Crescemos 20 centímetros com a vitória na Eurovisão, mas encolhemos metro e meio nos últimos anos
Os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso.
Isto de ser desmancha-prazeres não é propriamente muito agradável, mas lá terá de ser. A Pátria está mais uma vez a atravessar um espasmo nacionalista por causa da vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Isto é por surtos, agora vai haver 15 dias de celebrações, cheias de grandes frases, cheias de peito feito, por parte de quase toda a gente que nem sabia que Salvador Sobral existia. Como agora se diz, “as redes sociais fervem”, e, quando elas “fervem”, a comunicação social, que devia ser menos excitável, perde o equilíbrio. Subitamente tudo parece possível, o interesse pelo português sobe em flecha, o lirismo passa a receita universal, Portugal é o maior, e duas pessoas, os irmãos Sobral, passam do anonimato para heróis nacionais. É bom, é cómodo para toda a gente, mas, com a excepção dos irmãos e de quem os ajudou e apoiou, este sucesso tem a característica habitual do modo como nos “auto-estimamos” com o trabalho e a dedicação dos outros, ou seja, sem trabalho próprio, sem esforço — cai-nos no céu. É por isso que é politicamente útil e utilitário, porque civicamente barato e psicologicamente agradável.
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Isto de ser desmancha-prazeres não é propriamente muito agradável, mas lá terá de ser. A Pátria está mais uma vez a atravessar um espasmo nacionalista por causa da vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Isto é por surtos, agora vai haver 15 dias de celebrações, cheias de grandes frases, cheias de peito feito, por parte de quase toda a gente que nem sabia que Salvador Sobral existia. Como agora se diz, “as redes sociais fervem”, e, quando elas “fervem”, a comunicação social, que devia ser menos excitável, perde o equilíbrio. Subitamente tudo parece possível, o interesse pelo português sobe em flecha, o lirismo passa a receita universal, Portugal é o maior, e duas pessoas, os irmãos Sobral, passam do anonimato para heróis nacionais. É bom, é cómodo para toda a gente, mas, com a excepção dos irmãos e de quem os ajudou e apoiou, este sucesso tem a característica habitual do modo como nos “auto-estimamos” com o trabalho e a dedicação dos outros, ou seja, sem trabalho próprio, sem esforço — cai-nos no céu. É por isso que é politicamente útil e utilitário, porque civicamente barato e psicologicamente agradável.
Ninguém o disse melhor que o senhor Presidente da República, que afirmou que “a vitória na Eurovisão deu 'mais 20 centímetros' aos portugueses” (cito o PÚBLICO). Sim, excelente, andamos todos com mais 20 centímetros, mas onde é que está o metro e meio que perdemos como nação há 20 anos para cá, com a perda de poderes do Parlamento português, com a assinatura de tratados como o Orçamental, com a subjugação a um modelo de crescimento medíocre em nome das “regras europeias”, com acordos como o Acordo Ortográfico, que fez proliferar as normas da ortografia do português, em vez de as unificar, ficando nós com a mais pobre, com os cortes no ensino da língua e da projecção da cultura, com a ênfase na diplomacia económica e o definhar das instituições como o Instituto Camões?
O mais grave de tudo é que os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso. Foi o resultado de uma política de dolo que a União Europeia usou, com destaque para ao Tratado de Lisboa, que tirou às escondidas e sem debate público poderes que ninguém conscientemente deu à União, em detrimento da soberania nacional, foi o resultado dos desastres de Sócrates que nos levaram ao resgate e da política para forçar eleições em 2011 do PSD, foi o resultado da nossa apatia cívica face ao que é verdadeiramente importante, em contraste com as excitações futebolísticas. Foi o resultado de um sistema político no qual a dimensão cultural, histórica e expressiva da língua e da sua ortografia foi deitada ao lixo, por uma espécie de engenharia diplomática que se revelou um desastre, ficando todos pior do que o que estavam.
