“As leis não podem ser alteradas a reboque do medo”

O penalista Rui Patrício, que integra o Conselho de Prevenção da Corrupção, deixa fortes críticas à nova lei contra o branqueamento de capitais. Na barra do tribunal é um dos mais reputados do país.

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Rui Patrício integra o Conselho de Prevenção da Corrupção Daniel Rocha

Solteiro e sem descendência, quando se lhe pergunta qual o seu livro preferido, um dos advogados que mais casos mediáticos teve em Portugal hesita: “É como perguntar que filho se prefere”, diz Rui Patrício, que aos 46 anos arranjou uma casa no Alentejo para acomodar a sua vasta biblioteca, que já não lhe cabia em Lisboa. Acaba por apontar Philip Roth, Cardoso Pires e Saramago, mas entusiasma-se a sério é quando fala do Leopardo, de Visconti: “Já o vi umas 25 vezes”. Fascina-o aquele escaparate da condição humana.

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Solteiro e sem descendência, quando se lhe pergunta qual o seu livro preferido, um dos advogados que mais casos mediáticos teve em Portugal hesita: “É como perguntar que filho se prefere”, diz Rui Patrício, que aos 46 anos arranjou uma casa no Alentejo para acomodar a sua vasta biblioteca, que já não lhe cabia em Lisboa. Acaba por apontar Philip Roth, Cardoso Pires e Saramago, mas entusiasma-se a sério é quando fala do Leopardo, de Visconti: “Já o vi umas 25 vezes”. Fascina-o aquele escaparate da condição humana.

Do seu invejável currículo faz parte uma passagem pelo Conselho Superior da Magistratura e a recente nomeação, pela Ordem dos Advogados, para o Conselho de Prevenção da Corrupção. E está a preparar um livro que reúne alguns artigos que foi publicando na imprensa mas também textos originais, a que quer dar um título inspirado em Um Eléctrico Chamado Desejo: "Depender da bondade de estranhos e outros textos leves sobre a leveza do processo penal".

O directório Best Lawyers distinguiu-o no fim do ano passado como um dos advogados do ano em Portugal. Está desde o início numa das maiores sociedades de advogados do país, a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados e pelas mãos passaram-lhe arguidos do Face Oculta, dos vistos gold, da Operação Furacão. O jurista integrou nesta terça-feira o paínel de especialistas de uma conferência internacional, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em que se discutiu a prevenção do branqueamento de capitais.

É um advogado de elite. Costuma perguntar aos seus clientes se cometeram os crimes de que são acusados?
Sempre. É essencial. E já rejeitei muitos clientes.

Por lhe dizerem que eram culpados?
Não, por me dizerem algo em que não acreditei.

Aceita que clientes vão a tribunal mentir sobre crimes que cometeram?
Não. Por razões pessoais e porque acho que não é uma boa defesa. Às vezes não vale a pena negar o óbvio. Não me agradam defesas que criam uma realidade fictícia, até porque não são um caminho eficiente.

Existe uma justiça para ricos e outra para pobres?
É óbvio que há defesas mais caras que outras. Mas há muitíssimos advogados bons, e alguns fazem defesas pro bono. O nosso escritório também.

O sistema de defesas oficiosas que existe abrange todos os que devia abranger? A Ordem dos Advogados diz que não.
Não conheço o suficiente o sistema.

Quando se legisla mal em Portugal é de propósito?
Não. Legisla-se muitas vezes mal por ser à pressa, em cima do joelho: aconteceu qualquer coisa e vai-se a correr legislar. A lei não pode ir a reboque das emoções. E depois às vezes legisla-se mal na própria técnica, na escrita das leis. Toda a gente hoje em dia acha que pode fazer leis. E isso dá muito mau resultado, porque depois as leis não atingem os efeitos que se quer e cria-se litigância que inunda os tribunais. Há um problema? Faz-se uma leizinha e dormimos todos descansados. Problemas sociais que se resolviam com investimento público, por exemplo, como o mau financiamento das escolas que cria problemas no espaço educativo. Faz-se uma lei, passa-se à frente e não se ataca a raiz do problema. Usa-se em excesso a resposta legislativa.

Um réu mediático tem mais probabilidades de ser condenado?
Pode funcionar nos dois sentidos, depende do caldo mediático criado, pode funcionar a seu favor ou desfavor. Não é por acaso que em Portugal se viola sistematicamente o segredo de justiça e muitas dessas violações são propositadas. Há violações que tanto podem vir da defesa dos arguidos como da acusação, mas nalguns momentos do processo só um dos lados tem conhecimento dos factos que se tornaram públicos. Existe uma grande hipocrisia: toda a gente diz que é muito grave esta violação, por ser pernicioso para os direitos dos arguidos e para a investigação. Toda a gente chora lágrimas de crocodilo mas depois ninguém faz nada, é um regabofe. Quantos destes processos por violação conhece que tenham resultado?

