Changri-Lá com C de Carlos

Pensamos em Carlos Alberto Vidal e associamo-lo imediatamente ao célebre Avô Cantigas, mas há vida para além dessa personagem que criou há 35 anos. Há, por exemplo, um disco de 1976 chamado Changri-Lá, obra única, messiânica, de rock e muitas coisas mais. Um clássico agora reeditado.

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O ano é 1976. Meia década depois, a sua vida mudaria para sempre. Não de um dia para o outro, mas pouco a pouco até ele, aos olhos do público, se tornar outro. Até ele, sem o imaginar, descobrir a personagem que seria o seu rosto até ao dia de Abril de 2017 em que o encontramos na mesa de um café em São Pedro do Estoril. Carlos Alberto Vidal é o seu nome e era então, em 1976, o seu nome artístico. Conhecemo-lo melhor pelo outro que assumiu há 35 anos no palco do Passeio dos Alegres comandado por Júlio Isidro, provavelmente o mais famoso programa da televisão da época. Passava na RTP1 e fora pensado para todos. Consequentemente, teria que haver espaço para tudo. As revelações das novas bandas, as variedades, o humor. Coisas para os mais velhos e coisas para os mais novos (é aqui que entra Carlos Alberto Vidal, perdão, Avô Cantigas, esse mesmo).

Quem não conhece a história, conhece a personagem: o cantor idoso que começou por ser “um velho patusco que andava curvado, devagarinho, e que falava lentamente”, e que, mantendo as rugas e o cabelo grisalho, foi endireitando as costas e começando a ser mais ágil que patusco. Não deixou de ser avô, claro que não, mas frágil também não é certamente. De Vitaminas, nos anos 1990, a Fantasminha Brincalhão, grande sucesso atingido já no século XXI, da caracterização à antiga à maquilhagem digital, eis um Benjamin Button musical português que canta hoje em dia, quando a personagem cumpre 35 anos de carreira, não só para as crianças, mas também para os pais que o ouviram quando ele já era Avô e quando eles ainda estavam muito longe de sonharem ser pais. Dizíamos então que, meia década antes de inventar o Avô Cantigas, Carlos Alberto Vidal não imaginava que tudo isto que descrevemos lhe iria acontecer.

Tão improvável como Portugal ganhar a Eurovisão com uma canção doce, assim meio valsinha, meio Disney, seria saber que o Avô Cantigas nascido nos anos 1980, gravou nos anos 1970 um álbum de folk psicadélica, rock progressivo e outras coisas mais, chamado, imaginemos um título inesperado, Changri-Lá. Improvável, correcto? Ora, acontece que esse álbum existe mesmo. Foi editado em 1976 pela extinta Imavox e recuperado quatro décadas depois por uma novíssima editora, a Babilónia [ver caixa]. É por essa razão que partilhamos a mesa de um café com Carlos Alberto Vidal. “Ando há 45 anos a fazer coisas que as pessoas têm recebido de braços abertos, sendo que a maior delas é o Avô Cantigas. Mas como há vida para além do défice, também há vida para além do Avô Cantigas”. Quanto a isso, não tenhamos dúvidas.

O que é o universo e o que somos nós

De cabelo e barba compridos, ele emergia, messiânico, do azul de um mar com cor de céu, sol a descer sobre o oceano. O ano é 1976. O cenário é o do seu Changri-Lá, álbum único no seu percurso e uma pérola por celebrar da música portuguesa. Cantava assim: “Aqui, onde respiro amor / Aqui, Maharaj-Ji”. Cantava: “Nós, somos a força que traz / Em cada homem, a paz / Em cada homem, a flor”. Era Carlos Alberto Vidal aos 22 anos, no disco que representa um momento único para ele e para todos os que o gravaram. Nada semelhante fizera antes, nada igual fez depois. Changri-Lá ficou preservado como documento do que era o seu autor naquele preciso momento, “muito jovem a olhar o céu e a tentar compreender o que são as estrelas, a distância a que estão, o que é o universo e o que somos nós”.