Nós gostamos da vida fácil, anómica, civicamente alheia e, salvo raras excepções, não somos voluntários para quase nada, não temos causas a não ser as mediáticas nestes surtos, somos mais clubistas do que patrióticos, deixamos estragar o que de bom ainda temos, mostramos uma indiferença egoísta face ao trabalho dos outros, a quem atribuímos sempre más intenções, exibimos a nossa ignorância com cada vez com mais arrogância, possuímos a atitude da aldeia, punindo a iniciativa, porque há sempre alguma coisa que está mal, e depois vampirizamos, para alimentar a nossa “auto-estima”, o trabalho e o mérito alheio. Há razões sociais para ser assim, a mais importante é que somos muito mais pobres do que aquilo que pensamos que somos, e temos um caminho ainda longo até termos essa força cívica que faz as nações fortes. Se fosse assim, não “engolíamos” o que engolimos, por inércia, por preguiça, ou porque protestamos pouco e mal.
Eu não tenho muitas ilusões sobre o que ocorreu nos anos imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Sei o papel que tinham estudantes que se descobriam proletários e como muitas organizações com nomes pomposos e revolucionários eram uma inexistência e, acima de tudo, nem eram “de trabalhadores”, nem “populares”, muito menos “proletárias”. Sei também do autoritarismo que percorria muitas ideias políticas, do enorme machismo e sexismo existente, das inúmeras ficções, teatros e enganos desses anos do final da década de 70. Mas estou neste momento a organizar mais de mil fotografias desses anos tiradas por militância e não pela arte da imagem, e que só em parte tinham intenção documental. E essas fotografias revelam um momento excepcional da vida portuguesa, menos político do que pensávamos na altura, mas mais social, altruísta e, à falta de melhor palavra, esperançoso. De facto, o passado é um país estrangeiro.
Numa das fotos, um operário da construção civil conserta o telhado de uma casa ocupada para uma associação popular. Percebe-se que sabe o que faz, não é um estudante trasvestido de operário. Veste pobremente, usa bóina e tem os sapatos certos para andar em cima de um telhado. Está a trabalhar de graça, talvez pela causa que iria dar nome à casa ocupada, talvez porque arranjou novos amigos e uma forma de companhia a que nunca tinha tido acesso, ou talvez porque sentia que o seu trabalho tinha uma dignidade diferente. Ou talvez por coisa nenhuma, mas estava. Noutra fotografia, uma mulher de bata, que se percebe ser igualmente pobre, talvez dona de casa, talvez operária, talvez trabalhando na limpeza, rega umas plantas envasadas em latas, também numa associação popular, daquelas que proliferaram nesses anos. Talvez ela apenas gostasse de flores e lhe custasse o desprezo a que, em nome da revolução, eram votadas, talvez já as regasse antes e não queria que morressem. Seja o que for. Estas faces e estes corpos teriam certamente as mais genuínas das emoções pela vitória de Salvador Sobral na Eurovisão. Mas não se ficavam por aqui, tinham algumas esperanças que nós não ousamos ter. E temo que os espasmos nacionalistas com as canções e com o futebol tenham ocupado algumas dessas esperanças, transformando-as em egoísmos.
Nunca me esqueci de um dos mais notáveis ensaios de E. P. Thompson sobre um livro de George Orwell, chamado The Road to Wigan Pier. Thompson refere a profunda empatia que Orwell tinha perante uma visão fugaz da tristeza e solidão de uma mulher num dos subúrbios operários do Norte de Inglaterra, apanhados pela Depressão e pelo desemprego. É para esse olhar e para o “movimento” da atitude de Orwell que me volto nestes dias como antídoto para a facilidade e para o facilitismo social, para as profundas perdas de dignidade e soberania, de liberdade e autonomia, que aceitamos todos os dias por preguiça mediatizada, por “auto-estima” de plástico. Tenho consciência de que há muitas contradições, ou sentidos contraditórios, neste artigo. Às vezes é assim.