Ao contrário de crimes como a corrupção, a violação do segredo de justiça não é alvo de grande reprovação social.
Mas devia ser. Os cidadãos em geral são hipócritas em relação a esta matéria. Tal como na corrupção as pessoas pensam que existe um “eles” e um “os outros”, e que a si nunca lhes vai acontecer, porque estão fora desse barco. Mas quando lhes acontece mudam radicalmente de opinião, sejam arguidos, vítimas ou queixosos em determinado processo. Ninguém viola se não houver um interessado no final, e os interessados são dois: os órgãos de comunicação social e no final do dia os consumidores das notícias.

Alguma vez apresentou queixa por violação do segredo de justiça nos processos em que esteve envolvido?
Já, porque já me deparei com violações claras e obscenas do segredo de justiça. E numa dessas vezes, há um ou dois anos, recebi uma notificação do Ministério Público a perguntar-me se eu sabia quem tinha sido. Respondi: “Saber não sei, mas gostava que os senhores descobrissem.” Já me aconteceu muitas vezes ser advogado em determinado processo e ter de perguntar ao tribunal se o que vem nos jornais sobre ele é verdade. Endurecer este regime não passa por aumentar a pena do crime. Passa por estabelecer uma responsabilidade disciplinar para quem tem obrigação de guardar os seus processos e não o consegue fazer; e poder-se-ia usar a prova indirecta, ou por dedução – com base em raciocínios de experiência comum. Noutros processos os tribunais valorizam muito esse tipo de prova, mas nos de violação de segredo de justiça não.

Temos um presidente da Assembleia da República que foi apanhado a dizer que se estava a marimbar para o segredo de justiça.
Não comento.

Este problema é mais grave do que a morosidade da justiça?
Sim, porque a morosidade é um cliché que se repete à exaustão.

Portugal tem sido condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por causa da lentidão.
Nos tribunais executivos e fiscais e na área das execuções é de facto chocante, mas não se pode generalizar. Sobretudo não se pode usar esta ideia para suprimir os direitos dos arguidos e dos queixosos. E o processo penal tem vindo a aboli-las sistematicamente.

Dos muitos processos mediáticos em que esteve envolvido qual foi o que o marcou mais e porquê?
Prefiro sempre que os processos não sejam mediáticos, como advogado. É muito mais fácil, mesmo quando as matérias são mais complexas. Pela positiva, o que mais me marcou foi o da ponte de Entre-os-Rios, um exemplo de como o tribunal resistiu à pressão da mediatização. Pela negativa o Face Oculta. E mais não digo, porque o processo ainda está pendente. Um dia falarei sobre isso. Será preciso fazer a sua história. E não o digo por ter perdido em parte. Ambos me marcaram pelo que simbolizam sobre a justiça.

Acha aceitável que alguém possa estar preso preventivamente 16 meses?
Não acho que o prazo máximo seja excessivo. Coisa diferente é se as decisões de prisão preventiva estão bem fundamentadas. Acho que por vezes se prende para investigar, claro. Cedo demais e com facilidade demais.

Os prazos de inquérito são mesmo meramente indicativos? Não deviam ser obrigatórios, para as investigações não se prolongarem de forma indefinida?
Não tenho dúvidas de que são meramente indicativos. Se deviam ser obrigatórios não tenho a certeza. Tendo a achar que a actual solução legal é boa. Agora a prática podia ser vista com olhos mais exigentes. Com franqueza não acho que o problema dos prazos seja essencial, como o excesso de aplicação da prisão preventiva, porque põem em causa dos valores essenciais da nossa civilização. A celeridade é um valor importante, mas não absoluto.

O terrorismo criou um cenário mundial que retirou algumas garantias legais às pessoas a nível dos seus direitos individuais. Como encara isso?
Como cidadão estou disponível para prescindir de alguma margem de liberdade a favor da segurança. Não estou disponível para um 1984 do George Orwell, ou tipos de processos e de tribunais diferentes para terroristas. Não estou disponível para Guantánamo. Demonizar os suspeitos de terrorismo não nos leva a lado nenhum, e mata um dos pilares essenciais da nova civilização. As leis não podem ser alteradas a reboque do medo.

Tem a teoria de que a corrupção é o crime da moda, como dantes era o tráfico de droga. Qual será o próximo?
Talvez o terrorismo, ou a segurança das comunicações, ou a cibercriminalidade. Isso está estudado pela sociologia. Ou talvez os crimes ambientais. Diz-se que corrupção aumentou muito, mas não é verdade. Aumentou foi o número de processos.

A corrupção em Portugal é endémica?
Acho que não. Criou-se essa ideia. A nossa sociedade tem é comportamentos, esses sim endémicos, que não chegam a ser criminais – a cunha, o amiguismo, o nacional-porreirismo, a dificuldade em dizer que não, a meritocracia. Claro que isto pode criar um caldo que facilita os crimes.