Nasceu um festival para conhecer os jardins e hortas privados e semi-privados de Lisboa

Este sábado, um grupo de voluntários deu a conhecer os espaços desconhecidos e, às vezes, fechados a quem passa. Sobre cada um, contaram-se as histórias de quem deles cuida. Foi o Festival dos Jardins Abertos a lançar as suas raízes.

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À entrada do Beco do Alegrete há uma placa para que a história prevaleça sobre a memória que se perde. Esta foi a rua lisboeta mais florida em 1998. Consideração da câmara municipal e dos vizinhos. Dezanove anos depois, poucos são os cantos não cobertos de vasos, tantas vezes colados lado a lado. É ao centro, aliados com o corrimão que divide a escadaria, que o pequeno jardim “tem o seu ar de graça” tropical: uma bananeira, um abacateiro, um mamoeiro.

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À entrada do Beco do Alegrete há uma placa para que a história prevaleça sobre a memória que se perde. Esta foi a rua lisboeta mais florida em 1998. Consideração da câmara municipal e dos vizinhos. Dezanove anos depois, poucos são os cantos não cobertos de vasos, tantas vezes colados lado a lado. É ao centro, aliados com o corrimão que divide a escadaria, que o pequeno jardim “tem o seu ar de graça” tropical: uma bananeira, um abacateiro, um mamoeiro.

É isto que fascina Tomás Tojo nos jardins privados de Lisboa: “A diversidade, a espontaneidade com que estes jardins são criados e cuidados. Aqui, a manutenção é dos moradores”. Este sábado, o festival que Tomás criou, em conjunto com outros voluntários, levou um grupo de desconhecidos a visitar dez jardins privados e semi-privados da Baixa da capital. É a edição zero do Festival dos Jardins Abertos. E, no final, já todos se conhecem.

"Fazer isto é dar de mim à terra", é a expressão com que Sylvain resume o seu trabalho na horta da Cozinha Popular da Mouraria, na Graça. A tarefa é diária, "quase compulsiva e apaixonada". Nos três anos e meio que cultiva no talhão municipal, já teve ideias para tudo: o espaço limitou-lhe a intenção de tornar a cozinha comunitária autossuficiente, o sol queimou-lhe a possibilidade de cultivar o que queria. Depois de uma temporada só com legumes e frutos roxos, o especialista em agricultura biológica tem uma autêntica horta experimental para contrariar a secura e pobreza de nutrientes do solo. Em 50 metros quadrados, "concentra a diversidade": desde alcachofra e alfarroba, beterraba, alho francês a bagas de gogi, coentros vietnamitas e uma panóplia de chás.

Na maioria dos jardins, a visita é guiada por quem deles cuida. "São os seus donos que lhe dão a identidade", há-de repetir Tomás, que guia o primeiro grupo. Nenhum jardim é unipessoal. E isso nota-se no jardim vertical dos irmãos Raposo, na Praça das Flores, no jardim da D. Maria, ao cuidado do marido na Rua Nova da Piedade, e no Pátio dos Prazeres, gerido pelas vizinhas, porta-vozes de um espaço comum que cuidam em conjunto.

Esta edição do festival “é um teste”, diz Tomás Tojo. Ainda assim, tiveram mais de três mil inscrições. Só puderam aceitar 40. “A intenção do festival é ser intimista, pequeno”, explica o mestre em produção de arte, de 26 anos, que trocou os palcos pela sensibilização ambiental. Não só uma intenção, é uma imposição de alguns espaços.

Jardim da roupa branca

A empresa de confeitaria de Agapito Serra Fernandes entregava os biscoitos aos militares. Eram dezenas de pessoas ao seu serviço para servir quem se batia pelo país no final do século XIX.

Começava o XX e, entre a Rua da Graça e a da Senhora do Monte, o industrial construía o bairro Estrela D'Ouro para alojar os trabalhadores, com rendas mais baixas. Agapito queria um bairro “para os seus pobres”. E foi para onde se mudaram em 1909.

No centro do bairro estava a casa da família. Vivenda Rosalina, chamou-lhe o industrial. Dava-lhe o nome de uma das filhas, como deu o da esposa à rua Josefa Maria.

