Como é que um artista representa um país de que não gosta?

Na Bienal de Arte de Veneza, os pavilhões dos EUA, do Brasil e da Suíça fazem-nos reflectir sobre as políticas culturais por trás das representações nacionais. Em conflito ou em consonância, os artistas cruzam-se com as identidades e mitologias dos seus países. E também fazem política.

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No Pavilhão dos Xamãs, um dos nove da exposição internacional, o brasileiro Ernesto Neto atrai uma multidão à sua tenda de croché ZSOLT CZEGLEDi/epa

Mark Bradford, o artista norte-americano que representa os Estados Unidos na Bienal de Arte de Veneza, é como Scarlett O’Hara no filme E Tudo o Vento Levou. Apesar de lhe parecer tudo cada vez mais negro, há que ser optimista: Tomorrow Is Another Day, a última deixa do filme pronunciada por Scarlett quando o seu mundo acaba de colapsar, dá o título à exposição que um dos mais aclamados pintores norte-americanos apresenta nos Giardini, o parque de Veneza onde se encontra a maioria dos pavilhões nacionais.

Depois das filas no exterior que fazem do pavilhão americano um dos mais concorridos desta bienal que abriu na semana passada em Itália, Bradford faz-nos entrar pela porta de serviço porque quer evitar a todo o custo o pórtico neoclássico que dá acesso a uma arquitectura de poder que evoca a Monticello de Thomas Jefferson ou a Casa Branca de Donald Trump.

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Mark Bradford trouxe para o pavilhão norte-americano uma enorme escultura-pintura em que se descortinam restos da palavra “imigrante”, manifestação do activismo do artista e das suas preocupações ANDREA MEROLA/epa

Começamos então por encontrar uma grande escultura-pintura, uma espécie de cogumelo invasor e disforme, nascido do tecto, que nos empurra para as margens e nos obriga a circular colados às paredes da galeria. Entre a pintura feita de colagens, descortinamos restos da palavra “imigrante”, só identificada entre tantas rasuras porque conhecemos o lado activista do artista, as suas preocupações com os marginalizados, os vulneráveis, nomeadamente o seu trabalho social com as populações prisionais e a sua revolta contra a situação política actual.

Na sala seguinte, está o Mark Bradford mais clássico, com as suas grandes pinturas abstractas que integram técnicas de colagem, mas mesmo assim serão as mais negras até à data. Regressam também a temas antigos e espelham o início da vida do artista, quando trabalhava no cabeleireiro da mãe rodeado de mulheres negras como ela, incorporando os papelotes usados no salão para fazer permanentes. Ao centro, está outra escultura, desta vez uma furiosa Medusa, feita de tiras de papel negro, que Bradford mancha de amarelo, lavando-o com lixívia, numa das muitas alusões da exposição à mitologia clássica – mas que também não está longe de uma despenteada cabeleira de rastas.

Esta Medusa que transforma aqueles que olham para ela em pedra não é porém a parte mais política de Tomorrow Is Another Day. Temos de chegar à famosa Rotunda do pavilhão americano – por onde se faz normalmente a entrada – para nos depararmos com o lado mais afirmativamente desesperado e melancólico da exposição: numa obra intitulada O Regresso de Saturno, alusiva ao deus do tempo, Bradford desfaz a cúpula por cima das nossas cabeças através de um “desenho arquitectural”, como lhe chama no desdobrável distribuído aos visitantes. Depois de ter coberto de papel negro esta zona da Casa Branca, como gosta de chamar ao pavilhão, volta a cobri-la com uma nova camada branca, desta vez um pouco transparente, para deixar os braços da Medusa regressarem e colarem-se às formas arquitectónicas, transformando o espaço numa ruína com a ajuda de Saturno.

À sua maneira, Bradford refaz a Casa Branca e acerta contas com Trump, o presidente que chegou subitamente no último Inverno: “Quis que a sentissem como uma ruína, como se fôssemos a um edifício governamental e começássemos a abanar a rotunda e reboco começasse a cair. A nossa fúria fez o reboco cair das paredes.” Ao New York Times, na mesma entrevista, expressou aquilo que o fez chegar aqui: como é que um artista negro, gay, que se afirma como “um intelectual liberal e progressista”, pode representar os Estados Unidos no estrangeiro quando já não se sente representado pelo seu governo? “Senti que muitos dos progressos que fizemos para sermos inclusivos, para termos a certeza de que os miúdos transexuais se sentiam seguros, desapareceram num ápice. Fazer este corpo de trabalho tornou-se muito, muito emotivo para mim. Senti-me a fazê-lo numa casa que estava a arder.”