Entre os Meninos de Deus cantando o salvador pelas ruas de Cascais, ou seja, jovens hippies, estrangeiros e livres, de quem se tornaria amigo, e Maharaj-Ji, guru despertando novas espiritualidades desde os Estados Unidos, via Índia, via meditação, que ouviu atentamente numa sessão realizada à época em Portugal, Carlos Alberto Vidal criou o seu próprio Shangri-La. Muito seu, como o título do álbum atesta. “Um Changri-Lá único, um Changri-Lá com c de Carlos”, como lemos no texto incluído na reedição em vinil da obra. Teve vida breve em palco e não ficou registado com destaque na historiografia oficial. Mas a sua música, onde voz e melodia de cantautor se cobre da electricidade do rock progressivo, arrisca passos de funk e psicadeliza a canção popular, sobreviveu.

Coleccionadores e interessados na história submersa da música popular urbana tiveram-no sempre sob mira. É uma raridade valiosa e procurada – exemplares da edição original estão à venda em plataformas como o eBay ou o Discogs por valores nunca inferiores a 100 euros e que podem atingir seis vezes esse valor. Quarenta anos depois, voltamos a ele, boa culpa da jovem editora que o escolheu como primeira edição do seu catálogo. Porque Avô Cantigas é Carlos Alberto Vidal, mas Carlos Alberto Vidal é muitas coisas. Changri-Lá é uma delas. Uma preciosidade fugaz, ainda especial.

Nem todos têm que partir para a luta na rua

Nascido na Lousã a 14 de Setembro de 1954, desperta para a música com o avô, membro da banda filarmónica local. Os acordes de guitarra são aprendidos no liceu, já na vila para onde se mudara, Cascais. Aprende-os para tocar a música dos Beatles, de Simon & Garfunkel, de Chico Buarque ou Caetano Veloso. Enquanto isso, acordava também para a nova música portuguesa criada pelos inevitáveis José Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho. Paralelamente às versões que ia apresentando nos bares e hotéis da sua zona, procurava expandir a sua criatividade em composições da sua autoria. Duas são gravadas em maquete  e chegam ao Rádio Clube Português, em cujo seio fora criada a editora Imavox. A carreira arrancava.

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Em 1973, edita As Filhas da Tia Anica, “uma canção popular satírica”, recorda, “sobre a pouca liberdade que era dada às mulheres, sempre demasiado protegidas e postas debaixo das saias da mãe” – Maria noite e dia é o lado B. No ano seguinte, em Março, revolução a um mês de distância, surge o segundo single, Bom Dia, Senhor Alberto – lado B, Teu corpo de mulher. Eram ambos compostos por originais com “produção irrepreensível de José Calvário [o grande maestro e orquestrador português, que morreu em 2009]”, então em início de carreira e “garantia de uma qualidade a toda a prova”.

As canções não tornaram Carlos Alberto Vidal famoso, tornaram-no, distingue, “popular”. “Era então o cantor Carlos Alberto Vidal, que passava na rádio, que começou a fazer os seus programas de televisão e os seus primeiros espectáculos”. Tinha 19 anos e estava a chegar uma revolução que transformaria para sempre o país. Carlos Alberto Vidal viveu-a e aproveitou-a. Mas, “introspectivo”, procurava respostas dentro de si. “Nunca fui um activista no sentido sociopolítico do termo, embora tivesse grande apreço por essa corrente e pelos que a constituíam. Mas, do ponto de vista espiritual, andava noutra e não vejo mal nenhum nisso. Nem todos têm que partir para a luta na rua”. As questões que punha perante si e as respostas que arriscou demorariam dois anos a ser reveladas em música.

O sucesso dos singles anteriores leva a que a Imavox ceda aos seus desejos de gravar um álbum. Este, porém, seria diferente dos anteriores. Seria obra saída da sua lavra, sem produção ou orquestrações criadas exteriormente à sua criatividade. “É talvez um disco mais verdadeiro, nesse sentido. Aquilo que soa e aquilo que diz é como uma fotografia de um período da minha vida, sem Photoshop”. É-o musicalmente, explica: “estávamos nos anos 1970 e havia todo um boom musical, com o rock e a pop, os Beatles ainda a sentirem-se, pelo qual me deixei influenciar esteticamente. Todo um encantamento fantástico que me fez compor de forma muito livre”. É-o de uma forma mais profunda, continua a explicar: “É um disco muito virado para dentro, com canções que reflectem experiências que tive na altura e que buscavam um modelo interior que, de certo modo, era até um pouco religioso”. Mas uma religiosidade aberta, sem religião definida.

