Autódromo do Estoril está ilegal há 45 anos
Histórico circuito foi edificado sem licença de construção e não tem licença de utilização. Câmara de Cascais desconhecia o caso e admite expropriação.
Faz parte da paisagem da freguesia de Alcabideche, no concelho de Cascais, e é um dos mais emblemáticos equipamentos desportivos nacionais. Oficialmente inaugurado a 17 de Junho de 1972, o Autódromo do Estoril (AE) foi o primeiro circuito totalmente dedicado às competições motorizadas em Portugal, tendo acolhido grandes provas internacionais de Fórmula 1 e MotoGP. Por lá passaram chefes-de-Estado, alguns dos pilotos mais consagrados da história e multidões de fãs entusiastas mais ou menos anónimos. Mas, 45 anos depois de ter aberto as portas, esta infra-estrutura continua em situação ilegal, sem licença de construção ou de utilização. E foi assim que foi parar às mãos do Estado, há já duas décadas.
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Faz parte da paisagem da freguesia de Alcabideche, no concelho de Cascais, e é um dos mais emblemáticos equipamentos desportivos nacionais. Oficialmente inaugurado a 17 de Junho de 1972, o Autódromo do Estoril (AE) foi o primeiro circuito totalmente dedicado às competições motorizadas em Portugal, tendo acolhido grandes provas internacionais de Fórmula 1 e MotoGP. Por lá passaram chefes-de-Estado, alguns dos pilotos mais consagrados da história e multidões de fãs entusiastas mais ou menos anónimos. Mas, 45 anos depois de ter aberto as portas, esta infra-estrutura continua em situação ilegal, sem licença de construção ou de utilização. E foi assim que foi parar às mãos do Estado, há já duas décadas.
Começou a ser edificado, no início dos anos de 1970, sem as devidas autorizações; a escritura de compra e venda do grosso dos terrenos onde foi construído foi celebrada dois anos após a inauguração, pouco depois do 25 de Abril de 1974; tomou posse ilegal de terrenos camarários e outros privados; recebeu ameaças de expropriação por parte da Câmara Municipal de Cascais (CMC), mas, apesar das anomalias, o município e o Estado acabaram por promover e suportar, com o Erário Público, obras de vulto no circuito para corresponder às exigências da Fórmula 1. Através de um intitulado Acordo Global, celebrado em 1997, acabou por transitar para a esfera pública, por dação em pagamento, para liquidar dívidas do Grupo Grão-Pará ao Fisco, Segurança Social, Fundo de Turismo e Tesouro. Estes são alguns dos ingredientes da conturbada história do AE.
Para a contar é necessário recuar a 1966-67, quando a luso-brasileira Fernanda Pires da Silva, fundadora do Grão-Pará, grupo empresarial centrado na construção e no turismo, acordou com o também empresário e amigo Lúcio Tomé Feteira a compra de uma área de terreno, de cerca de 75 hectares, conhecida por Santo António da Ribeira da Penha Longa. Radicada no Brasil durante muitos anos, a empresária participara na construção dos autódromos internacionais de Brasília e do Rio de Janeiro, que serviriam de inspiração para projectar um equipamento idêntico em Portugal.
Um autódromo que estaria integrado num ambicioso empreendimento turístico-desportivo de grande dimensão, o maior do país, que garantiria a rentabilidade da exploração do circuito. O projecto incluía um drive-in, clube de lazer, aldeia olímpica, pavilhões para exposições, hotel e aparthotel, restaurantes, bares, campos de ténis, boîtes, shopping center, lojas, escritórios e um museu do automóvel. Quase nada saiu do papel, para além do próprio autódromo.
Já em 1968, face aos entraves burocráticos, Fernanda Pires da Silva decidiu avançar com a construção do circuito, sem as necessárias autorizações. Um dos primeiros problemas foi a insuficiência do terreno disponível para a construção das pistas, o que levou a Grão-Pará a anexar outras parcelas que não lhe pertenceriam. Finalmente, em Junho de 1972, o AE seria oficialmente inaugurado pelo Presidente da República Américo Tomás, acompanhado por vários membros do Governo de Marcello Caetano.
O regime apadrinhava um equipamento que prometia colocar Portugal no mapa dos maiores eventos motorizados mundiais e aliviar um pouco o ostracismo internacional a que o país estava vetado. Para a construção e gestão do circuito foi constituída a empresa Autodril – Sociedade do Autódromo do Estoril. Em Maio de 1971 arrancou a empreitada, que seria concluída em apenas 11 meses. Após a inauguração, o então presidente da CMC José Guedes Pinto Machado, num ofício dirigido à Autodril, reconheceu o interesse do complexo desportivo, salientando “a excepcional importância” da obra para o concelho, sem nenhuma referência ao facto de mesma ter sido construída sem licença.
Se, por um lado, a autarquia reconhecia o interesse público do empreendimento, por outro, os serviços camarários levantavam a questão do mesmo ter “ocupado terreno municipal”, como revela um documento emitido logo a 18 de Março de 1972, consultado pelo PÚBLICO no Arquivo Histórico Municipal da CMC. Uma circunstância que impediu sempre que o município emitisse as respectivas autorizações de construção.