É na sala seguinte que chega o dia seguinte mais optimista. Com a renovação da tradição da pintura abstracta, Mark Bradford quer mostrar “através da alquimia da esperança”, lê-se no desdobrável, “que haverá dor, mas também beleza”. Com esta série de pinturas em que não usa tintas ou pincéis, mas apenas a manipulação do papel, o artista constrói grandes baixos-relevos orgânicos, atirando papel molhado contra o suporte e prensando-o para obter a superfície mais plana a que chamamos convencionalmente pintura.

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Stefano Rellandini/REUTERS

A ausência de Giacometti

Se no pavilhão dos Estados Unidos sentimos a tensão entre o artista e o país que representa, num desencontro que era imprevisível na altura em que o artista foi convidado, no da Suíça o tema é a reflexão que uma bienal composta na sua grande parte por representações nacionais pode suscitar em torno das políticas culturais e dos conceitos de identidade nacional.

Mulheres de Veneza é dedicado à ausência, mal conhecida, de Alberto Giacometti (1901-1966) na história das exposições do pavilhão. Quando já passaram 50 anos sobre a sua morte, o país explora o facto de o grande artista suíço ter-se sempre recusado a expor no pavilhão nacional, mesmo depois de o seu irmão, o arquitecto Bruno Giacometti, ter construído o edifício em 1952.

Giacometti via-se como um artista internacional ou transnacional e só em 1956 aceitou expor no pavilhão do seu país de adopção, a França, seis esculturas exactamente intituladas Mulheres de Veneza (o grupo pode ser visto agora na grande retrospectiva da Tate Modern dedicada ao artista). Quatro anos antes de morrer, acabou por responder positivamente ao convite da direcção da bienal e expôs no pavilhão internacional. Foi então que a Bienal de Veneza lhe deu o grande prémio de escultura.

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A ausência de Giacometti, que nunca quis representar o país, torna-se material no pavilhão suíço — aqui numa escultura de Carol Bove GAETAN BALLY/EPA

É nos trabalhos da dupla Teresa Hubbard/Alexander Birchler (há outros de Carol Bove) que a ausência de Giacometti é trabalhada de uma forma mais inquietante e comovente. O duo de artistas suíço-americano, num filme intitulado Flora, vai à procura do papel da artista norte-americana Flora Mayo na vida de Giacometti – uma amante dos tempos de estudante na Paris de 1920 que os biógrafos do artista não mencionam ou falam de raspão. Entre o documentário e a ficção, o filme reinventa a vida e a obra de Mayo, dando voz à artista já morta e a David, um filho até hoje desconhecido, numa conversa entre mãe e filho.

Ao lado da grande sala onde se pode ver o filme num ecrã que passa a imagem na frente e no verso, Teresa Hubbard/Alexander Birchler refazem um busto do escultor moldado pela artista, uma obra que só se conhecia através de uma velha fotografia em que aparecem também Alberto e Flora. 

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Reprodução da fotografia original incluída na instalação de Teresa Hubbard / Alexander Birchler, "Bust 2017". Cortesia dos artistas: Tanya Bonakdar Gallery, New York, e Lora Reynolds Gallery, Austin Ugo Carmeni

Flora, cuja família entra na falência em 1929, é obrigada a regressar à América e desaparece no anonimato. Mais do que uma homenagem – não há uma única obra original que possa contrariar a vontade expressa pelo artista em vida de não expor aqui –, Mulheres de Veneza é uma reflexão sobre a ausência e a invisibilidade, não só de Giacometti, mas das mulheres artistas na história da arte.

