O fim do movimento
É preciso dizer que o espectáculo dado por certa elite do PS francês não é caso único por essa Europa fora. Não é necessário chegar a abandonar os partidos sociais-democratas, socialistas ou trabalhistas para se ter desistido do pleno emprego e do Estado-Providência.
Em 1994, o historiador britânico Perry Anderson sintetizava a evolução da social-democracia europeia: “Outrora, nos anos fundadores da Segunda Internacional, tinha por objectivo o derrube do capitalismo. Depois tentou realizar reformas parciais concebidas como passos graduais para o socialismo. Finalmente, passou a ser favorável ao Estado-Providência e ao pleno emprego no quadro do capitalismo. Se agora aceita a destruição do primeiro e o abandono do segundo, em que tipo de movimento se irá tornar?”
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Em 1994, o historiador britânico Perry Anderson sintetizava a evolução da social-democracia europeia: “Outrora, nos anos fundadores da Segunda Internacional, tinha por objectivo o derrube do capitalismo. Depois tentou realizar reformas parciais concebidas como passos graduais para o socialismo. Finalmente, passou a ser favorável ao Estado-Providência e ao pleno emprego no quadro do capitalismo. Se agora aceita a destruição do primeiro e o abandono do segundo, em que tipo de movimento se irá tornar?”
Quase um quarto de século depois, temos agora uma resposta definitiva, em França, pela boca de Manuel Valls, um antigo Primeiro-Ministro no desgraçado quinquénio de François Hollande, feito de austeridade, de redução de direitos laborais por decreto, de desemprego de massas: o movimento de que falava Anderson, neste caso o Partido Socialista francês, está “morto”. De forma oportunista, Valls foi um dos que abandonou o partido para cuja morte contribuiu, tentando agarrar-se ao plástico político que flutua no meio do naufrágio, o por agora triunfante e bem financiado Macron. A verdade é que se a contestação social do movimento popular não for bem-sucedida na resistência ao choque que se avizinha, a fórmula “Macron 2017 = Le Pen 2022” corre o risco de se confirmar.
Entretanto, é preciso dizer que o espectáculo dado por certa elite do PS francês não é caso único por essa Europa fora. Não é necessário chegar a abandonar os partidos sociais-democratas, socialistas ou trabalhistas para se ter desistido do pleno emprego e do Estado-Providência. Pensemos, por exemplo, no agente da finança europeia que dá pelo nome de Jeroen Dijsselbloem, reduzindo o Partido Trabalhista nas legislativas holandesas a um resultado residual. De resto, este foi um resultado semelhante ao obtido nas presidenciais pelo inapto socialista francês Benoît Hamon. Este último confirmou que a americanização da política por via de primárias e modismos intelectuais sem ancoragem nem futuro popular, como o Rendimento Básico Incondicional ou um europeísmo dito progressista, não são a resposta para o declínio.
As causas profundas deste declínio radicam na impotência democrática do Estado-Nação, onde a social-democracia havia conquistado o que ainda merece ser defendido pelas classes trabalhadoras. Esta impotência é o resultado da grande aposta que marcou a viragem da social-democracia a partir dos anos oitenta: o aprofundamento da integração europeia, que culminou no Euro, o outro nome da globalização financeira mais constrangedora, desenhado para impedir políticas keynesianas e para impor os custos das crises sobre os salários directos e indirectos, transformados nas variáveis de ajustamento. Foi esta integração que em última instância destruiu a social-democracia.
A responsabilidade também tem de ser assacada, por isso, a líderes “socialistas” franceses anteriores, como François Mitterrand ou Jacques Delors, que tiveram as maiores responsabilidades na construção do mercado único e do Euro no período decisivo que vai da segunda metade dos anos oitenta aos anos noventa. Tendo sido eleito Presidente, em 1981, com um programa ambicioso de reformas na estrutura do capitalismo francês, entendidas como passos graduais para o tal socialismo, incluindo nacionalizações, e com uma aposta na política económica de pleno emprego e de direitos do trabalho, Mitterrand foi confrontado com um dilema pela pressão dos especuladores. Em 1983, ano da abdicação total do seu programa, confidenciava ao seu conselheiro Jacques Attali, actual apoiante de Macron: “Estou dividido entre duas ambições: construir a Europa e instituir a justiça social. O SME [Sistema Monetário Europeu] é necessário para alcançar a primeira, mas limita a minha capacidade para alcançar a segunda”. A viragem para a austeridade e para o Franco forte ganhou dentro do governo, graças, entre outros, ao Ministro das Finanças, um tal de Jacques Delors, precisamente em nome da construção europeia à qual o SME estava vinculado. A alternativa exigia rupturas, na altura comparativamente mais fáceis.
Tendo desistido na prática da escala nacional, estes dirigentes julgaram que a social-democracia poderia ser reinstituída na escala europeia, partilhando o poder monetário com a Alemanha. E isto se acreditarmos na sua boa-fé. Na pior das hipóteses, viram na escala supranacional uma forma de impor às classes trabalhadoras francesas uma disciplina de política económica de pendor ordoliberal alemão. Seja como for, a lição é hoje clara para todos os sociais-democratas: não se recupera na escala supranacional os instrumentos de política económica de que se abdicou na escala nacional. A França foi colocada numa moeda desenhada em função dos interesses dos exportadores e financeiros, sobretudo alemães, sendo esta largamente responsável pelo seu declínio económico e político relativo face a uma economia alemã cada dia mais hegemónica.
A Frente Nacional floresce neste contexto. Na realidade, a tragédia começa com Mitterrand. A tragédia foi toda uma elite francesa, cujas impressões digitais estão no movimento de liberalização financeira com escala europeia, que impôs o poder da finança. Hollande foi só a mais recente farsa. Todos os que se mantiverem vinculados a esta integração vão pelo mesmo caminho nas ainda mais fustigadas periferias, como comprovou na Grécia essa repetição de tragédia e de farsa, em sequência acelerada, chamada Syriza.
No entanto, há esperança de que a história não seja mera repetição, já que pode ser também novidade. Em França, há ainda quem não tenha esquecido que tudo começa pela recuperação da soberania nacional, popular e democrática, na reinvenção da melhor tradição da insubmissão com mais de dois séculos, que sempre meteu medo aos poderosos. Jean-Luc Mélenchon encarnou esta novidade, obtendo os melhores resultados para o seu campo desde o final dos anos sessenta, rompendo com o europeísmo que matou o socialismo europeu. A França Insubmissa é aí o reinício do movimento, que recomeça pelo pleno emprego, pela defesa do Estado social, pela reconversão ecológica da economia e pela recuperação para a escala onde está a democracia, mesmo que imperfeita, dos instrumentos de política entretanto perdidos por uma social-democracia em declínio. Não está só, já que há formas de nacionalismo cívico que são internacionalistas porque são anti-imperialistas.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais