Morreu Roger Moore, o Santo que foi 007
O actor que mais anos representou no cinema James Bond, o espião britânico mais famoso do mundo, morreu na Suíça aos 89 anos.
“Nos meus primeiros anos como actor disseram-me que, para ter sucesso, era preciso personalidade, talento e sorte em igual medida. Disputo essa afirmação. Para mim, foi 99% de sorte. Não serve de nada ser talentoso se não se estiver no sítio certo no momento certo.”
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“Nos meus primeiros anos como actor disseram-me que, para ter sucesso, era preciso personalidade, talento e sorte em igual medida. Disputo essa afirmação. Para mim, foi 99% de sorte. Não serve de nada ser talentoso se não se estiver no sítio certo no momento certo.”
Era assim que Roger Moore, que morreu esta terça-feira aos 89 anos (após uma “curta, mas corajosa batalha” com o cancro, segundo o comunicado oficial, assinado pelos filhos do actor, partilhado na sua página do Twitter), definia a sua carreira em 2014 ao jornal inglês The Guardian. Nessa altura, Moore já estava praticamente “reformado”, depois de uma longa carreira que ficará para sempre ligada ao agente secreto 007, James Bond, que interpretou em sete filmes, entre 1973 e 1985.
“Tinha de trabalhar muito ao actuar”, disse em tempos, agora citado pela Hollywood Reporter, dizendo que não possuía “talento natural”. Gostava de ter sido também um vilão, e não sempre o herói belo e pronto para desarmar com charme ou luta (tinha começado a sua carreira como modelo). “Passei a minha vida a interpretar heróis porque tinha o aspecto de um herói. Praticamente tudo o que me ofereciam não exigia muito mais do que ter o meu aspecto.”
Mas Moore, que nasceu em Outubro de 1927 e morreu a poucos meses do seu 90.º aniversário, conseguiu também sobreviver ao peso de ter sido a “cara” de uma personagem popular. Para isso contribuiu o facto de o actor inglês já ter 20 anos de carreira antes de substituir Sean Connery no papel do agente secreto criado por Ian Fleming. Moore era conhecido do grande público mundial por O Santo, série baseada na personagem do detective Simon Templar, criada por Leslie Charteris, que interpretou ao longo de seis temporadas e 120 episódios, entre 1962 e 1969. O seu protagonista, mais um homem que nasceu para ser interpretado por alguém com o aspecto de Moore, era um ladrão que rouba ladrão e um popular entretenimento em mais de 80 países onde foi exibido.
A sorte de que Moore falava, e a sensação de estar no sítio certo no momento certo, expressava-se na impressão de que, por trás da imperturbável fleuma britânica e daquela voz inconfundível, rica e modulada, o actor estava sempre a piscar o olho ao espectador. Como se nem ele acreditasse que, pelo meio de salvar o mundo, estava a passear pelo mundo e a seduzir mulheres belíssimas. Moore não era exactamente santo — casou-se quatro vezes, com a segunda mulher, Dorothy Squires, e a terceira, Luisa Mattioli, a recusarem-lhe o divórcio durante anos devido às suas aventuras extraconjugais —, e também não nascera em berço de ouro (era filho de um polícia). Porém, sabia o que era passar ao lado de uma carreira: esteve alguns anos sob contrato com a MGM e, apesar de papéis secundários em filmes como A Última Vez Que Vi Paris (1954, ao lado de Elizabeth Taylor e Van Johnson), só sobreviveu aproveitando o que aparecia na televisão inglesa e americana.
Foi aí que a sorte esteve mesmo do seu lado: foi com Ivanhoe, em 1958, que o vento começou a mudar, num crescendo que o viu dedicar-se à televisão ao longo dos anos seguintes. Levou-o a O Santo e, uma vez terminada esta série, a Os Persuasores, série de acção e aventura que durou uma única temporada de 24 episódios (1971-1972), em que contracenava com Tony Curtis.
