguma coisa, temos de trabalhar muito e aproveitar as oportunidades.’ E é o que digo [hoje] aos jovens. Escrevem-me a dizer: ‘Como a Jane conseguiu, eu também consigo.’”
A princípio, os chimpanzés não queriam nada com ela, quando a viam desapareciam. “Os chimpanzés nunca tinham visto um símio branco…” O que diz a seguir mostra a dimensão das suas descobertas, quando observou de binóculos um dos chimpanzés do grupo a enfiar o caule de uma planta numa colónia de térmitas e a comê-las. “Não só o vi a usar um caule como ferramenta, como para o usar como ferramenta tinha de tirar as folhas. Ver isso hoje não é extraordinário. Mas na altura era. Os cientistas acreditavam que os humanos – e só os humanos – usavam ferramentas.”
O que se entende aqui por ferramentas são as ervas e caules das plantas usadas pelos chimpanzés para chegar às térmitas, são as folhas com que bebem água, os ramos com que caçam presas ou as pedras com que partem nozes para tirar lá de dentro o miolo nutritivo (uma é o martelo e a outra, onde põem em cima a noz, é a bigorna). Mas não só usam ferramentas como também as fabricam: isso acontece quando põem um calço de pedra por baixo de uma bigorna de pedra para equilibrarem o seu quebra-nozes ou quando tiram as folhas de uma planta para ficar apenas o caule para apanharem as térmitas. Portanto, modificam estes materiais.
Para documentar o que se passava em Gombe, a National Geographic enviou o fotógrafo e realizador de documentários Hugo van Lawick, e que viria a casar-se com Jane Goodall. “Foi o Hugo van Lawick que levou a história de Jane e os chimpanzés para a América e para o resto do mundo.”
Nem tudo é cor-de-rosa. “Os chimpanzés também têm um lado negro, brutal e até de planeamento da guerra.” Um chimpanzé de um grupo rival, se for capturado, pode ser brutalizado até à morte. “Podem ser agressivos mas também ter compaixão e adoptar um órfão.”
Ao fim de dois anos de observações, Louis Leakey disse-lhe ela iria fazer o doutoramento na Universidade de Cambridge em etologia. “Nem sabia o que era a etologia.” E mais risos.
“Foram os dias mais entusiasmantes da minha vida. Tive estudantes, construí uma estação [de investigação de Gombe], escrevi trabalhos académicos e livros de divulgação. Por que deixei este paraíso?”
Porque, respondeu em seguida, foi a uma conferência em 1986 sobre conservação da natureza e apercebeu-se como o número de chimpanzés estava a cair, como eram mortos e vendidos para consumo ilegal de carne, como viviam enjaulados para investigação médica. “Tinha de fazer alguma coisa.”
Roots & Shoots também em Portugal
O que fez passou pelo lançamento de programas de educação. Um deles é o Tacare (ou Take Care), que começou na Tanzânia nos anos 90. Porque não se podiam salvar os chimpanzés, e as suas florestas, se as pessoas que vivem nas zonas perto deles vivem em condições de grande pobreza. Por isso, foram ouvir as populações locais e perguntar-lhes o que se podia fazer por elas. “Somos parceiros.” O resultado desta pareceria são projectos que ajudam as populações locais com programas de microcrédito, à criação de instalações sanitárias, do seu próprio negócio ou a introdução de planeamento familiar.
O outro programa é o Roots & Shoots (Raízes e Rebentos), iniciado em 1991na Tanzânia. Nas suas viagens pelo mundo começou a ver o que estamos a fazer ao planeta: “A tremenda pobreza, a fome, o desperdício de comida, a escravatura, a deflorestação, a desertificação, a poluição dos oceanos. O dióxido de carbono na atmosfera não pode ser reabsorvido. Estamos na sexta extinção [em massa].” E é agora que a razão de ser dos três peluches começa a ser desvendada. Puxa de uma vaca, para notar que há aspectos que temos de ter em conta. “Concordam que entra e sai gás. Acontece a todos.” Risos.
No Roots & Shoots, os grupos escolhem três projectos, um em que ajudam as pessoas, outro ambiente e outro os animais. Está em 99 países, com mais de 150 mil grupos. Em Portugal também, através da Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária. É por isto que Jane Goodall acha que ainda vamos a tempo e é optimista.
Até rato gigante da floresta, o segundo peluche, é inteligente, por exemplo perceber sinais de doença. Quanto ao terceiro peluche, um chimpanzé, foi um norte-americano que lho deu. Queria ser mágico, mas diziam-lhe que não podia por ser cego, só que também aprendeu a pintar. O chimpanzé-peluche anda com Jane Goodall há três anos e mostra que “os seres humanos têm um espírito indomável”, que têm linguagem e intelecto, tudo sinais de esperança.