A América no espelho de James Baldwin

Raoul Peck fala sobre Eu Não Sou o Teu Negro: a longa e meticulosa aventura de pôr em imagens, sem filtro nem intérprete, as palavras e as visões que o pensador negro americano deixou num magnum opus inacabado sobre o seu país.

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Ponto de ordem à mesa: Raoul Peck sabe que é muito complicado ser visto como um cineasta tout court e que o seu cinema vai ser sempre visto primeiro como político e só depois, se tanto, como cinema.

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Ponto de ordem à mesa: Raoul Peck sabe que é muito complicado ser visto como um cineasta tout court e que o seu cinema vai ser sempre visto primeiro como político e só depois, se tanto, como cinema.

Exemplo prático: estamos em Berlim, onde o realizador haitiano tem dois filmes fora de concurso: um é O Jovem Karl Marx, biopic tradicional de Marx e Engels centrado nos dias de juventude das duas figuras tutelares do comunismo; outro é Eu Não Sou o Teu Negro, o seu ensaio/documentário a partir de um magnum opus inacabado de James Baldwin (1924-1987) que nunca passou de 30 páginas de apontamentos. Meados de Fevereiro, e Peck está em “alta” — Eu Não Sou o Teu Negro tornou-se uma sensação nos Estados Unidos, trazendo à superfície a questão racial que tanto tem preocupado os pensadores americanos nos últimos anos (e inserindo-se na redescoberta de James Baldwin actualmente em curso), e é apontado como grande favorito ao Óscar de Melhor Documentário (que, poucos dias depois, perderia para O.J. Made in America).

Nos encontros com a imprensa a que o PÚBLICO assiste — que Peck mantém separados para cada filme, para que O Jovem Karl Marx não seja “afogado” pelo interesse natural no filme sobre Baldwin —, fala-se mais de política, de sociedade, de cidadania, do que propriamente de cinema. Quando perguntamos sobre o processo de construção de Eu Não Sou o Teu Negro, sobre o longo e paciente trabalho de pesquisa e montagem de material de arquivo e do próprio texto de Baldwin, lido por SamuelL. Jackson numa voz off que se mantém constante ao longo de 90 minutos, os olhos do cineasta iluminam-se.

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Eu Não Sou o Teu Negro é também uma história iconográfica da América compilada por Raoul Peck ao longo de mais de uma década de trabalho Vittorio Zunino Celotto/Getty Images

“As pessoas nunca me perguntam sobre a minha abordagem cinematográfica, e essa tem sido sempre a questão… A minha abordagem tem sempre sido filmar para o máximo de público possível, mas sempre dizendo coisas nesse processo. Nunca vi a forma e o conteúdo como contraditórios.

Cheguei ao cinema como alguém politicamente engajado e nunca quis ter estrelas, contar histórias glamorosas, filmar comédias românticas ou histórias de terror. A política era o meu modo de me expressar, de lutar, e também de reconquistar o controlo sobre a minha narrativa. Quando digo que Eu Não Sou o Teu Negro levou dez anos a fazer, na verdade levou dez mais os 30 que ficaram para trás. Levou toda a minha vida, a minha experiência e a minha visão do cinema de Hollywood, que comecei a ver quando era muito novo e que acabei por descobrir ser uma mentira que não correspondia à minha narrativa. Quando era miúdo, não via a minha imagem no écrã, não via a minha história ou o meu mundo. E o cinema foi por isso sempre algo que levei a sério como arma, como instrumento de mudança. Não estou a fazer reportagem; estou a fazer um filme com uma ambição cinematográfica, uma mistura de impulsos diferentes que tento juntar de modo criativo. Dentro das regras, entenda-se: aceito as convenções, mas também sei que as posso moldar, que as posso trabalhar.