Já em Julho de 1972, poucos dias depois da inauguração, o presidente da CMC expôs directamente a situação à Autodril, por carta. “Tem esta Câmara conhecimento que essa sociedade construiu uma pista de automóveis do autódromo do Estoril em parte de terreno baldio municipal da Ribeira da Penha Longa e ainda que nas instalações do autódromo foi englobado um outro baldio municipal”, revela a missiva, exigindo a regularização da situação “o mais rapidamente possível”.
Em resposta, a própria Autodril, a 19 de Dezembro do mesmo ano, assumiu a necessidade da “ocupação dos terrenos propriedade da Câmara” para a construção da pista, com uma área de “aproximadamente 12.065 m2”, solicitando ao presidente da autarquia as condições para a sua cedência. O município mostrou-se disponível para estudar a hipótese de uma permuta de terrenos, mas o processo não avançou e a situação de ilegalidade do equipamento iria manter-se.
Os agitados dias que se seguiram à Revolução de Abril de 1974 trouxeram novos desenvolvimentos ao processo. Logo no final de Maio, uma carta enviada pela administração da Autodril ao presidente da Comissão Administrativa da CMC, sintetiza o historial do equipamento. Admitindo ter iniciado as obras sem os devidos licenciamentos e de ter ocupado “um baldio municipal”, ressalvava que a obra “iniciara-se e prosseguira com o conhecimento e anuência” dos anteriores responsáveis camarários e “fora inaugurada na presença das mais representativas autoridades do país”, mostrando-se disponível para regularizar a situação. Em suma, admitia a ilegalidade do AE, mas sublinhava que esta não era uma obra clandestina, pela visibilidade pública que a rodeou.
Paralelamente, a 14 de Junho de 1974, mais de três anos após o início das obras e dois depois da inauguração, a Autodril (representada por Abel Pinheiro e João Paulo Teotónio Pereira, filhos de Fernanda Pires da Silva) e a empresa Ribalonga – Empreendimentos Urbanísticos (através do empresário luso-brasileiro Lúcio Tomé Feiteira), formalizam a escritura de compra e venda dos terrenos, com uma área de 500 mil metros quadrados, junto do 12.º Cartório Notarial de Lisboa, por um preço global de 20 milhões de escudos (100 mil euros).
Na referida escritura, consultada pelo PÚBLICO, Tomé Feteira deixa algumas ressalvas, salientando a necessidade da Autodril negociar algumas áreas existentes no perímetro da propriedade que vendia e que não pertenciam à Ribalonga: “A sociedade vendedora não assume qualquer responsabilidade no que se refere aos enclaves pertencentes a terceiros e compreendidos no referido perímetro, mas reconhece à compradora o direito de proceder a todas as diligências que entenda, quer com a Câmara Municipal de Cascais, quer com particulares ou com outras entidades, com o fim de as adquirir.”
A partir de Dezembro de 1974, o processo junto da CMC conhece uma travagem brusca, quando as empresas do Grupo Grão-Pará, nomeadamente o AE, são ocupados e intervencionados, com Fernanda Pires da Silva e familiares a partirem para o exílio. Durante este período conturbado, logo em 1975, a Comissão Administrativa da Autodril, nomeada pelo Governo, chega a propor a venda do circuito ou a sua demolição “para aproveitamento dos terrenos”. Nenhuma das hipóteses avança, mas o autódromo fica ao abandono e alguns dos seus equipamentos acabam por ser destruídos e saqueados.
A “intervenção” irá durar até Maio de 1978, quando todas as empresas do grupo são devolvidas aos seus accionistas originais. Iniciam-se, então, as obras de recuperação do AE. A partir de 1980, a Autodril volta a tentar junto da CMC a aprovação do projecto do Complexo Turístico-Desportivo, mas o processo será sempre reprovado pela autarquia. Uma das principais razões continuava a prender-se com a ocupação de terrenos baldios. “Não deverá ser apreciada qualquer iniciativa no complexo do Autódromo do Estoril, enquanto não estiver regularizada a ocupação indevida de terrenos baldios e municipais, pelo autódromo”, pode ler-se num ofício enviado pela autarquia à Autodril, em Fevereiro de 1982.
Num outro documento, também dirigido à Autodril, em Março de 1984, a CMC volta a apresentar condições para deferir qualquer projecto apresentado pela empresa do Grupo Grão-Pará relacionada com o AE. Em primeiro lugar, insiste na regularização da situação dos terrenos, admitindo que a mesma estaria em curso, para encerrar o litígio que impediu “o levantamento da licença do projecto inicial”; em segundo, exige a apresentação de um “novo projecto com todas as construções existentes no Autódromo, a fim de merecerem despacho conjunto da CMC e de vir a legalizar, definitivamente, todo o processo”.
A possibilidade de um Grande Prémio (GP) de Fórmula 1 (F1) vir a realizar-se no circuito vai, entretanto, trazer novos desenvolvimentos. A promoção turística do país passou a ser um desígnio assumido pelos sucessivos Governos e a prova automobilística com maior expressão internacional servia como uma luva a esses propósitos. A circunstância da ilegalidade da obra e a ocupação indevida de terrenos camarários passou, por momentos, para um plano secundário.
