O ódio não dividirá Manchester, a cidade onde a música une
Ao longo dos anos, a imagem da cidade foi difundida mundialmente pela vibrante cena musical, dos Joy Division à Haçienda, projectando ideais de tolerância e de inclusão, os valores que agora parecem ter sido atacados.
Foi há cinco anos. Estávamos na Universidade de Preston, a 20 minutos de carro do centro da cidade, na chamada "Grande Manchester", num auditório repleto ouvindo alguém especial: o músico Peter Hook, histórico baixista de Joy Division e New Order, dois emblemáticos grupos de Manchester e dos mais influentes das últimas décadas na música popular globalizada.
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Foi há cinco anos. Estávamos na Universidade de Preston, a 20 minutos de carro do centro da cidade, na chamada "Grande Manchester", num auditório repleto ouvindo alguém especial: o músico Peter Hook, histórico baixista de Joy Division e New Order, dois emblemáticos grupos de Manchester e dos mais influentes das últimas décadas na música popular globalizada.
Peter Hook discorria sobre como a segunda maior cidade inglesa se havia tornado conhecida em todo o mundo, “não só pelo Manchester United”, gracejou, mas também “por Joy Division, New Order, Fall, Smiths, Stone Roses, Happy Mondays e outros”. Às tantas, para o exemplificar, pôs a tocar Atmosphere dos Joy Division, uma das canções mais solenes alguma vez feitas, e na sala irrompeu um silêncio respeitoso. No fim, talvez para atenuar o clima emocionado, Hook disse, sorrindo: “Ao que parece é uma das canções que as pessoas mais gostam de tocar em funerais.”
É bem provável que por estes dias essa mesma canção esteja a ser ouvida em alguns dos funerais das vítimas do atentado de segunda-feira. Para ocasiões mais celebrativas os grupos da cidade têm também muito para oferecer. Talvez nenhuma outra urbe inglesa respire tanto a cultura musical, e tudo o que ela projecta, ao nível da criatividade, da tolerância, da diversidade, da inclusão e da independência, como Manchester. Nunca saberemos se esses valores estiveram na base do ataque. Mas pode dizer-se que constituem a antítese do que o Daesh, que reivindicou o atentado, representa, como foi lembrado por Tim Jonze no The Guardian.
“You’ve got the wrong city if you think hate will tear us apart”, escreveu depois dos ataques Dave Haslam, um dos DJ que passaram pelo mítico clube Haçienda, numa alusão a uma outra conhecida canção dos Joy Division: Love will tear us apart. A mensagem, que tem sido repetida nas últimas horas, é clara: apesar do ataque, em Manchester, professa-se a ligação entre todos e o desejo de continuar com um estilo de vida em que a música e a cultura surgem como um dos símbolos mais fortes de celebração da existência.
Ao longo dos anos, em diversas manifestações culturais pelas quais a cidade ficou conhecida, é como se a música tivesse funcionado como essa utopia e que, independentemente da origem, da idade, da cor da pele, da religião, da carteira, da classe social ou da roupa, todos pudessem unir-se e partilhar os mesmos valores. Aconteceu isso, por exemplo, com a experiência da editora Factory ou do clube Haçienda, exemplos de paixão e independência, que influenciaram gerações, apesar de a cidade, na segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980, ser bastante diferente da de hoje.
A meio dos anos 1970, em Londres, os Sex Pistols e os punks olhavam com raiva para o estado do mundo. Em Manchester acontecia o mesmo, mas anos mais tarde também se começou a olhar para dentro, com desespero, e sem ironia, e grupos como Joy Division, Durutti Column – que gravaria um álbum em Lisboa intitulado Amigos em Portugal – ou A Certain Ratio, todos reunidos na editora Factory de Tony Wilson, davam nas vistas.
Com o fim dos Joy Division, depois do suicídio do cantor Ian Curtis, e o nascimento dos New Order, uma nova era é prenunciada, com música mais física, tecnológica e intercultural, reflectindo as diversas miscigenações culturais da cidade, abrindo caminho para a cultura acid-house e para a afirmação de grupos como Stone Roses ou Happy Mondays. É a época de ouro do Haçienda, onde todas as mesclas sociais são possíveis, como é retratado no documentário 24 Hour Party People (2002).
Nos anos 1990, quando as indústrias culturais e criativas passaram a constar da agenda política, Manchester era invariavelmente referida como um exemplo de como uma cidade que anteriormente parecia fragilizada havia ganho uma nova dinâmica. Em termos urbanísticos, zonas industriais anteriormente esquecidas foram recuperadas e as actividades culturais, em particular a música, emergiram como a sua principal montra de afirmação. Apostou-se na atracção de massa crítica, através da promoção da tolerância e de políticas de imigração progressistas, ao mesmo tempo que se projectava um ambiente cultural vibrante, com um planeamento urbano capaz de proporcionar qualidade arquitectónica.
Não espanta que nesses anos um dos principais directores criativos na operação de revitalização da cidade tenha sido Peter Saville, um conhecido designer que havia alcançado fama a desenhar as capas dos discos dos Joy Division e New Order, num estilo depurado, minimalista, eterno. Numa conferência realizada em 2009, no âmbito da ExperimentaDesign, dizia que o seu desafio “era perceber como Manchester podia ser única, original e moderna”.
Hoje o cinzento industrial do Norte de Inglaterra ainda se sente por aquelas bandas, mas acima de tudo vislumbra-se o caleidoscópico vibrante de uma cidade cosmopolita. É ali que acontece um dos festivais multidisciplinares mais estimulantes da Europa na actualidade – o Manchester Internacional Festival, que decorre todos os anos em Junho – e é também ali que está a ser construído um novo e gigante centro de artes pelo arquitecto Rem Koolhaas. A cidade vive dias de luto – mas a música não se silenciará.