Todos os meus filmes foram tentativas de encontrar uma forma artística para transmitir coisas importantes. Este filme em particular é o resultado de todas as experiências que fui fazendo. E soube sempre que ia ter de inventar uma forma. Não posso fazer uma coisa estritamente cronológica com James Baldwin, que é uma personalidade tão rica, com tantas camadas, tantas possibilidades…”

É por isso que Peck parece ser o cineasta ideal para ilustrar as palavras de um escritor que também não se revia nas imagens que a sociedade americana perpetuava sobre si própria, nas construções de um “sonho americano” que parecia excluir todos aqueles que fossem diferentes, que não encaixassem. Em ambos os casos, as imagens que procuram não são as mesmas que vêem nos ecrãs.

“Baldwin passa o filme a olhar para nós, e muita gente no filme está a olhar directamente para a câmara, porque o filme é sobre isso: olhares, rostos, reconhecimentos. Baldwin diz: 'Nunca tiveram de olhar para mim, mas eu tive sempre de olhar para vocês'. Quero fazer isso com este filme. Levar as pessoas a olharem longamente para um rosto negro, e ver nele para lá da cor, reconhecer a mãe, a avó, o filho… E isso é outra das camadas importantes do filme, o jogo das imagens, perceber o que fazemos com elas e como as lemos. É algo que perdemos na rapidez do mundo contemporâneo, com o bombardeamento quotidiano de imagens. Perdemos a nossa capacidade de ver, observar, compreender. Este é um filme sobre as imagens e sobre a ideologia das imagens  o que elas significam, o que eles transportam e como esses significados nos moldam, quer sejamos homens, mulheres, brancos, negros, latinos. Se víssemos toda a história do cinema de Hollywood através dos olhos de um índio americano, parecer-nos-ia algo de completamente diferente.

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Este não é um filme para os negros. Este filme é para toda a sociedade. É isso que Baldwin diz: 'Este não é o meu problema, é o vosso problema. Foram vocês que o criaram, porque é que querem que seja eu a resolvê-lo? Eu sei quem sou e não vou continuar a fazer o que vocês querem.' É uma tomada de atitude política. Nos EUA, começo a ver as pessoas a entenderem que fazem parte 'da' História – não de uma história negra ou branca ou homossexual ou da escravatura ou do que quer que seja. Existe apenas uma História: 'a nossa' história. E essa História é o presente, não o passado, e precisamos de lidar com este presente. Fazemos todos parte dele, e não estamos inocentes. Baldwin dizia: 'Não somos inocentes, e não podemos fingir que não o sabemos, porque sabemos'. É um humanista. Está a falar com um ser humano e a dizer-lhe que, independentemente de quem é, tem de assumir a responsabilidade pela sua vida, pela sua comunidade, pelo seu país. É isso que a cidadania significa.”

É por isso que Eu Não Sou o Teu Negro traz o crédito incontornável: “escrito por James Baldwin”. São as suas palavras, e apenas as suas palavras, que o filme transmite. Mesmo que lidas por Samuel L. Jackson (“Quem era a melhor voz para este filme? Ele era o primeiro nome na minha pequena lista de três actores que podiam dar-lhe voz, mostrámos-lhe a montagem praticamente acabada e ele disse que sim. Achou que era um filme importante, quis fazer parte dele, e claro que não lhe paguei uma fortuna.”). Mesmo que organizadas a posteriori, com a bênção e o apoio total dos herdeiros do escritor. Eu Não Sou o Teu Negro não é o olhar de Raoul Peck sobre James Baldwin: é Raoul Peck ao serviço da voz e das palavras de James Baldwin.

“O mais importante para mim era tê-lo a ele e às suas próprias palavras. Não queria uma 'interpretação' feita por estudiosos ou académicos. Queria as palavras, sem filtro, sem intérprete. Até porque ele não precisa de intérprete. Basta lê-lo, ele próprio faz o trabalho a partir daí. Queria manter o texto, sem lhe adicionar nada nem o carregar com mais nada, e era preciso encontrar os momentos certos para contar uma história, e para a contar de uma forma dramática. O primeiro passo foi criar uma espécie de 'libreto', como numa peça de teatro, realizando uma primeira ordenação das peças com um princípio, um meio e um fim aproximados. A pesquisa nos arquivos foi definida pelo próprio Baldwin – quando ele fala de Doris Day ou de Gary Cooper, e se a referência não é específica, eu sabia que tinha de ir ver todos os filmes de Doris Day ou de Gary Cooper. Ia tomando notas enquanto os via, ora de modo muito preciso ('Agora vou usar estes fotogramas') ora de modo muito difuso ('Não sei bem o que fazer com isto mas vamos pô-lo de parte, acho que o posso usar'). Por vezes lia uma nota de rodapé em que Baldwin referia uma música ou uma fotografia específica, e pedia ao arquivista para ir à procura delas. E cada nova versão de montagem era um filme novo, um processo em constante movimento, onde cada elemento diz algo mas tudo junto construía algo mais, algo maior.”