Num almoço-performance nos Giardini a que assistimos em parte, o brasileiro Paulo Bruscky – que este ano terá uma retrospectiva no Pompidou e cujo trabalho inspirou o mote desta bienal, Viva Arte Viva, comissariada pela francesa Christine Macel – questionava também a noção de pavilhão nacional e lembrava que há 40 anos, quando expôs pela primeira vez na biennale, foi exactamente a convite do Pavilhão da Suíça, num gesto considerado heterodoxo na época. “Julgo que terá sido a primeira vez que um pavilhão nacional convidou artistas estrangeiros para expor”, contou aos outros convivas, explicando que o convite aconteceu no âmbito do movimento Fluxus, que nos anos 60-70 se declarou contra o objecto artístico como mercadoria.

Bruscky faz parte dos 120 artistas de 50 países escolhidos directamente por Christine Macel, que é também conservadora-chefe do Centre Pompidou de Paris, para mostrar o seu trabalho na exposição transnacional, espalhada por nove pavilhões entre os Giardini e o Arsenale. No almoço, Bruscky mostrou os seus “poemas linguísticos”, feitos através de lambidelas coloridas em papel, criando poesia numa linguagem universal. “Fico feliz de estar no pavilhão internacional desta bienal, porque me recuso a representar o Brasil neste momento”, relataram mais tarde os media brasileiros. “Eu me recusaria a representar um país que acaba de passar por um golpe, com os militares apoiando o governo. Isso é uma coisa vergonhosa.”

Os homens da floresta

De mãos dadas com outros visitantes, cantando numa língua incompreensível, estamos a sentir-nos um pouco hippies no Pavilhão dos Xamãs, um dos nove da exposição internacional. Seguimos o fluxo da multidão e acabámos dentro da escultura-instalação de Ernesto Neto, um dos mais relevantes artistas brasileiros da actualidade, que atrai jornalistas, câmaras de televisão e visitantes à sua colorida tenda de croché.

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No Pavilhão dos Xamãs, um dos nove da exposição internacional, o brasileiro Ernesto Neto atrai uma multidão à sua tenda de croché ZSOLT CZEGLEDi/epa

Ernesto Neto pede para nos juntarmos numa roda quando começa a cerimónia indígena da cultura huni kuin, conduzida pelos índios com que o artista chegou à bienal. Já tinha falado aos visitantes dos poderes do ayahuasca, um chá alucinogénico que é permitido usar nas cerimónias religiosas e a que os huni kuin chamam nixi pae. “Nixi pae não é nada de droga, nunca matou ninguém. Ajuda as pessoas a receberem o conhecimento. Tem cantoria para curar, para chamar, para gerar a visão. Dentro das cantorias fala toda a parte da natureza. Fala o rio, fala a floresta…”, diz o artista em inglês, dando voz ao líder espiritual Siã Txaná Huibai, que identificamos facilmente por usar o toucado de penas maior, e que fala em português.

Com a estadia em Veneza, o objectivo do líder religioso e de Ninawa Inu Huni Kui, presidente da Federação do Povo Huni Kui do Estado do Acre, é acelerar “o processo de auto-afirmação da tradição”: "Manter a nossa cultura viva, o nosso território preservado, fazer a expansão da nossa espiritualidade e [conseguirmos] nos auto-representar."

Com Neto, “um irmão que os tem ajudado a sobreviver”, planeiam mesmo elaborar uma “carta em defesa dos povos indígenas” e levar os outros artistas da bienal a assiná-la. “A exposição do artista Ernesto trouxe-nos a nós, um dos 305 povos que temos no Brasil ainda, mas as outras nações vão ficar também muito felizes”, explica ao PÚBLICO Ninawa Inu, que quer dizer “homem da floresta”.

Se à primeira vista o trabalho de Ernesto Neto não mudou muito, continuando a apresentar uma dimensão lúdica, é inegável a sua tensão política quando se fala da preservação da floresta amazónica contra a pressão do agronegócio. O “irmão” Ernesto, que seguiu o seu caminho para outras entrevistas, chegou junto da comunidade huni kuin há três anos, altura em que “conectou com a jibóia” e estabeleceu com os indígenas “esta parceria contra a despossessão da terra”.