Após negociações, a 12 de Junho de 1984, a Autodril assinou um protocolo com a CMC, então presidida por Helena Roseta (1982-85), no qual a autarquia seria autorizada a utilizar as instalações do AE, no máximo de quatro vezes por ano, durante 25 anos, para a realização de provas de F1 e de mais três eventos desportivos, entre os quais o Rali de Portugal. As obras de adaptação e melhoramento para a realização destes eventos ficariam a cargo do município, que avançou com 70 milhões de escudos (350 mil euros), provenientes da Comissão de Obras da Zona do Jogo do Estoril.
A 20 de Outubro de 1984, realizou-se o primeiro GP de F1 no circuito, que iria acolher a competição ininterruptamente até 1996. Durante estes 12 anos, o Erário Público irá investir cerca de 2,1 milhões de contos (aproximadamente 10,5 milhões de euros) em obras no AE, para dar resposta às crescentes exigência dos promotores e organizadores do GP de F1.
Mas, rapidamente, as relações entre a autarquia e a Autodril iriam deteriorar-se. Ainda em Dezembro de 1984, Helena Roseta pedia publicamente a expropriação e municipalização do AE, alegando a necessidade de sanar uma situação desequilibrada, “em desfavor do interesse público”. De acordo com a autarca, a Autodril não estaria em condições de cumprir as cláusulas do protocolo assinado seis meses antes. “Há um compromisso com a Fórmula 1 por dez anos, que nos obriga a ter a pista operacional. Perguntamos: que sentido faz investir ali milhares de contos todos os anos sem termos contrapartidas equitativas?”
Helena Roseta entendia que a impossibilidade da Autodril cumprir o acordo relacionava-se com uma velha dívida da empresa à CMC, avaliada em 11.472 contos (57 mil euros), fruto do não pagamento dos terrenos baldios e municipais, indevidamente ocupados. A autarca apontava ainda o facto de a Autodril protelar “deliberadamente” a regularização da situação dos terrenos baldios, posteriormente passados ao domínio privado municipal, “ao arrepio do protocolo assinado entre as partes”, reiterando que o AE “fora construído sem licença da câmara”. O cenário da expropriação acabaria por cair, apesar de ter sido aprovado pelo executivo municipal.
O diferendo em relação aos terrenos municipais irá permanecer inalterado até Fevereiro de 1998, após a assinatura do Acordo Global, estabelecido entre a Autodril e o Estado, a 8 de Julho do ano anterior. O acordo previa que o Grupo Grão-Pará entregasse bens ao Estado, por dação em pagamento (no âmbito do Plano Mateus), para liquidar dívidas ao Fisco, Segurança Social e Apoio ao Turismo e Tesouro ao Estado, concluindo um contencioso judicial com mais de 20 anos e um processo negocial que se arrastava desde 1991.
Entre os bens entregues pelo grupo empresarial de Fernanda Pires da Silva (avaliados em 20 milhões de contos: cerca de 100 milhões de contos), contava-se 51% do capital da recém-constituída Sociedade Gestora (SGA) do Autódromo Fernanda Pires da Silva. Mais tarde, já em Junho de 2002, o Estado passaria a controlar a totalidade do capital da SGA, após a Grão-Pará ter cedido os 49% das acções que ainda detinha na sociedade à Caixa Geral de Depósitos, para liquidar uma dívida de 10 milhões de euros. O equipamento passou então para a esfera da Parpública (empresa gestora das participações do Estado), onde ainda permanece, depois do Tribunal de Contas ter vetado a compra do equipamento pela CMC, no final de 2015, por 4,9 milhões de euros.
Nos termos do Acordo Global, a Autodril comprometeu-se a adquirir à CMC os terrenos municipais, acabando por pagar pelos mesmos 612 mil contos (aproximadamente três milhões de euros), enquanto a autarquia iria adquirir os terrenos desta empresa, que ocupara desde 1975, por 101 mil contos (503 mil euros). Resolvia-se a questão dos terrenos ilegitimamente ocupados, mas permaneceria o problema da falta de licenciamento e legalidade do equipamento, que permanece até aos dias de hoje.
Entretanto, começaram também a surgir privados a reivindicar a posse de terrenos dentro do autódromo, que teriam sido ocupados ilegitimamente pela Grão-Pará. Segundo o PÚBLICO apurou, dois desses proprietários terão feito diligências junto da CMC para reivindicar os seus direitos, quando surgiu a possibilidade do equipamento passar para a esfera municipal, em 2015, antes do chumbo do Tribunal de Contas.
Um dos casos, envolvendo os herdeiros de Manuel da Conceição Reis, que reclamava três lotes de terreno, localizados junto da Curva 3 do circuito, viu o tribunal de primeira instância dar-lhes razão, em 2013. Mas um recurso interposto pela Autodril acabou por conseguir anular a sentença na Relação, no início de Março deste ano. Os herdeiros já interpuseram um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, aguardando-se a decisão.