Eu Não Sou o Teu Negro resulta de uma década de trabalho que Raoul Peck admite que não teria sido possível se o filme fosse uma produção americana. O filme foi impulsionado pela própria produtora do realizador, Velvet Film, sediada entre Paris, Nova Iorque e Port-au-Prince, recorrendo a financiamentos franceses e belgas – com a ironia suprema de que, entre o início da produção e a estreia do filme, o nome do escritor regressou à primeira linha.

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Imagem do Documentário Eu Não Sou o Teu Negro

“Obviamente, é uma coincidência. Comecei a trabalhar neste filme há dez anos e podia tê-lo acabado há dois, ou no ano passado, ou só no ano que vem... E James Baldwin só começou verdadeiramente a ressurgir nos últimos três, quatro anos; antes havia apenas um pequeno grupo de académicos à procura de pensadores originais que o ensinavam. Parte do impulso para o filme era garantir que a sua obra fosse lida e estudada nos currículos académicos. Isso agora está a acontecer, os seus livros voltaram a vender. Mas Eu Não Sou o Teu Negro não teria sido possível sem o financiamento europeu, mesmo que a percentagem tenha acabado por ficar mais ou menos repartida a 50% entre dinheiro europeu e americano. O financiamento europeu permitia-nos correr riscos e levar tempo, sem pressões de retorno comercial; consegui arranjar dinheiro para começar a escrever, contratar um responsável pela pesquisa e um montador. Nos EUA isso teria sido impossível, já me teriam 'castigado'. Só mostrei o filme a produtores americanos quando já o tinha muito avançado, e mesmo assim houve muita gente que torceu o nariz até o pessoal do Independent Television Service embarcar no projecto.”

A paisagem pode ter mudado nos dez anos desde que Raoul Peck começou a trabalhar em Eu Não Sou o Teu Negro: a eleição de Barack Obama, a invasão das redes sociais, o ressurgimento das tensões raciais, os movimentos #BlackLivesMatter, a eleição de Donald Trump. Tudo mudou? Raoul Peck, cidadão do mundo, nascido no Haiti, criado no Congo, formado em engenharia, economia e cinema, viajando entre Nova Iorque, Paris, Berlim, Port-au-Prince, defere, mais uma vez, a James Baldwin. Nada mudou.

“Nada mudou desde que Baldwin levantou estas questões. É hipocrisia pensar que houve progresso. Qualquer que seja a estatística que citamos  Quantos negros estão presos? Quantas famílias negras não têm um chefe de família? Qual é a situação da habitação para negros, pobres, latinos? –, os números dizem que as coisas não melhoraram. Nada aconteceu, porque a maioria das pessoas não se interessa. Não percebo como é que as pessoas acharam que Barack Obama podia fazer alguma coisa  não estamos a falar de lógica, estamos a falar de política. Perguntaram a Baldwin: "Como se vai sentir quando o primeiro presidente negro for eleito?'. A resposta dele foi: 'O problema não é quem vai ser o primeiro presidente negro, é o país de que ele vai ser presidente'. É essa a verdadeira questão. Não é a pessoa. É o país. O que Baldwin fez foi colocar um espelho à nossa frente e dizer: 'Eu compreendo o problema que enfrentamos. Vocês não. E precisam de o compreender.'”

Eu Não Sou o Teu Negro é esse espelho posto em imagens.