A sua entrada na série 007, depois do passo em falso de George Lazenby em 1969 e do regresso temporário de Sean Connery para dar tempo à produção de arranjar um novo substituto, introduziu um novo tom nas adaptações dos romances de Ian Fleming. Com Moore, que se estreou na série em 1973 com Vive e Deixa Morrer, Bond tornava-se um playboy espirituoso, e a série adquiriu uma nova dimensão lúdica, com mais humor e muito mais espectáculo. (O próprio Moore disse, meio a brincar, que “só usava três expressões faciais como Bond: sobrancelha esquerda arqueada, sobrancelha direita arqueada, e sobrancelhas cruzadas quando era agarrado pelo vilão”.) Tornar-se-ia um dos espiões ao serviço de sua majestade mais amados pelos fãs. “A minha personalidade é completamente diferente da dos Bond anteriores. Não sou do tipo assassino impiedoso. Por isso é que o interpreto sobretudo para a risota.” O seu Bond preferido chegou a ser Sean Connery, como disse à revista Time, mas depois mudou de ideias e confessou-se fã de Daniel Craig, a mais recente encarnação do agente 007, que também já passou pelos actores Timothy Dalton e Pierce Brosnan.
O sucesso de Vive e Deixa Morrer, que se tornou o 007 de maior êxito até então no cinema, fê-lo regressar ao papel em mais seis filmes: O Homem da Pistola Dourada (1974), O Agente Irresistível (1977), Aventura no Espaço (1979), Missão Ultra-Secreta (1981), Operação Tentáculo (1983) e Alvo em Movimento (1985), tornando-se o actor que mais vezes (sete ao todo) e mais tempo (12 anos) encarnou James Bond. Mas os filmes tinham cada vez menos que ver com as histórias originais de Ian Fleming, às quais praticamente já só iam buscar o título. Moore tinha 58 anos quando rodou Alvo em Movimento, em que contracenava com Grace Jones e Christopher Walken, e era evidente que estava já demasiado velho para o papel.
Os “anos Bond” foram também o pico da carreira de Moore, que ia alternando os filmes de 007 com outras produções de acção e aventura — Ouro (1974), Os Executores (1976), Os Gansos Selvagens (1978, em que contracenava com Richard Harris e Richard Burton), Fuga para Atenas (1979), Assalto no Alto Mar (1980), A Corrida mais Louca do Mundo (1981). Não se pode dizer que algum destes títulos, nem de outros em que foi aparecendo, tenham ficado para a história, mas a imagem pública de Moore nunca sofreu: o actor encontrara o seu “nicho” e o seu público, e a sua pose descomplexada, descomprometida, de quem sabia que “isto é tudo um filme e estamos aqui para nos divertir”, garantia que nada disto era levado a sério. Ao contrário de muitos colegas e contemporâneos, Moore, que abandonou a Academia Real de Artes Dramática ao fim de seis meses para trabalhar, nunca “perseguiu” papéis mais sérios nem mostrou interesse em resgatar o tempo perdido. Nunca o lembraremos por outros papéis que não James Bond e Simon Templar, mas Moore nunca teve o mínimo problema com isso.
Depois de se ter “reformado”, o actor esteve cinco anos fora dos ecrãs, e, quando voltou a representar, fê-lo apenas pontualmente, dedicando-se maioritariamente ao seu trabalho humanitário em prol da UNICEF, que lhe valeu aliás ser armado, em 2003, cavaleiro pela rainha Isabel II. O seu último papel com um mínimo de peso foi no telefilme de 2011 A Princess for Christmas. Exilado fiscal desde 1978 e residente oficial do principado do Mónaco, do qual era uma espécie de “embaixador da boa vontade”, Moore repartiu a sua vida ao longo dos últimos 40 anos entre o Sul de França, a Suíça, onde morreu, e o Mónaco, onde será enterrado num funeral privado. Sobrevivem-lhe a sua quarta esposa, a dinamarquesa Kristina Tholstrup, com quem se casou em 2002, após uma relação de dez anos, e Deborah, Geoffrey e Christian, os três filhos do seu terceiro casamento com Luisa Mattioli. Com Joana Amaral Cardoso