Hoje é o senhor Eduardo que abre o portão. Anda Shakira, a cadela, a saltar à volta das suas pernas enquanto o primeiro grupo de "festivaleiros" entra pelo portão verde da Casa de Nossa Senhora da Vitória, antiga vivenda. É ali que o percurso começa.

Tomás Tojo dá o mote: "Todos os jardins têm imprimidas as marcas dos seus donos. Este é um jardim que é o quintal da avó”. Rosas, estrelícias, calêndulas. Há chagas e papoilas de todas as cores. Do lado esquerdo, as janelas dos quartos ladeiam o jardim. Estão abertas em par, deixando ao vento as camisas de dormir: brancas, azuis ou cor-de-rosa claro. Pertences das 72 mulheres que vivem neste lar da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja da Vitória.

A seguir ao jardim, junto a um chafariz seco que forma a praça, há dois caminhos a seguir. O mais estreito encaminha-se por umas escadas curvas. No final, “um pequeno e privado [miradouro da] Senhora do Monte”, compara Tomás. Para o outro lado, umas escadas igualmente estreitas aterram numa horta florida, onde há legumes envolvidos em astromélias e as rosas surgem no meio de laranjeiras.

“O mais Versalhes que temos”

“Este é o nosso jardim francês, é o mais Versalhes que temos”. A comparação de Tomás Tojo deixa alguns “festivaleiros” desconfiados, mas a historiadora Ana Maria Prosérpio, da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, não tardava a confirmar. O título é para o jardim do Palácio da Independência, a espreitar o Rossio. Escondido - e fechado ao público - no primeiro andar do palácio, foi neste jardim que reuniram os conjurados que depuseram o domínio espanhol sobre Portugal, a 1 de Dezembro de 1640.

De facto, a Restauração da Independência é indissociável deste jardim. Começa no painel de azulejo que narra - numa versão romântica da história - os preparativos, o assalto ao Paço da Ribeira e a coroação de D. João IV, sob a benção divina. E reza a lenda que, durante a cerimónia de coroação, um dos braços que Cristo na cruz se soltou, legitimando divinamente a quarta Dinastia Portuguesa, da Casa de Bragança.

Nessa altura, o espaço era um denso arvoredo. “Era desgovernado”. No século XVIII, a família Almada - dona do palácio e do jardim até aos anos 40 do século passado - mandou construir os jardins de inspiração francesa, com buxos e um chafariz ao centro. “O jardim de hoje tenta imitar o terá sido nessa altura, sem muitas certezas do que isso foi”, explica a historiadora. As certezas dissiparam-se quando, no século XX, a Companhia do Gás e Electricidade propôs aos Almadas instalar ali uma transformadora eléctrica. Proposta aceite: foram edificados quatro andares e o jardim desapareceu. Já havia de ser recuperado nos anos 80, quatro décadas depois de o Estado ter comprado o edifício. Ainda que seja uma “tentativa de imitação um pouco cega, foi uma grande conquista para a cidade recolocar aqui os jardins secretos”, acredita Ana Maria Prosérpio.

O jardim encontra-se fechado ao público para protecção dos azulejos do mural, roubados ao longo dos anos. Pode ser visitado mediante marcação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Quem guia um jardim abandonado?

No Palácio do Marques de Pombal há dono, mas não há guia. O jardim, nas traseiros do palácio gerido pela empresa municipal EGEAC, está abandonado. Há cadeiras espalhadas, sem ordem, no descampado de erva seca. Algumas à volta de uma mesa de ferro, outras viradas umas para as outras. Uma cadeira de costas viradas mostra que alguém ali se sentou a olhar o chafariz já seco.

Incluir um jardim abandonado no festival era "uma necessidade", uma forma de mostrar o contraste dos usos que se podem dar à terra, seja ela mais ou menos privada. Uma próxima edição do festival não está prometida, mas guias e guiados quiseram este sábado plantar a promessa de voltar. Ao longo das mais de seis horas de passeio, foram várias as sugestões dos "festivaleiros" que aumentaram a lista de jardins. Há em Lisboa, um festival a criar raízes.