Os ensinamentos do Cristo hippie dos Meninos de Deus e a espiritualidade oriental de Maharaj-Ji “eram mundos que se tocavam de forma profunda”, refere. “Estavam era embrulhados de outra maneira e com personagens diferentes”. Cita uma canção específica do disco, Venho por Cristo dizer, para ilustrar aquilo que procurava transmitir. “É uma canção dedicada à procura interior de um mundo desejavelmente perfeito. Acredito que seja uma utopia, mas também sei que nos é bom pensar nessas questões”. Este não era, definitivamente, o cantor Carlos Alberto Vidal da canção popular satírica. Temos o sax que chora sobre a melodia da guitarra acústica, encontro que é de trovador português e podia ser de semba angolano. Temos a voz que surge para cantar no alto, sax ainda no seu lamento, piano a dançar melancolias jazz, e a voz que continua:  “Assim vestido, sem medo / Acredito agora no dever espalhar / esta liberdade, de te ver amar / Acredito agora nesta luz sem fim / tão dentro, dentro de mim”.

Uma família temporária

Numa vivenda em Carcavelos, Carlos já não se lembra de quem – “alguém conhecia alguém que tinha aquele espaço onde se ensaiava para os bares e festas de finalistas” –, reuniu-se durante alguns meses uma família temporária. O braço-direito de Carlos era Mané, teclista. Foi ele, músico numa banda dedicada ao circuito dos tais bares e bailes de finalistas, que reuniu o restante grupo: Necas (bateria, cujo currículo inclui os Ananga-Ranga ou a Banda Atlântida de Lena d'Água), Rakar, (baixista), Correia Martins (guitarra e violino, mais tarde ligado à composição e orquestração para teatro de revista, já falecido), Rui Cardoso (sopros, também ligado ao teatro de revista, e ao Hot Clube, já falecido), Zé Alberto (harmónica). A convite de Carlos Alberto Vidal, surge o pianista Nuno Pimentel, compositor da canção que encerra o álbum, Nascer. E, porque havia realmente algo de familiar, de íntimo, em todo o processo, os coros são assegurados pela namorada de Carlos, Maria Luísa, ou pelo próprio A&R da Imavox, Rogério Barroso.

Dos encontros regulares na vivenda foram nascendo canções como Corpo de mulher sem mal, digressão de rock progressivo guiada pela força dramática do órgão e da voz de Carlos Alberto Vidal e pela bateria propulsiva. Nasceu uma encantatória canção de embalar, Luísa vai para a escola, ou a trepidante O meu nome somos nós (Maharaj-Ji), com balanço a caminho da soul. “Foi uma experiência maravilhosa”, define Carlos Alberto Vidal. “Gostava do Changri-Lá e na altura não lhe via defeitos nenhuns. Hoje não o vejo assim, estou mais refinado e acho que podia tê-lo cantado melhor. Mas tinha fé naquele trabalho. Achava que era um sonho que me estava a acontecer. Estava a poder divulgar algo que fazia verdadeiramente parte de mim e que se estava a transformar na minha profissão e no meu modo de vida. Confirmou que o meu caminho podia ser aquele”. O seu caminho foi a música, como sabemos. Mas não exactamente a de Changri-Lá.

A vida de palco foi breve. Acompanhado por uma banda onde, de entre os músicos participantes nas gravações, encontrávamos apenas o teclista Mané, Carlos Alberto Vidal levou Changri-Lá a cidades como Lisboa, Porto, Coimbra ou Setúbal. Não era o único nome em cartaz. Era, aliás, o segundo nome em cartaz. Tendo em conta a natureza das canções messiânicas de Changri-Lá, imaginávamo-las unidas às dos Tantra, banda-charneira do rock progressivo português que se estrearia em 1977 com o álbum Mistérios & Maravilhas, ou às do José Cid sinfónico, que preparava o EP Vida (Sons do Quotidiano) e o célebre 10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte. E achamos que teriam ficado muito bem enquadradas como suporte de uma digressão dos Genesis, que em 1975 haviam dado um concerto histórico no Pavilhão Dramático de Cascais, de uns King Crimson ou de uns Procul Harum. Pois não aconteceu nada disso. Changri-Lá foi apresentado ao público português em concertos partilhados, imagine-se, com a estrela juvenil belga Art Sullivan, à época popularíssimo em toda a Europa (Petite demoiselle, um dos seus êxitos, fora editado em 1976).