Mesmo ao lado, podemos entrever o trabalho da única artista portuguesa representada na exposição comissariada por Christine Macel, Leonor Antunes, que ocupa o corredor central de uma das duas salas do Pavilhão da Tradição, também com uma grande escultura-instalação. A estes dois pavilhões, há a acrescentar outros capítulos, como o Pavilhão Dionisíaco ou o Pavilhão das Cores, numa curadoria feita a pensar nos artistas e nas suas práticas, segundo Christine Macel, e com uma mensagem que não põe o político no centro, ao contrário da bienal anterior.

Da Alemanha à Finlândia

O Leão de Ouro da Bienal de Veneza para a melhor participação nacional foi atribuído à artista Anne Imhof e ao Pavilhão de Alemanha, cuja arquitectura fascista foi cercada com uma vedação anti-motim.

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A alemã Anne Imhof deu ao seu país o Leão de Ouro da Bienal de Veneza para a melhor participação nacional ANDREA MEROLA/epa

Com um sabor sadomasoquista, o pavilhão só está completo à hora das performances. Não deixa de ser vertiginoso quando pisamos o vidro transformado em chão que substitui o pavimento agora elevado a 95 centímetros de altura, dando outra escala ao pavilhão, e imaginamos alguns performers presos debaixo dos nossos pés.

Foi também para a Alemanha o prémio para o melhor artista da exposição internacional: Franz Erhard Walther e as suas esculturas em pano feitas para serem vestidas (tem uma antológica neste momento no Museu Rainha Sofia em Madrid, comissariada por João Fernandes).

O Pavilhão do Brasil, com uma intervenção de Cinthia Marcelle, recebeu uma menção honrosa por um trabalho intitulado Chão de Caça, que tal como no espaço alemão altera a arquitectura original do pavilhão, criando um plano inclinado sobre o pavimento, onde se vão aprisionando pedras que a artista recolheu nos Giardini.

O júri da bienal, presidido este ano pelo director do Museu Rainha Sofia, o espanhol Manuel Borja-Villel, justificou o prémio por a instalação criar “um espaço enigmático e instável, que não nos deixa sentir em segurança”, “afrontando a problemática da sociedade brasileira contemporânea”.

Se depois do prémio, e no seguimento das declarações de Bruscky, Cinthia Marcelle não quis fazer comentários à situação política do Brasil, a artista, citada pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo, reconheceu que lhe passou pela cabeça recusar o convite para representar o seu país: “Não sou uma pessoa de muitos verbos, por isso trabalho com artes plásticas. A obra já diz tudo, só não vê quem não quer. Esse é o poder político da arte, que é um campo em acção.” O jornal relatou que antes de abandonar a cerimónia dos prémios Marcelle recomendou rasgar a página do catálogo em que aparece o nome do presidente Michel Temer.

Mas nem só de identidades que podem ser negativas vive o confronto em Veneza. A Finlândia mostra uma irreverente instalação de Nathaniel Mellors e Erkka Nissien, composta por um vídeo e uma escultura-animação, intitulada Os Nativos de Aalto, no pavilhão feito pelo próprio arquitecto Alvar Aalto (1898-1976). Os artistas abordam os clichés à volta da história da Finlândia e da identidade nacional, ao mesmo tempo que exploram temas que vão do nacionalismo à xenofobia. Toda a narrativa é mostrada num espaço feito por um dos heróis da arquitectura moderna, propondo também uma reflexão indirecta sobre a força e a sombra que estas figuras exercem sobre as gerações seguintes, criando as suas próprias mitologias.

Os Nativos de Aalto acaba por fazer ressonância no pavilhão português, que tal como na Bienal de Arquitectura de Veneza do ano passado regressa à ilha da Giudecca, situada mesmo em frente à praça de São Marcos, e a que se acede de vaporetto. José Pedro Croft foi o artista escolhido para representar oficialmente Portugal, com seis esculturas monumentais que usam a métrica de um edifício de Álvaro Siza (que tem em Aalto um dos seus heróis) actualmente em fase de conclusão.

Feitas de vidro colorido e espelhado, as esculturas de Croft reflectem o ambiente que as envolve e propõem-se como um mediador entre o nosso corpo e a arquitectura. Partem de Siza e contribuem para a mitologia do grande arquitecto português, afinal a figura com mais projecção da arte nacional.

O PÚBLICO viajou a convite da Swatch