Terrorismo nuclear: uma inevitabilidade?
A Humanidade poderá escapar ao flagelo do terrorismo nuclear. Mas, infelizmente, não é nula a probabilidade de ele vir a ocorrer.
A proliferação nuclear tem sido interpretada e codificada em tratados internacionais num quadro (obsoleto) das relações internacionais vistas como interações entre países. As armas nucleares (e, mais exequíveis, as armas radiológicas que consistem na disseminação de substâncias radioativas) estão hoje ao alcance de mais países mas também de movimentos ou grupos com capacidade financeira adequada. O custo destas armas diminuiu, a respetiva potência aumentou e a sua miniaturização tornou-as facilmente transportáveis.
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A proliferação nuclear tem sido interpretada e codificada em tratados internacionais num quadro (obsoleto) das relações internacionais vistas como interações entre países. As armas nucleares (e, mais exequíveis, as armas radiológicas que consistem na disseminação de substâncias radioativas) estão hoje ao alcance de mais países mas também de movimentos ou grupos com capacidade financeira adequada. O custo destas armas diminuiu, a respetiva potência aumentou e a sua miniaturização tornou-as facilmente transportáveis.
A capacidade de aceder a esta tecnologia nuclear é hoje extremamente dispersa, embora isso não signifique que seja facílimo adquiri-la. No entanto, será uma mera questão de tempo para que uma bomba seja obtida por um grupo não estatal ou que um dispositivo radiológico seja acionado.
A luta contra este tipo de proliferação nuclear raramente é noticiada porque é muitíssimo discreta, mas consiste numa ação literalmente diária que governos, serviços secretos e unidades especializadas desenvolvem sem que o público disso se aperceba. Cerca de uma dezena de países possui uma intervenção muito eficiente neste campo, incluindo alguns na Europa, mas na maioria esmagadora dos países a incipiência é grave.
Na sequência do colapso da União Soviética esta foi quase invadida por um autêntico “enxame” de enviados e intermediários de países ligados a meios terroristas e a programas nucleares clandestinos. Esses indivíduos partilharam um frenesim de contactos com altos responsáveis soviéticos, inclusive militares, focalizado em transformar o desvio de tecnologia, componentes e materiais nucleares em grandes negócios para uns e outros. Nessa fase, os serviços secretos norte-americanos e alemães foram fundamentais para, por exemplo, simular “compradores” por si controlados, no sentido de “secar” operações de tráfico de plutónio soviético para o Ocidente (designadamente através de aeroportos alemães). Mas mesmo no futuro podemos sofrer o impacto destrutivo dos materiais desviados nessa fase.
Embora desde então se tenha conseguido reduzir o número de países formalmente associados a estas perigosas ações, aumentou o número de agentes não estatais envolvidos. Existe um insuspeitado “quase-caos” neste âmbito, que se tenta controlar, que é impossível parar completamente e que ninguém gosta de reconhecer que existe.
Nestas operações têm estado envolvidas entidades tão diversas como vários grupos de crime internacional organizado, movimentos terroristas, indivíduos intermediários que tentam ganhar grandes somas, grupos de guerrilha e outros. Máfias russas e italianas participaram neste negro negócio de terror. O mesmo sucedeu, por exemplo, com alguns dos cartéis colombianos da droga (que negociaram com máfias russas uma atribuição a estas de exclusividades na distribuição de cocaína em alguns mercados do Leste europeu, contra o fornecimento de potente material militar e de tecnologia nuclear).
Vejamos exemplos soltos de envolvimento neste tipo de proliferação. Todos se recordam de, há anos, a seita Aum Shinrikyo ter efetuado um mortal atentado terrorista químico no metro de Tóquio, com um gás venenoso. Mas esta seita só optou pela tecnologia do terrorismo químico após vários anos de tentativas de o fazer com tecnologia nuclear. Esta seita possuía meios financeiros mais do que suficientes para o conseguir. Apenas desistiu do seu projeto nuclear em favor das armas químicas porque se deparou com resistências inesperadas junto dos seus previsíveis fornecedores russos. A seita recrutara uma impressionante equipa de técnicos e cientistas, com importantes ligações na China e na Coreia do Sul e na exploração mineira de urânio na Austrália.
A Al-Qaeda continuava, quando os seus campos de treino foram destruídos e a sua estrutura de chefia foi fragmentada no Afeganistão após os ataques de 11 de Setembro de 2001, a desenvolver um projeto neste domínio, inclusive com ligações a uma rede de vendas clandestinas de tecnologia nuclear paquistanesa.
Materiais nucleares desapareceram na Rússia (encontram-se em algum local, naturalmente) e noutros locais. Alguns destes materiais nucleares foram recuperados. Por exemplo, num reator no Zaire desapareceram dois núcleos de material nuclear no início da década de 1970. Durante duas décadas ninguém conhecia o seu paradeiro até que, por acaso, um grupo do crime organizado italiano tentou encontrar um comprador para um desses núcleos, com o “azar” de ter estabelecido contacto com um comprador que, de facto, era um elemento de serviços secretos ocidentais. Esse núcleo foi recuperado, mas não o outro. Este tipo de casos é superior ao que poderá supor-se.
Após a implosão e o desmembramento da União Soviética, centenas de locais continham plutónio e urânio de pureza militar, mas entretanto os Estados Unidos ajudaram a retirá-los da maioria desses locais. No entanto, continuam a existir materiais em centenas de locais em dezenas de países e são significativos os casos de desaparecimento de urânio e plutónio que se encontram algures e que, um dia, poderão surgir em atentados graves. Mesmo materiais de menor pureza poderão ser usados em atentados radiológicos, impedindo a presença humana durante muito tempo em zonas afetadas. Existem mais de 500 cidades no mundo com mais de um milhão de habitantes, das quais mais de 30 se encontram na Europa.
Em locais de segurança variável existem centenas de toneladas de plutónio civil no mundo. Para um grupo terrorista, adquirir plutónio é menos difícil do que possa imaginar-se, mas montar uma bomba de plutónio é tecnicamente complexo para assegurar o dispositivo de implosão. Contudo, confecionar uma bomba com urânio altamente enriquecido é menos difícil. Por outro lado, não faltam circuitos sombrios onde podem ser fornecidas e contrabandeadas bombas ou componentes fabricados em países com programas militares obscuros na Ásia. Para uma bomba de plutónio bastam cerca de 4-6 kg e uma bomba de média sofisticação com urânio altamente enriquecido exige apenas cerca de 25 kg. Em algumas zonas de conflito e tensão na Europa de Leste, como a Abkhazia, formaram-se redes de tráfico nuclear.
Em síntese, não é possível neste simples artigo analisar suficientemente esta questão tão complexa como preocupante. Mas justifica-se que, sem alarmismos, se saliente que o risco neste domínio é muitíssimo maior que aquele que os cidadãos conhecem, até porque (justificadamente) é muito raro que muitos desses factos sejam tornados públicos. A Humanidade poderá escapar ao flagelo do terrorismo nuclear. Mas, infelizmente, não é nula a probabilidade de ele vir a ocorrer. A dramática proliferação dos riscos nas últimas décadas torna materialmente quase impossível a certeza de ter este contexto sob controlo. Temos que acelerar este combate diário, tão discreto como fundamental.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico