Meios para combater fogos levam bombeiros a ameaçar boicote

Corporações de Setúbal alegam que poderão não ter meios para participar no dispositivo de combate aos fogos florestais fora do distrito. Voluntários do distrito de Lisboa, já avisaram que não irão participar nas comemorações do Dia do Bombeiro.

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Bombeiros lamentam cortes nos financiamentos às associações Rui Farinha / NFactos

A época de incêndios ainda está longe da chamada fase Charlie, a mais crítica, mas o descontentamento que lavra entre os bombeiros voluntários já levou algumas corporações a ameaçar ficarem de fora do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF), caso o Governo não reforce o financiamento que lhes destinou.

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A época de incêndios ainda está longe da chamada fase Charlie, a mais crítica, mas o descontentamento que lavra entre os bombeiros voluntários já levou algumas corporações a ameaçar ficarem de fora do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais (DECIF), caso o Governo não reforce o financiamento que lhes destinou.

Numa reunião que juntou 45 associações e corpos de bombeiros, a Federação dos Bombeiros do Distrito de Lisboa exigiu ainda que o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, peça desculpas aos bombeiros “pelas desastradas e ofensivas” declarações que foi fazendo à boleia da apresentação do DECIF para 2017. Um exemplo? O governante sustentou, a propósito da directiva financeira deste ano, que enquadra o pagamento das despesas resultantes das intervenções dos corpos de bombeiros no combate aos incêndios, que cada bombeiro ganha 45 euros por dia, logo 1350 euros ao final do mês. Ora, estes cálculos ignoram, segundo os corpos de bombeiros de norte a sul do país, que para perfazer aquele montante mensal cada bombeiro teria de trabalhar 24 horas por dia durante 30 dias seguidos, o que é “humanamente impossível”.

O PÚBLICO tentou sem sucesso ouvir o secretário de Estado, Jorge Gomes, mas o Ministério da Administração Interna, através do qual foi feito contacto, informou que o governante estava em viagem a caminho do México. 

Numa das várias frentes, a Federação dos Bombeiros do Distrito de Setúbal queixa-se, numa carta aberta, de um decréscimo no financiamento que contraria o “compromisso político de que a dotação em sede de orçamento de Estado seria tal que nenhuma associação humanitária de bombeiros teria uma comparticipação inferior ao ano anterior”. E, numa altura em que faltam equipamentos de protecção individual e em que o parque dos veículos para combate a incêndios florestais “está envelhecido”, aquela federação avisa: “Não estão reunidas as condições para garantir a operacionalidade dos corpos de bombeiros do distrito de Setúbal no âmbito do DECIF 2017 ao nível histórico de anos anteriores, nomeadamente a projecção de meios humanos e materiais para fora do distrito”.

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Menos 279,5 mil euros em dois anos

Noutra frente, a Federação dos Bombeiros do Distrito de Lisboa fez contas aos “efeitos gravosos” da aplicação da lei de financiamento e concluiu: “Estamos em 2017 e o financiamento já é inferior a 2014, tendo as associações registado uma diminuição de 272.529 euros nos dois anos seguintes à aplicação da referida lei”. Neste ano, o financiamento sofreu um corte de 3,06% comparativamente com o ano anterior, ainda segundo a federação, que apela a uma solução “que evite que cerca de 50% das associações humanitárias vejam diminuídas as receitas anuais”, o que “poderá colocar em risco” a sua própria existência. Para este ano, o financiamento à federação, segundo a própria, é de cerca de 4,3 milhões, menos 136 mil euros do que em 2016.

Por tudo isto, a federação decidiu, na reunião no passado dia 18 com as associações e corpos de bombeiros, pôr-se de fora das comemorações do Dia do Bombeiro Português, marcadas para 28 de Maio, em Cascais. E, por considerar que a Liga dos Bombeiros Portugueses se tem mostrado incompetente na defesa dos interesses dos bombeiros, aquela federação aprovou também um voto de censura e desconfiança ao seu presidente, Jaime Marta Soares. Ao PÚBLICO, este diz comungar do descontentamento devido aos cortes no financiamento, mas discorda das críticas. “Devíamos estar mais unidos do que nunca para sermos mais fortes perante aqueles que nos desrespeitam e que não têm cumprido os acordos estabelecidos. Desunidos ficamos muito mais vulneráveis”, reagiu Jaime Marta Soares, acusando a federação de estar a “lançar mais achas para a fogueira”, numa altura em que se exige “serenidade” na reivindicação de mais meios.

