A vitória do extraordinário

O meu preconceito não me permitiu pensar que a composição de Luísa fosse ganhar, precisamente por ser de qualidade

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Gleb Garanich/Reuters

Sim, este é um texto sobre o Amar pelos dois e sobre a vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão.

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Sim, este é um texto sobre o Amar pelos dois e sobre a vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão.

Rendida a tudo o que a canção transmite desde o primeiro momento em que a ouvi, nunca imaginei que tivesse qualquer hipóteses de ganhar fosse o que fosse. E esta minha perplexidade diz muito do meu preconceito para com os outros, que julgava serem indiferentes a algo verdadeiramente belo, por tantas vezes testemunhar tantas outras belezas serem ignoradas por fugirem às modas e ao normal. Esse preconceito fez-me crer que, junto do espalhafato sonoro e visual que são regra na Eurovisão, a canção dos Sobral cairia no vazio. Aqueles eram, aliás, os motivos que me faziam ver, rir e julgar o programa europeu, acabando sempre por me preencher por uma enorme vergonha alheia e fazendo com que desligasse a televisão antes sequer de saber resultados, mesmo quando havia músicas de que gostava ainda em jogo.

O meu preconceito não me permitiu pensar que a composição de Luísa fosse ganhar, precisamente por ser de qualidade. Independentemente de se gostar do estilo, da voz e dos instrumentos, qualquer pessoa que tenha uma formação musical consegue perceber a beleza da canção. E o meu preconceito partiu daí. É que a música de que gosto, aquela que sei que é forte em termos musicais, que tem letras lindas e com significado, qualquer que seja o género, raramente é aquela que a maioria aprecia. E isso, como em qualquer outra coisa, pode tornar-nos arrogantes de certa maneira, ao pensarmos que só nós sabemos o que é “bom”. Aqui entramos no que o Salvador disse várias vezes (e não apenas quando aceitou o prémio), e na arrogância que alguns lhe apontam por negar a música de plástico, dos artifícios, feita em laboratórios electrónicos quase sem resquício de instrumentos musicais físicos, em detrimento da “boa” música, a que tem sentimento, a que ele faz. Como já se deve ter percebido, eu não podia concordar mais com ele. Mas penso que também já mostrei que compreendo, até certo ponto, que este preconceito pode ser visto como arrogante. Não posso, contudo, rotulá-lo nesses termos, quando não foi mais do que consistente com o que havia dito e redito durante todo o processo festivaleiro. Mas adiante!

O meu preconceito partiu daí, mas também partiu de outros aspectos da minha vida, porque não é, de todo, do que entendo por boa música aquilo que pretendo falar aqui. É desta vitória do extraordinário e do incompreendido. Do bom que não quer fama, apenas um reconhecimento de que o seu trabalho tem qualidade; do estranho que diz o que pensa; daquele que tem uma visão idealista do mundo e a quer partilhar com todos, continuando mesmo quando é ridicularizado e desprezado, porque essas coisas não interessa, o que importa é a mensagem passar. E passou, oh se passou.

O orgulho e a felicidade que sinto não se devem apenas ao nome e a música do meu país serem reconhecidos internacionalmente. Não, não, o que me fez verter várias, muitas, tantas!, lágrimas não foi só o ter sido uma vitória com boa música, de um bom cantor, de uma boa compositora, de uma língua maravilhosa. Não. Foi o ter sido também a vitória do fora-da-caixa, do diferente, do simples, do humilde e do trabalhador. Não existiram chico-espertices, nem máscaras. Não houve exageros. Foi a pureza de algo e alguém incomuns que conquistou a Europa no sábado à noite.

Pelos meus olhos, esta foi uma vitória dos desadequados, dos estranhos, dos inconformados, dos genuínos. E é por isso que a vejo agora como minha, e não tanto por ter sido de Portugal, em Português. Foi uma vitória dos constrangidos e dos desajeitados. Foi uma vitória de tudo o que durante os últimos meses têm apelidado o Salvador, mesmo que eu não concorde com metade do que lhe chamaram, e de que num momento ou outro também foi aplicado a mim. Afinal, num ano em que se celebrava a diversidade, venceu um alguém verdadeiramente diferente, extraordinário, num troféu que me dá uma bofetada na cara, porque afinal os “outros” ainda ouvem alguém fora do comum. E se gostam do que ouvem... O Salvador ganhar foi para mim algo que tenho dificuldade expressar seja de que maneira for. Já tinha rabiscado este texto depois da canção ter sido apurada para a Eurovisão, e agora tive mesmo de acabá-lo. É que mostrou-se que, afinal, os desajustados importam mesmo, as nossas vozes, mesmo contra maré, podem ser ouvidas. Vale a pena tentar que a nossa mensagem seja ouvida, custe o que custar. E o mais bonito (e irónico) disto tudo é que ele conseguiu que a mensagem dele passasse de uma forma tão despercebida que pareceu quase sem querer.

Os irmãos Sobral não são heróis nacionais. Provavelmente também nem se revêem neste texto, nem é esse o objectivo. Este é o significado da sua vitória para mim e ninguém consegue diminuir ou retirar-me esta força que me deram, assim, sem estar à espera. E estes são os sentimentos pelos quais vale a pena viver.