Não era claramente a melhor parelha, mas Carlos Alberto Vidal não guarda na memória quaisquer sinais de perplexidade por parte do público. “Os meus dois primeiros discos tinham começado a transformar-me num cantor ligeiro de cariz popular e a minha popularidade levou-me a toda a gente. Isso é que é ser popular, conseguir que aqueles que têm apreço por outros tipos de música aceitem outra que, não sendo a sua preferida, acabe por diverti-los também. Digamos que eu já estava na graça das pessoas, depois tentei ser engraçado e as pessoas acharam piada e gostaram das canções”. Com esse inesperado encontro entre “um Julio Iglesias das adolescentes” e um Carlos Alberto Vidal procurando iluminação em rock ambicioso, terminava a aventura Changri-Lá. “Foi uma experiência sem continuidade. Houve a separação dos músicos e nunca mais repeti uma produção daquele tipo”. Algo permanece, porém. Mané, braço-direito na criação do álbum, continua presença regular na vida de Carlos Alberto Vidal. Não de uma forma musical, entenda-se. Mané é o Dr. João Olias. “O meu querido otorrinolaringologista”, sorri.

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Mergulho numa piscina com outra água

O passo seguinte na carreira foi “um mergulho numa piscina com outra água”. A Imavox fecha portas e Carlos Alberto Vidal muda-se para a Orfeu, onde grava com o maestro Shegundo Galarza “música de âmbito mais ligeiro”. Nova mudança irá conduzi-lo à Polygram e a um som mais pop – mas também a levar Pensamento a um dos quatro Festivais da Canção em que participou e a gravar, em 1981, A cantiga do chouriço, tema que, diz divertido, “caía que nem ginjas no repertório do Quim Barreiros”. Enquanto vai dando conta desta diversidade de géneros e registos, há-de parar e lançar a pergunta: “Que raio de músico sou eu afinal?”. Acto contínuo, diz não conseguir encontrar resposta satisfatória. “Consigo estar em vários cenários e sentir-me muito bem em todos eles”. O Avô Cantigas seria “apenas” mais um.

Júlio Isidro desafiara-o a compor algumas canções para programas televisivos infantis, enquanto músico convidado, e a experiência corre-lhe bem. Entretanto, amigos de Cascais, a dupla de palhaços Croquete e Batatinha, chamam-no para se juntar, enquanto actor e cantor, ao elenco de uma série que se estrearia na RTP em 1981. “Tinha uns grandes bigodes, uma grande pança e era assim, a interpretar o dono de um restaurante, que cantava para as crianças”. Um ano depois, chega o Passeio dos Alegres e nascia o Avô Cantigas. Nascia uma “super-estrela”: “Já era um nome famoso e fazia os meus espectáculos do Algarve ao Minho, mas fiquei famoso como nunca tinha sido até então”. O primeiro disco enquanto Avô Cantigas é um sucesso, o segundo torna-se obrigatório e assim sucessivamente (até hoje).

Changri-Lá, momento único preservado em disco, começava a ficar mais longe na memória. Até que surge o contacto de André Costa Gomes, fundador da Babilónia. Diz-lhe o quanto admira o disco, dá-lhe conta do estatuto de culto que ganhou e explica que o quer disponibilizar novamente ao público. Carlos Alberto Vidal, que trabalhava no próximo álbum enquanto Avô Cantigas, que será editado este ano, coincidindo com os 35 anos de carreira da personagem nascida em 1982, aceita com entusiasmo. Disco reeditado, disco ouvido novamente, motivações e questões nele abordadas recordadas, dirá ao P2 num dia ventoso de Abril de 2017. “Passaram quarenta anos e aqueles assuntos ainda estão por resolver em mim. Nesse aspecto, a vida é uma procura constante”.

Podemos ouvir Changri-Lá novamente, mas ainda não chegámos lá. Sabia que o Maharaj-Ji, hoje com 58 anos, ainda vem a Portugal de quando em vez ensinar os seus métodos de meditação? Continuemos a procurar. Que se rode o disco novamente.