“A actual directiva financeira foi feita nas nossas costas e não respeitou a lei nem os bombeiros portugueses. Precisa de ser alterada, mesmo considerando que, se estivesse a ser correctamente aplicada, ninguém poderia estar a receber menos do que no ano anterior”, lembrou Jaime Marta Soares, concordando, no essencial, com aquilo que dizem as diferentes federações: “A capacidade financeira das associações não chega para aguentar os gastos do dia-a-dia e com isto podemos estar a pôr em perigo a capacidade de resposta no terreno”.

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As críticas do presidente da Liga dos Bombeiros portugueses não são de agora. E, em Beja, no dia 16, o secretário de Estado da tutela já reagira, para dizer: “Admito que a Liga não tenha lido o documento. Quem aprova a directiva sou eu e não o seu presidente, pelo menos ainda”. Numa altura em que as chamas já consumiram 13.530 hectares (uma área dez vezes superiores ao mesmo período de 2016), estas não foram as únicas declarações de Jorge Gomes a contribuir para atear o descontentamento. Quando foi ao Parlamento apresentar o DECIF para 2017, no dia 17, Jorge Gomes falou numa despesa anual do Estado de 22 milhões de euros que resulta dos tais 45 euros que cada bombeiro ganha por dia, o que perfaz 1350 euros por mês.

“Como sabemos os 45 euros, essa voluptuosa riqueza, são para 24 horas de serviço”, lembra um documento no site da Associação Bombeiros para Sempre, para concluir que o secretário de Estado “só podia estar a brincar”. “Nenhum ser humano consegue trabalhar 24 horas por dia durante 30 dias seguidos que seria o tempo de trabalho necessário para chegar aos 1350 euros. É uma forma demagógica de se colocar a questão”, concorda Joaquim Oliveira da Silva, da Federação de Bombeiros do Distrito do Porto, sem querer, porém, entrar no fogo cruzado, por entender que estas questões “deviam estar a ser discutidas internamente”.

Menos contido, Jaime Marta Soares recorda que “trabalhar 24 horas por uma compensação de 45 euros dá pouco mais do que 1,8 euros por hora”. 

É o "dispositivo possível"

A indicação, dada também por Jorge Gomes, de que cerca de 100 bombeiros viajarão de Lisboa para Viana do Castelo de autocarro e de comboio para combater os fogos também não foi das mais bem acolhidas. Embora o governante tenha sublinhado que tal visa evitar que os operacionais cheguem cansados aos teatros das operações, bem como minimizar os acidentes e o desgaste das viaturas de serviço, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses considera tal hipótese ridícula. “Já no passado isto foi testado e não deu resultado. É discurso para criar slogans, ridículos e sem substância, e dar a ideia de que alguma coisa de importante está a mudar”, criticou.

Ainda em Beja, questionado sobre um eventual boicote dos comandos das corporações na actuação fora dos respectivos distritos, Jorge Gomes disse: “Actuarão como bem entendam. Não são profissionais. São amadores. Interpretaremos como tal”. Apesar disto, Jaime Marta Soares não acredita que os bombeiros voluntários se mostrem menos disponíveis para o combate aos fogos. “Só se estiverem mesmo em desespero. Tenho para mim que os bombeiros portugueses nunca negarão o seu trabalho na defesa da vida dos portugueses”.

Quanto aos meios mobilizados para o combate aos incêndios deste ano, constituem “o dispositivo possível”, para o presidente da Liga. “Está preparado para uma média de 200 a 250 fogos por dia. O problema é que num país como o nosso, em que andam à solta os incendiários criminosos, ocorrem 300 e 400 e às vezes até 500 incêndios por dia. Agora, não há nenhum dispositivo, por mais organizado que seja, que consiga resistir a uma coisa destas, nem em Portugal nem em nenhum país da Europa e do mundo”, admitiu, para concluir que, “com alguma normalidade, este dispositivo corresponde”.