Vêm aí os russos (outra vez)
Entre Glinka ou Dostoievski e os senhores da Rússia dos nossos dias vai um abismo que a história escavou.
Os portugueses estão habituados a invasões russas. E, em geral, aplaudem-nas com interesse ou até com fervor. Não falamos das invasões militares, naturalmente, mas das outras. Por exemplo: ainda os ânimos da revolução soviética de Outubro de 1917 não tinham acalmado (Outubro no nosso calendário, pois na Rússia, pelo calendário gregoriano, tal revolução ocorreu no dia 7 de Novembro) e já por cá se gritavam vivas aos Bailados Russos, que haviam de estrear-se nesse final de ano no Coliseu dos Recreios de Lisboa. Foram até apresentados, num manifesto inflamado, por José de Almada Negreiros, Ruy Coelho e José Pacheko, como "uma das mais bellas étapes da civilização da Europa moderna." Muitos anos depois, em 2001 (ano que viria a ficar fatidicamente marcado pelo atentado terrorista às Torres Gémeas), foi a vez de uma invasão musical: 132 concertos em três dias, no Centro Cultural de Belém, numa Festa da Música dedicada à criação russa. E ali ouvimos Tchaikovski, Prokofiev, Rachmaninov, Stravinski, Chostakovich, Glazunov, Borodine, Scriabine, Mussorgski, Rimski-Korsakov. E numerosos intérpretes russos.
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Os portugueses estão habituados a invasões russas. E, em geral, aplaudem-nas com interesse ou até com fervor. Não falamos das invasões militares, naturalmente, mas das outras. Por exemplo: ainda os ânimos da revolução soviética de Outubro de 1917 não tinham acalmado (Outubro no nosso calendário, pois na Rússia, pelo calendário gregoriano, tal revolução ocorreu no dia 7 de Novembro) e já por cá se gritavam vivas aos Bailados Russos, que haviam de estrear-se nesse final de ano no Coliseu dos Recreios de Lisboa. Foram até apresentados, num manifesto inflamado, por José de Almada Negreiros, Ruy Coelho e José Pacheko, como "uma das mais bellas étapes da civilização da Europa moderna." Muitos anos depois, em 2001 (ano que viria a ficar fatidicamente marcado pelo atentado terrorista às Torres Gémeas), foi a vez de uma invasão musical: 132 concertos em três dias, no Centro Cultural de Belém, numa Festa da Música dedicada à criação russa. E ali ouvimos Tchaikovski, Prokofiev, Rachmaninov, Stravinski, Chostakovich, Glazunov, Borodine, Scriabine, Mussorgski, Rimski-Korsakov. E numerosos intérpretes russos.
Houve outras. Em 2011 tivemos por cá a "Primavera Russa", esta mais oficial, integrando, anunciavam os promotores, "os melhores colectivos de dança, de arte e conjuntos corais de várias regiões da Rússia que demonstram constantemente alto nível de profissionalismo no panorama internacional." Já em 2016 a invasão foi dupla, não por mar e ar, mas por cinema e música. No Porto, a Casa da Música anunciava um Ano Rússia com a "maior mostra de música russa jamais levada a cabo em Portugal" (mais Prokofiev, Rachmaninov, Stravinski, Borodine, Rimski-Korsakov, Mussorgski; e mais músicos russos, claro). E, em Lisboa, anunciava-se um ciclo de cinema russo por iniciativa da Leopardo Filmes, com obras de Eisenstein, Dziga-Vertov, Klimov, Dovjenko, Bondarchuk, Sokurov, Konchalovski, Boris Barnet ou Tarkovski. O título do texto que Luís Miguel Oliveira assinava, sobre isso, no PÚBLICO, era "Vêm aí os russos".
Que é também o título desta crónica, mas num contexto diferente. Vêm aí os Russos! Vêm aí os Russos! (assim mesmo, a dobrar) é, aliás, o título de uma comédia americana de Norman Jewison, filmada e estreada em plena "guerra fria" (em 1965), retratando a paranóia anti-russa da época a partir de uma ocorrência imaginada e caricata: um submarino russo encalha, por teimosia e azelhice do seu comandante (protagonizado por Theodore Bikel, actor, músico e activista, co-fundador do Festival Folk de Newport), junto à costa da Nova Inglaterra, com resultados caóticos e hilariantes. Tudo acaba bem, claro, com os russos a fazerem o que queriam: zarpar dali quanto antes, e com a ajuda dos habitantes locais (que no início só os imaginavam a invadir, violar, saquear, matar e bombardear).
Mas o "vêm aí os russos" do título desta crónica, não do filme, tem que ver com outra coisa, e essa bem presente. Hoje, tudo o que se afigura terrível ou duvidoso é quase sempre automaticamente associado aos russos. Instabilidade e divisão da Ucrânia? Russos. Síria? Russos. Intervenções maquiavélicas nas eleições norte-americanas e francesas, em favor de Trump e Le Pen? Russos, claro. Até o sinistro pseudo-jogo da Baleia Azul leva o carimbo de um russo de 21 anos, entretanto detido. Confirmando a ideia, de um romantismo negríssimo, de que os russos brincam com a vida e a morte, geralmente associada na ficção a imagens de cossacos a esvaziarem garrafas de vodka no equilíbrio instável de parapeitos. Até se chama roleta russa ao macabro "jogo" suicidário para revólver & uma bala!
O problema é que, entre Glinka ou Dostoievski e os senhores da Rússia dos nossos dias vai um abismo que a história escavou; e que arrasta consigo mais os fantasmas de Ivan o Terrível ou de Estaline do que as artes da Grande Alma Russa, cujas "invasões" o mundo quase sempre (excepto por razões paranóicas) aplaudiu. Ora sendo a Rússia um país onde cabem, geograficamente, os Estados Unidos e toda a Europa e ainda sobra espaço, é bom saber ao certo o que significa um "vêm aí os russos" na era de Putin. Porque pode ser muito pouco cultural e bastante desagradável.